SEGUNDA PARTE



CONFERENCIA DE ANTÃO AOS MONGES SOBRE O DISCERNIMENTO DOS ESPÍRITOS E EXORTAÇÃO À VIRTUDE.

16.

Um dia em que ele saiu, vieram todos os monges e lhe pediram uma conferência. Falou-lhes em língua copta, como segue:

"As Escrituras bastam realmente para nossa instrução. No entanto, é bom para nós alentar-nos uns aos outros na fé e usar da palavra para estimular-nos. Sejam, por isso, como meninos e tragam a seu pai o que saibam e lho digam, tão como eu, sendo o mais velho, reparto com vocês meu conhecimento e minha experiência.

Para começar, tenhamos todos o mesmo zelo, para não renunciar ao que começamos, para não perder o ânimo, para não dizer:

"Passamos demasiado tempo nesta vida ascética".

Não, começando de novo cada dia, aumentemos nosso zelo. Toda a vida do homem é muito breve com parada ao tempo vindouro, de modo que todo o nosso tempo é nada comparado com a vida eterna. No mundo, tudo se vende; e cada coisa se comercia segundo seu valor por algo equivalente; mas a promessa da vida eterna pode comprar-se por muito pouco. A Escritura diz

"Ainda que alguém viva setenta anos, e o mais robusto até oitenta,
a maior parte é fadiga inútil".

Sl. 89, 10

Se, pois, vivemos todos nossos oitenta anos, ou mesmo cem, na prática da vida ascética, não vamos reinar o mesmo período de cem anos, mas em vez dos cem reinaremos para sempre. E ainda que nosso esforço seja na terra, não receberemos nossa herança na terra mas o que foi prometido no céu. Mais ainda, vamos abandonar nosso corpo corruptível e recebê-lo-emos incorruptível (I Cor. 15,42).

17.

Assim, filhinhos, não nos cansemos nem pensemos que nos estamos afanando muito tempo ou que estamos fazendo algo grande. Pois

"os sofrimentos da vida presente não podem comparar-se
com a glória futura que nos será revelada".

Rm. 8, 18

Não olhemos tampouco para trás, para o mundo, crendo que renunciamos a grandes coisas, pois também o mundo é muito trivial comparado com o céu. E ainda que fôssemos donos de toda a terra e renunciássemos a toda ela, nada seria isto comparado com o reino dos céus. Assim como uma pessoa desprezaria uma moeda de cobre para ganhar cem moedas de ouro, assim o que é dono de toda a terra e a ela renuncia, dá realmente pouco e recebe cem vezes mais (Mt. 19, 29). Se, pois, nem sequer toda a terra equivale ao céu, certamente o que entrega uma porção de terra não deve jactar-se ou penalizar-se: o que abandona é praticamente nada, ainda que seja um lar ou uma soma considerável de dinheiro aquilo de que se separa.

Devemos além disso ter em conta que se não deixamos estas coisas por amor à virtude, teremos depois de abandoná-las de qualquer modo e a miúdo também, como nos recorda o Eclesiastes, a pessoas às quais não teríamos querido deixá-las. Então, por que não fazer da necessidade virtude e entregá-las de modo a podermos herdar um reino por acréscimo? Por isso nenhum de nós tenha nem sequer o desejo de possuir riquezas. De que nos serve possuir o que não podemos levar conosco? Por que não possuir antes aquelas coisas que podemos levar conosco: prudência, justiça, temperança, fortaleza, entendimento, caridade, amor aos pobres, fé em Cristo, humildade, hospitalidade?. Uma vez possuindo-as, veremos que elas vão adiante de nós, preparando-nos as boas-vindas na terra dos mansos (Lc. 16, 9; Mt. 5, 4).



PERSEVERANÇA E VIGILÂNCIA.

18.

Com estes pensamentos cada qual deve convencer-se de que não deve descuidar-se, mas considerar-se servo do Senhor e preso ao serviço de seu Mestre. Um servo, porém, não se atreve a dizer:

"Já que trabalhei ontem, não vou trabalhar hoje".

Tampouco vai por-se a calcular o tempo em que já serviu e descansar durante os dias que lhe ficam pela frente; não, dia após dia, como está escrito no Evangelho (Lc. 12, 35-38; 17, 7-10; Mt. 24, 45), mostra a mesma boa vontade para que possa agradar a seu patrão e não causar nenhum incômodo. Perseveremos, pois, na prática diária da vida ascética, sabendo que se somos negligentes um só dia, Ele não nos vai perdoar em consideração ao tempo anterior, mas vai aborrecer-se conosco por nosso descuido. Assim o ouvimos em Ezequiel (Ez. 18, 24-26; 32, 12s); assim Judas, numa só noite, destruiu o trabalho de todo o seu passado.

19.

Por isso, filhos, perseveremos na prática do ascetismo e não desanimemos. Também nisso temos o Senhor que nos ajuda, diz a Escritura:

"Deus coopera para o bem de todos os que O amam".

Rm. 8,28

E quanto a não devermos descuidar-nos, é bom meditar o que diz o Apostólo:

"Morro cada dia".

I Cor. 15, 31

Realmente se também nós vivêssemos como se em cada novo dia fôssemos morrer, não pecaríamos. Quanto à citação, seu sentido é este: ao despertarmos cada dia, deveríamos pensar que não vamos viver até à tarde; e de novo, quando vamos dormir, deveríamos pensar que não chegaremos a despertar. Nossa vida é insegura por natureza, e diariamente nos é medida pela Providência. Se com esta disposição vivemos nossa vida diária, não cometeremos pecado, nada cobiçaremos,não nos mancharemos com ninguém, não acumularemos tesouros na terra; mas como quem cada dia espera morrer, seremos pobres e perdoaremos tudo a todos. Desejar mulheres ou outros prazeres desonestos, tampouco teremos semelhantes desejos, mas lhes voltaremos as costas como coisas transitórias, combatendo sempre e tendo ante os olhos o dia do juízo. O maior temor ao juízo e o desassossego pelos tormentos dissipam invariavelmente a fascinação do prazer e fortalecem o ânimo vacilante.



OBJETO DA VIRTUDE.

20.

Agora que temos um começo e estamos na senda da virtude, alarguemos ainda mais nossos passos para alcançar o que temos adiante (Fl. 3, 13). Não olhemos para trás, como o fez a mulher de Lot (Gn. 19, 26), sobretudo porque o Senhor disse:

"Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o reino dos céus".

Lc. 9, 62

E este olhar para trás não é outra coisa senão arrepender-se do começado e lembrar-se de novo do que deixara no mundo.

Quando ouvirem falar da virtude, não se assustem nem a tratem como palavra estranha. Realmente não está longe de nós, nem seu lugar está fora de nós; não, está dentro de nós, e sua realização é fácil contanto que tenhamos vontade (Dt. 30, 11 ss). Os gregos viajam e cruzam o mar para estudar as letras; nós, porém, não temos necessidade de por-nos a caminho pelo reino dos céus nem de cruzar o mar para alcançar a virtude. O Senhor no-lo disse de antemão:

"O reino dos céus está dentro de vós".

Lc. 17 ,21

Por isso a virtude necessita só de nossa vontade, já que está dentro de nós e brota de nós. A virtude existe quando a alma se mantêm em seu estado natural. É mantida nesse estado natural quando permanece como veio ao ser. E veio ao ser limpa e perfeitamente íntegra (Ecl. 7, 30). Por isso Josué, o filho de Nun, exortou ao povo com estas palavras:

"Mantenham íntegros seus corações diante do Senhor, o Deus de Israel".

Jos. 24, 23

e João:

"Endireitem seus caminhos".

Mt. 3, 3

A alma é reta quando a mente se mantém no estado em que foi criada. Mas quando se desvia e se perverte de sua condição natural, isso se chama vício da alma.

A tarefa não é difícil: se ficamos como fomos criados, estamos no estado de virtude; mas se entregamos nossa mente a coisas baixas, somos considerados perversos. Se esse trabalho tivesse de ser realizado de fora, seria em verdade difícil; mas estando dentro de nós, acautelemo-nos contra os pensamentos maus. E tendo recebido a alma como sendo confiada a nós, guardemo-la para o Senhor, a fim de que Ele possa reconhecer sua obra, tal qual a fez.

21.

Lutemos, pois, para que a ira não nos domine, nem a concupiscência nos escravize; pois está escrito que a

"ira do homem não faz o que agrada a Deus".

Tg. 1, 20

E a concupiscência

"depois de conceber, dá à luz o pecado;
e o pecado, uma vez consumado, gera a morte".

Tg. 1, 15

Vivendo esta vida, mantenhamo-nos cuidadosamente atentos e, como está escrito,

"guardemos nosso coração com máxima vigilância".

Pr. 4, 23

Temos inimigos poderosos e fortes: são os malvados demônios; e contra eles

"é nossa luta",

como diz o Apóstolo,

"não contra gente de carne e osso,
mas contra forças espirituais de maldade espalhadas nos ares,
isto é, os que têm autoridade e dominio sobre este mundo tenebroso"

Ef. 6, 12

Grande é o seu número no ar e em redor de nós, e não estão longe de nós. Mas a diferença entre eles é considerável. Levaria muito tempo para dar uma explicação de sua natureza e distinções, e tal investigação é para outros mais competentes do que eu; o único urgente e necessário para nós agora é só reconhecer suas vilanias contra nós.



ARTIFÍCIOS DOS DEMÔNIOS.

22.

Em primeiro lugar, demo-nos conta disto: os demônios não foram criados como demônios, tal como entendemos este termo, porque Deus não fez o mal. Também eles foram criados puros, mas desviaram-se da sabedoria celestial. Desde então andam vagando sobre a terra. Por um lado, enganaram os gregos com vãs fantasias e, invejosos de nós, cristãos, nada omitiram para nos impedir de entrar no céu; não querem que subamos ao lugar de onde cairam. Por isso é necessário muita oração e disciplina ascética para que alguém possa receber do Espirito Santo o dom de discernimento dos espíritos e ser capaz de conhecê-los: qual deles é menos mau, qual o pior; que interesse especial tem cada um e como hão de ser repelidos e lançados fora; pois são numerosas suas astúcias e maquinações. Bem sabiam isto o santo Apóstolo e seus discípulos quando diziam:

"Conhecemos muito bem suas manhas".

II Cor. 2, 11

E nós, ensinamos por nossas experiências, deveríamos guiar outros a apartarem-se deles. Por isso eu, tendo feito em parte essa experiência, falo a vocês como a filhos meus.

23.

Quando eles vêem que os cristãos em geral, mas em particular os monges, trabalham com cuidado e fazem progressos, primeiro os assaltam e tentam colocando-lhes continuamente obstáculos em seus caminhos (Sl. 139, 6). Estes obstáculos são os maus pensamentos. Mas não devemos assustar-nos com suas armadilhas que são logo desbaratadas com a oração, o jejum e a confiança no Senhor. No entanto, ainda que desbaratados, não cessam, mas antes voltam ao ataque com toda maldade e astúcia. Quando não podem enganar o coração com prazeres abertamente impuros, mudam de tática e vão ao ataque. Então urdem e fingem aparições para aturdir o coração, transformando-se e imitando mulheres, bestas, répteis, corpos de grande estatura e hordas de guerreiros. Mas nem assim devem esmagar-nos o medo de semelhantes fantasmas, já que não passam de pura vaidade, especialmente se se fortalece com o sinal da cruz.

Em verdade, são atrevidos e extraordinariamente desavergonhados. E neste ponto também os derrotamos, avançam uma vez mais com nova estratégia. Pretendem profetizar e predizer acontecimentos futuros. Aparecem mais altos que o teto, gordos e corpulentos. Seu propósito é, se possível, arrebatar, com mais aparições, os que não puderam enganar com pensamentos. E se acham que ainda assim a alma permanece forte em sua fé e sustentada pela esperança, fazem seu chefe intervir.

24.

Este aparece frequentemente desta maneira como, por exemplo, o Senhor revelou a Jó:

"Seus olhos são como pálpebras da aurora.

De sua boca saem tochas acesas, chispas de fogo saltam fora.
De suas narinas sai fumaça como de panela ou caldeirão a ferver.
Seu sopro acende carvões e de sua boca saem chamas".

Jó 41, 18-21

Quando o chefe dos demônios aparece desta maneira, o velhaco trata de atemorizar-nos, como disse antes, com seu falar valentão, tal como foi desmascarado pelo Senhor quando disse a Jó:

"Tem toda arma por falha seca e zomba de brandir da azagaia;
faz ferver como uma panela o mar profundo e o revolve como uma panela de unguento";

Jó 4, 29, 31

também diz o Profeta:

"Disse o inimigo: 'Persegui-los-ei e os alcançarei'".

Ex. 15, 9

E em outra parte:

"Minha mão achou como ninho as riquezas dos povos,
e como se recolhem ovos abandonados, assim me apoderei de toda a terra".

Is. 10, 14

Esta é, em resumo, a jactância de que alardeiam, estas são as arengas que fazem para enganar o que teme á Deus. Com toda confiança não precisamos temer suas aparições nem dar atenção a suas palavras. E apenas um embisteiro e não há verdade em nada do que diz. Quando fala semelhantes estultícias, e o faz com tanta jactância, não se apercebe cede como é arrastado com um garfo de ferro, como dragão pelo Salvador (Jó 41, 1-2), com um cabresto como animal de carga, com anel no nariz como escravo fugitivo, e com seus lãbios atravessados por uma argola de ferro. Foi, pois, apanhado como animal para nossa diversão. Tanto ele como seus companheiros foram tratados assim para serem pisados como escorpiões e cobras (Lc. 10, 19) por nós, cristãos; e prova disso é o fato de que continuamos a existir, apesar dele. Em verdade, notem que ele, que proclamou secar o mar e apoderar-se do mundo todo, não pode impedir nossas práticas ascéticas, nem que eu fale contra ele. Por isso, não demos atenção ao que possa dizer, porque é um mentiroso astuto, nem temamos suas aparições, porque são mentiras também. Certamente não é verdadeira luz a que aparece neles, mas antes é mero começo e semelhante ao fogo preparado para eles próprios; e com o mesmo que os queimará tratam de aterrorizar os homens. Aparecem, é verdade, mas desaparecem de novo no mesmo momento, sem danificar nenhum crente, enquanto levam consigo essa aparência de fogo que os espera. Por isso, não há razão alguma para ter medo deles, pois, pela graça de Cristo todas as suas táticas dão em nada.

25.

São, porém, traiçoeiros e estão preparados para suportar qualquer mudança ou transformação. Muitas vezes, por exemplo, pretendem até cantar salmos, sem aparecer, e citam textos das Escrituras. Também algumas vezes, quando estamos lendo, repetem de repente, como eco, o que lemos. Quando vamos dormir, despertam-nos para orar, e fazem isto continuamente, mal nos deixando dormir. Outras vezes se disfarçam em monges e simulam piedosas conversas, tendo como meta enganar com sua aparência e arrastar então suas vítimas para onde querem. Mas não lhes devemos prestar atenção, ainda que nos despertem para orar, ou nos aconselhem a não comer de todo, ou pretendam nos acusar de coisas que antes aprovavam. Fazem isto não por amor à piedade ou à verdade, mas para levar o inocente ao desespero, para apresentar a vida ascética como sem valor e fazer com que os homens se enfastiem da vida solitária como algo muito rude e demasiadamente pesado , e assim fracassem os que levam tal vida.

26.

Por isso o profeta enviado pelo Senhor chamou a tais infelizes com estes termos:

"Ai daquele que dá a beber a seu próximo um mau trago".

Hab. 2, 15

Tais táticas e argumentos são desastrosos para o caminho que conduz à virtude. Nosso Senhor mesmo, ainda que os demônios falassem também a verdade, pois diziam verdadeiramente:

"Tu és o Filho de Deus",

Lc. 4, 41

não obstante os fez calar e proibiu-lhes falar. Não quis que esparramassem sua própria maldade junto com a verdade, e tampouco desejava que fizéssemos caso deles ainda quando aparentemente falassem verdade. Por isso é inconveniente que nós, possuindo as Escrituras e a liberdade do Salvador, sejamos ensinados pelo demônio que não ficou em seu posto (Judas 6), mas constantemente mudou de parecer.

Por isso também proíbe-lhe citar as Escrituras, ao dizer:

"Deus disse ao pecador: Por que recitas meus preceitos
e tens sempre em tua boca minha Aliança?"

Sl. 49, 16

Certamente eles fazem de tudo: falam, gritam, enganam, confundem, e tudo para enganar o simples. Armam também tremendos estrépitos, soltam risadas tontas e sibilos. Se ninguém faz caso deles, choram e lamentam-se como derrotados.

27.

O Senhor, por isso, porque é Deus, fêz os demônios calarem-se. Quanto a nós, aprendemos nossas lições dos santos, fazemos como eles fizeram e imitamos-lhes o valor. Pois quando eles viam tais coisas, costumavam dizer:

"Quando o pecador se levantou contra mim,
guardei silêncio resignado, não falei com leviandade!"

Sl. 38, 2

e em outra parte:

"Mas eu como um surdo não ouço, como um mudo não abro a boca;
sou como alguém que não ouve".

Sl. 37, 14s

Assim também nós não os escutemos, olhando os como a estranhos, não lhes prestando atenção, ainda que nos despertem para a oração ou nos falem de jejuns.

Antes, sigamos atentos a prática da vida ascética como é nosso propósito, e não nos deixemos enganar pelos que praticam a traição em tudo o que fazem. Não lhes devemos ter medo ainda que apareçam para atacar-nos e ameaçar-nos de morte. Na realidade são frágeis e nada podem fazer mais do que ameaçar.



IMPOTÊNCIA DOS DEMÔNIOS.

28.

Bem, até agora só falei deste tema de passagem. Mas agora não devo deixar de tratá-lo com maiores detalhes; recordar-lhes isto só pode redundar em maior segurança.

Desde que o Senhor habitou conosco, o inimigo caiu e declinaram seus poderes. Por isso não pode nada; no entanto, ainda que caído, não pode ficar quieto, mas como tirano que não pode fazer outra coisa, vai-se com ameaças, sejam elas embora puras palavras. Cada qual lembre-se disto e poderá desprezar os demônios. Se estivessem confinados a corpos como os nossos, deveriam então dizer:

"Aos que se escondem, não os vamos encontrar; mas se os encontramos, então vamos daná-los".

E neste caso poderíamos escapar deles escondendo-nos e trancando as portas. Não é este, porém, o caso, e podem entrar apesar das portas trancadas. Vemos que estão presentes em todas as partes no ar, eles e seu chefe, o demônio, e sabemos que sua vontade é má e que estão inclinados a danar, e que, como diz o Salvador,

"o demônio foi homicida desde o principio".

Jo. 8, 44

Então, se apesar de tudo vivemos, e vivemos nossas vidas desafiando-o, é claro que não tem nenhum poder. Como vêem, o lugar não lhes impede a conspiração; tampouco nos vêem amáveis com eles como para que nos perdoem , nem tampouco são amantes do bem para mudar seus caminhos. Não, ao contrário, são maus e nada há que desejem mais ansiosamente do que fazer dano aos amantes da virtude e aos adoradores de Deus. Pela simples razão de serem impotentes para fazer algo, nada fazem senão ameaçar. Se pudessem, estejam vocês seguros de que não evitariam, mas antes, realizariam seus mais fortes desejos: o mal, e isso contra nós. Notem, por exemplo, como agora estamos reunidos falando contra eles, e ademais eles sabem que na medida em que fazemos progressos, eles se debilitam. Em verdade, se estivesse em seu poder, não deixariam vivo nenhum cristão, porque o serviço de Deus é abominação para o pecador (Sir. 1, 25). E posto que não podem nada, fazem dano a si mesmo, já que não podem cumprir suas ameaças.

Ademais, para acabar com o medo a eles, dever-se-ia também levar em conta que, se tivessem algum poder, não viriam em manadas, nem recorreriam a aparições,nem usariam o artificio de transformar-se. Bastaria que viesse apenas um e fizesse o que fosse capaz de fazer, ou de acordo com sua inclinação. O mais importante de tudo é que o detentor do poder não se esforça em matar com fantasmas, nem trata de aterrorizar com hordas, mas, sem mais histórias, usa de seu poder como quer. Atualmente, porém, os demônios, impotentes como são, fazem piruetas como se estivessem sobre um cenário, mudando suas formas em espantalhos infantis, com manadas ilusórias e contorções, tornando-se assim mais desprezível sua carência de vigor. Estejamos seguros: o anjo verdadeiro, enviado pelo Senhor contra os Assírios, não teve necessidade de grande número, nem de ilusões visíveis, nem se sopros retumbantes, nem de ressoar de guizos; não, ele exerceu tranquilamente seu poder, e de uma vez matou cento e oitenta e cinco mil deles (II Rs. 19, 35). Mas os demônios, impotentes criaturas como são, tratam de aterrorizar, e isto com meros fantasmas!

29.

Se alguém, ao examinar a história de Jó dissesse:

"Por que, então, continuou o demônio agindo contra ele?
Despojou-o de suas posse, matou seus filhos, e o feriu com graves úlceras",

Jó 1, 13 ss; 2, 7

que essa pessoa se aperceba de que não se trata de que o demônio tivesse poder para fazer isso, mas Deus é que lhe entregou Jó para que o tentasse (Jó 1, 12). Fica suposto que não tinha poder para fazê-lo; pediu esse poder e só depois de havê-lo recebido agiu. Aqui temos outra razão para desprezar o inimigo, pois ainda que tal fosse o seu desejo, não foi capaz de vencer o homem justo. Se o poder houvesse sido dele, não haveria necessidade de pedi-lo, e o fato de o pedir não uma, mas duas vezes, mostra sua fraqueza e incapacidade. Não é de estranhar que não tivesse poder contra Jó, quando lhe foi impossível destruir nem mesmo seus animais, a não ser que Deus lhe desse a permissão. Mas não tem poder nem sequer contra os porcos, como está escrito no Evangelho:

"E os espíritos maus rogaram ao Senhor: 'Deixa-nos entrar nestes porcos' ".

Mt. 8, 31

Mas se não tem poder nem sequer sobre animais, muito nemos o têm sobre os homens feitos à imagem de Deus.

30.

Por isso se deve temer a Deus só e desprezar esses seres, sem lhes ter medo, absolutamente. E quanto mais se dedicam a tais coisas, tanto mais dediquemo-nos a vida ascética para contra-atacá-los, pois uma vida reta e a fé em Deus são grande arma contra eles. Temem aos ascetas por seu jejum, suas vigílias, orações, mansidão, tranquilidade, desprezo do dinheiro, falta de presunção, humildade, amor aos pobres, esmolas, ausência de ira, e acima de tudo, sua lealdade para com Cristo. Esta é a razão pela qual tudo fazem para que ninguém os espezinhe. Conhecem a graça dada pelo Salvador aos crentes quando diz:

"Olhem: dei-lhes o poder de calcar aos pés serpentes e escorpiões e todo o poder do inimigo".

Lc. 10, 19



FALSAS PREDIÇÕES DO FUTURO.

31.

Também, se pretendem predizer o futuro, não lhes façam caso. As vezes, por exemplo, nos comunicam dias antes a visita de irmãos, e efetivamente chegam. Mas não é por se preocuparem com seus ouvintes que fazem isto, mas para induzí-lo a colocar sua confiança neles, e assim, tendo-os bem nas mãos, poderem destruí-los. Não os escutemos, mas deitemo-los fora, pois não precisamos deles. Que prodígio haverá em que eles, tendo corpos mais sutis que os homens, vendo que alguém se pôem a caminho, se adiantem e anunciem sua chegada? Uma pessoa a cavalo poderia também adiantar-se de outro a pé e dá a mesma informação. Assim, pois, tampouco nisto não há de que admirar-nos deles. Não têm nenhum conhecimento próprio do que ainda não aconteceu, mas só Deus conhece todas as coisas antes que existam (Dn. 13, 42). Neste ponto são como ladrões que correm adiante e anunciam o que viram. Neste momento mesmo, a quantos já terão anunciado o que estamos fazendo, como estamos aqui discutindo sobre eles, antes que nenhum de nos possa levantar se e informar o mesmo! Mas até um menino veloz para correr faria o mesmo, adiantando-se a uma pessoa mais lenta. Vou ilustrar com um exemplo o que quero dizer. Se alguém quiser por-se em viagem da Tebaida ou de qualquer outro lugar, antes de que efetivamente parta não sabem se vai sair ou não; mas quando o vêem caminhar, adiantam-se e anunciam de antemão sua chegada. E assim sucede que depois de alguns dias chega. Às vezes, porém, o viajante volta e a informação é falsa.

32.

Também às vezes falam sandices a respeito da água do rio. Por exemplo, vendo as grossas chuvas nas regiões da Etiópia, e sabendo que as enchentes do Rio tem ali sua origem, adiantam-se e o anunciam antes que as águas alcancem o Egito. Também os homens poderiam fazê-lo se pudessem correr com a rapidez deles. E como a sentinela de Davi (II Sm. 18, 24), subindo a uma altura, conseguiu avistar o que chegava antes do que os que estavam em baixo, e correndo informou logo, não o que ainda não havia passado, mas o que estava por acontecer logo, assim também os demônios se apressam a anunciar coisas a outros com o único fim de enganá-los. Em verdade, se entretanto a Providência tivesse uma disposição especial quanto à água ou aos viajantes, e isto é perfeitamente possível, então se veria ser mentira a informação dos demônios, e ficariam enganados os que neles puserem sua confiança.

33.

Assim surgiram os oráculos gregos e assim foi desviado o povo da antiguidade pelos demônios. Com isto deve-se dizer também quanto engano foi preparado para o futuro, mas o Senhor veio para suprimir os demônios e sua vilania. Não conhecem nada fora de si mesmos, mas vendo que outros têm conhecimento, como ladrões apoderam-se dele e o desfiguram. Praticam mais a conjectura do que a profecia. Por isso, ainda que às vezes parecem estar na verdade, ninguém deveria se admirar. Na realidade, também os médicos, cuja experiência em enfermidades lhes vem de haver observado a mesma doença em diferentes pessoas, fazem muitas vezes conjecturas baseadas em sua prática e predizem o que se vai passar. Também os pilotos e camponeses, observando as condições do tempo, prognosticam se vai haver tempestade ou bom tempo. A ninguém ocorreria dizer que profetizam por inspiração divina, mas pela experiência que lhes dá a prática. Em consequência, se também os demônios adivinham algumas destas mesmas coisas e as dizem, nem por isso devemos maravilhar-nos nem fazer absolutamente caso delas. De que serve aos ouvintes saber dias antes o que vai se passar? Ou porque afanar-se em saber tais coisas, mesmo supondo que este conhecimento seja verdadeiro? Por certo não é este o elemento fundamental da virtude nem tampouco prova de nosso progresso; pois ninguém é julgado pelo que não sabe, e ninguém é chamado bem aventurado pelo que aprendeu e sabe. O juízo que nos espera a cada um é se guardamos a fé e observamos fielmente os mandamentos.

34.

Daí, não demos importância a estas coisas, nem nos afanemos na vida ascética com o fim de sabermos o futuro, mas para agradar a Deus vivendo bem. Deveríamos orar, não para conhecer o futuro, nem deveríamos pedir isto como recompensa pela prática ascética, mas que o fim de nossa oração deve ser que o Senhor seja nosso companheiro para conseguirmos a vitória sobre o demônio. Se algum dia, porém, chegarmos a conhecer o futuro, mantenhamos pura nossa mente. Tenho a absoluta confiança de que se a alma é integralmente pura e está em seu estado natural, alcança a claridade da visão e vê mais e mais longe que os demônios. A ela o Senhor revela as coisas. Tal era a alma de Eliseu que viu o que se passou com Giezi (II Rs. 5, 26), e contemplou os exércitos que estavam perto (II Rs. 6, 17).



DISCERNIMENTO DOS ESPÍRITOS.

35.

Agora, pois, quando se lhes apareçam de noite e queiram contar-lhes o futuro ou lhes digam:

"Somos os anjos",

ignoremos porque estão mentindo. Se louvam sua prática da vida ascética ou os chamam santos, não os ouçam nem tenham nada que ver com eles. Façam antes o sinal da cruz sobre si mesmo, sobre sua morada e oração, e vê-los-ão desaparecer. São covardes e têm terror mortal do sinal da cruz de Nosso Senhor, desde que na cruz o Senhor os despojou e escarmentou-os (Sl. 2, 15). Se insistem, porém, com maior cinismo, bailando em torno e mudando de aparência, não os temam, nem se acovardem, nem lhes prestem atenção como se fossem bons; é totalmente possível distinguir entre o bem e o mal com a garantia de Deus. Uma visão dos santos não é turbulenta,

"pois não contenderá nem gritará, e ninguém ouvirá sua voz nas ruas".

Mt. 12, 19; Is. 42, 2

Essa visão chega tão tranqüila e suave, que logo haverá alegria, gozo e valor na alma. Com eles está nosso Senhor, que é nossa alegria, e o poder de Deus Pai. E os pensamentos da alma permanecem desembaraçados e sem agitação, de modo que em sua própria brilhante transparência é possível contemplar a aparição. Um anelo das coisas divinas e da vida futura se apossa da alma, e seu desejo é unir-se totalmente a eles e com eles poder partir. Se alguns, porém, por ser humanos, têm medo ante a visão dos bons, então os que aparecem expulsam o temor pelo amor, como o fez Gabriel com Zacarias (Lc. 1, 13), e o anjo que apareceu às mulheres no santo sepulcro (Mt. 28, 5) e o anjo que apareceu aos pastores.

"Não temam".

Lc. 2, 10

Temor, nestes casos, não é covardia da alma, antes, porém, consciência da presença de seres superiores. Tal é, pois, a visão dos santos.

36.

Por outro lado, o ataque e a aparição dos maus estão cheios de confusão, acompanhada de ruídos, bramidos e alaridos; bem poderia ter o tumulto produzido por homens grosseiros e salteadores. Isto no começo ocasiona temor na alma, distúrbios e confusão de pensamentos, desalento, ódio da vida ascética, tédio, tristeza, lembrança dos parentes, medo da morte; e logo vem o desejo do mal, o desprezo das virtudes e completa mudança do caráter. Por isso, se vocês têm uma visão e sentem medo, mas se o medo se afasta logo e em seu lugar lhes vem inefável alegria e contentamento, recuperação da força e da calma do pensamento e tudo o mais que mencionei, e valentia de coração e amor de Deus, então alegrem-se e orem; seu gozo e a tranquilidade da alma dão prova da santidade Daquele que está presente. Assim, Abraão, vendo o Senhor, alegrou-se (Jo. 8, 56), e João, ouvindo a voz de Maria, a Mãe de Deus, saltou de alegria (Lc. 1, 41). Se, porém, visões os surpreendem e confundem e há abertamente tumulto e aparições terrenas e ameaças de morte e tudo o mais que mencionei, saibam então que a visita é do mau.

37.

Tenham também este outro sinal: se a alma prossegue com medo, o inimigo está presente. Os demônios não tiram o medo que produzem, como o fez o grande arcanjo Gabriel com Maria e Zacarias, e o que apareceu às mulheres no sepulcro. Os demônios, ao contrário, quando vêem que os homens têm medo, aumentam suas fantasmagorias para aterrorizá-los ainda mais, depois crescem e os enganam dizendo-lhes:

"Prostrem-se e adorem-nos".

Mt. 4, 9

Assim enganaram aos gregos, pois entre eles os havia, tomados falsamente por deuses. Nosso Senhor, porém, não permitiu que fôssemos enganados pelo demônio, quando uma vez repeliu-o quando intentava utilizar suas alucinações com Ele:

"Aparta-te, Satanás, porque está escrito:
Adorarás ao Senhor, teu Deus, e só a Ele servirás".

Mt. 4, 10

Por isso, desprezemos sempre mais o autor do mal, pois o que nosso Senhor disse foi por nós: quando os demônios ouvem tais palavras, são expulsos pelo Senhor que com essas palavras os repreendeu.

38.

Não devemos jactar-nos de expulsar os demônios nem vangloriar-nos por curas realizadas; não devemos honrar só ao que expulsa os demônios e desprezar o que não o faz. Que cada um observe atentamente a vida ascética do outro, e então imite-a e emule, ou a corrija; quanto a fazer milagres, não nos compete. Isto está reservado ao Salvador, que, por outro lado, disse a seus discípulos:

"Alegrem-se, não porque os demônios se lhes submetem,
mas porque têm seus nomes escritos no céu".

Lc. 10, 20

E o fato de estarem nossos nomes escritos no céu é testemunho para nossa vida de virtude, mas quanto a expulsar demônios, é dom do Salvador. Por isso, aos que se gloriavam não de sua virtude mas de seus milagres e diziam:

"Senhor, não expulsamos demônios em teu nome,
e não operamos milagres, também em teu nome?"

Mt. 7, 22

Ele respondeu:

"Em verdade lhes digo que não os conheço",

Mt. 7, 23

pois o Senhor não conhece o caminho dos ímpios (Sl 1, 16). Em resumo, deve-se orar, como já disse, pelo dom do discernimento dos espíritos, a fim de que, como está escrito, não creiamos a cada espírito (I Jo. 4, 1).



ANTÃO NARRA SUAS EXPERIÊNCIAS COM OS DEMÔNIOS.

39.

Em realidade, queria agora deter-me e não dizer nada mais que viesse de mim mesmo, já que basta o que dito. Mas para que vocês não pensem que simplesmente digo estas coisas por falar, mas para que se convençam de que o faço por verdadeira experiência, por isso quero contar-lhes o que vi quanto às práticas dos demônios. Talvez me chamem de tonto, mas o Senhor que está ouvindo sabe que minha consciência é limpa e que não é por mim mesmo mas para vocês e para alentá-los que digo tudo isto.

Quantas vezes me chamaram bendito, enquanto eu os maldizia em nome do Senhor! Quantas vezes faziam predições acerca da água do Rio! E eu lhes dizia:

"Que têm vocês a ver com isto?"

Uma vez chegaram com ameaças e me rodearam como soldados armados até os dentes. Noutra ocasião encheram a casa com cavalos e bestas e répteis, mas eu cantei o salmo:

"Uns confiam nos carros, outros em sua cavalaria,
mas nós confiamos no nome do Senhor nosso Deus",

Sl. 19, 8

e a esta oração foram rechaçados pelo Senhor. Outra vez, no escuro, chegaram com uma luz fátua dizendo:

"Vimos trazer-te luz, Antão".

Fechei, porém, os olhos, orei, e de um golpe, apagou-se a luz dos ímpios. Poucos meses depois chegaram cantando salmos e citando as Escrituras. Mas

"eu fui como um surdo que não ouve".

Sl. 37, 14

Uma vez sacudiram a cela de um lado a outro, mas eu rezei, permanecendo inalterável em minha mente. Voltaram então e fizeram um ruído contínuo, dando golpes, sibilando e fazendo cabriolas. Pus-me então a orar e cantar salmos, e então começaram a gritar e lamentar-se como se estivessem extenuados, e eu louvei ao Senhor que reduziu a nada seu descaramento e insensatez, e lhes deu uma lição.

40.

Uma vez apareceu-me em visão um demônio realmente enorme, que teve a desfaçatez de dizer:

"Sou o Poder de Deus"

e:

"Sou a Providência. Que favor desejas que te faças?"

Então soprei-lhe um bafo, invocando o nome de Cristo e fiz empenho em golpeá-lo. Parece que tive êxito, porque logo, grande como era, desapareceu, e todos seus companheiros com ele, ao nome de Cristo. Outra vez, estava jejuando e chegou-se a mim o velhaco trazendo pães ilusórios. Pôs a dar-me conselhos:

"Come e deixa-te de privações.
Também tu és homem e estás a ponto de adoecer".

Mas eu, percebendo seu embuste, levantei-me para orar e ele não aguentou: desapareceu como fumaça através da porta.

Quantas vezes me mostrou no deserto uma visão de ouro que eu podia pegar e levar! Opus-me cantando um salmo e se dissolveu. Bateu-me muitas vezes e eu dizia:

"Nada poderá separar-me do amor de Cristo",

Rm. 8, 35

e eles então se golpeavam uns aos outros. Não fui eu, porém quem deteve e paralizou seus esforços, mas o Senhor que disse:

"Vi Satanás caindo do céu como um relâmpago".

Lc. 10, 18

Filhinhos meus, lembrem-se do que disse o Apóstolo:

"Apliquei-me isto a mim mesmo".

I Cor. 4, 6

e aprenderão a não descoroçoar-se em sua vida ascética e a não temer as ilusões do demônio e de seus companheiros.

41.

Já que me fiz louco entrando em todas estas coisas, escutem também o que segue, para que possa servi-lhes para sua segurança; creiam-me, não minto. Uma vez ouvi um golpe na porta de minha cela, sai e vi uma figura enormemente alta. Quando lhe perguntei:

"Quem és tu?",

respondeu-me:

"Sou Satanás".

"Que estás fazendo aqui?"

Ele respondeu:

"Que falta encontram em mim os monges e os demais cristãos, sem razão alguma?
Por que me expulsam a cada momento?"

"Bem, por que os molestas?",

disse-lhe.

Ele contestou:

"Não sou eu que os molesto, mas seus embaraços têm origens neles mesmos,
pois eu me enfraqueci. Não leste por acaso:

'O inimigo foi desarmado, arrasaste suas cidades'?

Sl. 9, 7

Agora não tenho nem lugar, nem armas, nem cidade.
Em toda parte há cristãos e até o deserto está cheio de monges.
Que se dediquem ao que lhes é próprio e não me maldigam sem causa".

Maravilhei-me então ante a graça do Senhor e lhe disse:

"Ainda que sejas sempre mentiroso e nunca fales a verdade,
no entanto desta vez a disseste, por mais que te desagrade fazê-lo.

Vês, Cristo, com sua vinda te fez impotente, derrubou-te e te despojou".

Ele, ouvindo o nome do Salvador e incapaz de suportar o calor que isto lhe causava, desvaneceu-se.

42.

Por isso, se até o próprio demônio confessa que não tem poder, deveríamos desprezá-lo totalmente. O mau e seus cães têm, é verdade, todo um provimento de velhacaria; nós, porém, conhecendo sua impotência, devemos desprezá-los. Não nos entreguemos, pois, nem nos desalentos, nem deixemos que haja covardia em nossa alma nem nos causemos medo a nós próprios, pensando:

"Oxalá não venha o demônio e me faça cair!"

"Queira Deus que não me leve para cima ou para baixo, ou apareça de repente e me tire dos eixos!"

Não deveríamos absolutamente ter semelhantes pensamentos, nem afligir-nos como se fôssemos perecer. Antes tenhamos coragem e alegremo-nos sempre como homens que estão sendo salvos. Pensemos que o Senhor está conosco, Ele que afugentou os maus espíritos e lhes tirou o poder.

Meditemos sempre sobre isto e recordemos que enquanto o Senhor estiver conosco, nossos inimigos não nos causarão dano. Pois quando vêm, atuam como nos encontram, e, no estado de alma que nos encontrem, apresentam suas ilusões. Se nos vêem cheios de medo, de pânico, imediatamente tomam posse como bandidos que encontram a praça desguarnecida; tudo o que pensemos de nós mesmos, aproveitam-no com redobrado interesse. Se nos Vêem temerosos e acovardados, aumentam nosso medo o mais que possam em forma de imaginações e ameaças, e assim a pobre alma é atormentada para o futuro. Se nos encontram, porém, alegrando-nos no Senhor, meditando nos bens futuros e contemplando as coisas que são do Senhor; considerando que tudo isto está em Suas mãos e que o demônio não tem poder sobre um cristão, que, de fato, não tem poder sobre ninguém, absolutamente, então, vendo a alma salvaguardada com tais pen samentos, envergonham-se e voltam atrás. Assim, quando o inimigo viu Jó fortificado, retirou-se dele, enquanto que encontrando Judas desprovido de toda defesa, aprisionou-o.

Por isso, se quisermos desprezar o inimigo, mantenhamos sempre nosso pensamento nas coisas do Senhor e que nossa alma goze com a esperança (Rm. 12, 12). Veremos então como os enganos do demônio se desvanecem como fumo e vê-lo-emos fugir em lugar de perseguir-nos. Eles são, como disse, objetos covardes, sempre receosos do fogo preparado para eles (Mt. 25, 41).

43.

Observem também isto quanto à intrepidez que devem ter na presença deles. Cada vez que venha uma aparição não se precipitem imediatamente cheios de medo covarde mas, seja como for, perguntem primeiro com coração resoluto:

"Quem és e donde vens?".

Se é uma visão boa, há de tranqüilizá-los e mudar o medo em alegria. No entanto, se tem que ver com o demônio, vai desvanecer-se logo vendo o ânimo decidido de vocês, pois a simples pergunta:

"Quem és e donde vens?"

é sinal de tranquilidade. Assim o aprendeu o filho de Nun (Jos. 5, 13 s) e o inimigo não se livrou de ser descoberto quando Daniel o ínterrogou (Dan. 13, 51-58)".