Santo Atanásio

VIDA E CONVERSÃO DE SANTO ANTÃO

251 - 356 DC

PRIMEIRA PARTE



PRÓLOGO.

Atanásio, Bispo, aos Irmãos no estrangeiro.

Excelente é a competição em que vocês entraram com os monges do Egito, decididos como estão a igualá-los ou mesmo sobrepujá-los na prática da vida ascética. De fato, já existem celas monásticas em sua terra e o nome de "monge" se estabeleceu por si mesmo. Este propósito é, em verdade, digno de louvor, e consignam suas orações que Deus o realize.

Vocês me pediram um relato sobre a vida de Santo Antão: querem saber como chegou à vida ascética, que foi antes dela, como foi sua morte, e se é verdade o que ele diz. Pensam modelar suas vidas segundo o zelo da dele. Muito me alegro em aceitar esse pedido, pois também eu tiro real proveito e ajuda da simples lembrança de Antão, e pressinto que também vocês, depois de ouvida a história, não só admirarão o homem, mas quererão emular sua resolução, quanto lhes seja possível. Realmente, para monges, a vida de Antão é modelo ideal de vida ascética.

Assim, não desconfiem dos relatos que recebem de outros a respeito dele, mas certifiquem-se de que, ao contrário, ouviram muito pouco. Em verdade, pouco lhes contaram quando há tanto que dizer. Eu mesmo, com tudo o que lhes conte por cartas, apenas lhes transmitirei algumas das lembranças que tenho dele. Vocês, por sua parte, não deixem de perguntar a todos os viajantes que cheguem de cá. Assim, talvez, com o que cada um conte do que saiba, ter-se-á um relato que aproximadamente lhe faça justiça.

Bem, quando recebi sua carta, quis mandar buscar alguns monges, em especial os que estiveram mais estreitamente unidos a ele. Assim teria eu aprendido detalhes adicionais e poderia mandar um relato mais completo. Mas o tempo de navegação já passou, e o homem do correio começa a impacientar-se. Por isso apresso-me a escrever o que sei - porque o vi com freqüência, e o que pude aprender do que foi seu companheiro por largo tempo e lhe vertia água nas mãos. Do começo ao fim considerei escrupulosamente a verdade: não quero que alguém recuse crer por lhe parecer excessivo o que ouviu, nem que considere menos a esse homem tão santo, por não lhe parecer sufici ente o que tenha sabido.



NASCIMENTO E JUVENTUDE DE ANTÃO.

1.

Antão foi egípcio de nascimento. Seus pais eram de boa linhagem e abastados. Como eram cristãos, também o menino cresceu como cristão. Quando menino viveu com seus pais, só conhecendo sua família e sua casa; quando cresceu e se fez moço e avançou em idade, não quis ir à escola, desejando evitar a companhia de outros meninos; seu único desejo era, como diz a Escritura acerca de Jacó (Gn. 25,27), levar uma simples vida no lar. Supõe-se que ia à igreja com seus pais, e aí não demonstrava o desinteresse de um menino nem o desprezo dos jovens por tais coisas. Ao contrário, obedecendo aos pais, prestava atenção às leituras e guardava cuidadosamente no coração o proveito que delas extraia. Além disso, sem abusar das fáceis condições em que vivia como criança, nunca importunou seus pais pedindo manjares caros ou finos, nem tinha prazer algum em coisas semelhantes. Ficava satisfeito com o que se lhe punha adiante e não pedia mais.



A VOCAÇÃO DE ANTÃO E SEUS PRIMEIROS PASSOS NA VIDA ASCÉTICA.

2.

Depois da morte de seus pais ficou só com sua única irmã, muito mais jovem. Tinha então uns dezoito a vinte anos, e tomou cuidado da casa e de sua irmã. Menos de seis meses depois da morte de seus pais, ia, como de costume, a caminho da igreja. Enquanto caminhava, ia meditando e refletia como os apóstolos deixaram tudo e seguiram o Salvador (Mt. 4,20; 19,27); como, segundo se refere nos Atos (4,35-37); os fiéis vendiam o que tinham e o punham aos pés dos Apóstolos para distribuição entre os necessitados, e quão grande é a esperança prometida nos céus para os que assim fazem (Ef. 1, 18; Col. 1, 5). Pensando estas coisas, entrou na igreja. Aconteceu que nesse momento se estava lendo o evangelho, e ouviu a passagem em que o Senhor disse ao jovem rico:

"Se queres ser perfeito, vende o que tens e dá-o aos pobres,
depois vem, segue-me e terás um tesouro no céu".

Mt. 19, 21

Como se Deus lhe houvera proposto a lembrança dos santos, e como se a leitura houvesse sido dirigida especialmente a ele, Antão saiu imediatemente da igreja e deu a propriedade que tinha de seus antepassados: trezentas "aruras", terra muito fértil e formosa. Não quis que nem ele nem sua irmã tivessem algo que ver com ela. Vendeu tudo o mais, os bens móveis que possuía, e entregou aos pobres a considerável soma recebida, deixando só um pouco para sua irmã.

3.

De novo, porém, entrando na igreja, ouviu aquela palavra do Senhor no Evangelho:

"Não se preocupem do amanhã".

Mt. 6,34

Não pôde suportar maior espera, mas foi e distribuiu aos pobres também este pouco. Colocou sua irmã entre virgens conhecidas e de confiança, entregando-a para que a educassem. Então ele dedicou todo seu tempo à vida ascética, atento a si mesmo e vivendo de renúncia a si mesmo, perto de sua própria casa. Ainda não existiam tantas celas monásticas no Egito, e nenhum monge conhecia sequer o longínquo deserto. Todo o que desejava enfrentar-se consigo mesmo, servindo a Cristo, praticava sozinho a vida ascética, não longe de sua aldeia. Naquele tempo havia na aldeia vizinha um ancião que desde sua juventude levava na solidão a vida ascética. Quando Antão o viu,

"teve zelo pelo bem",

Gl. 4, 18

e se estabeleceu imediatamente na vizinhança da cidade. Desde então, quando ouvia que em alguma parte havia uma alma esforçada, ia, como sábia abelha, buscá-la e não voltava sem havê-la visto; só depois de haver recebido, por assim dizer, provisões para sua jornada de virtude, regressava.

Aí, pois, passou o tempo de sua iniciação, se afirmou sua determinação de não voltar à casa de seus pais nem de pensar em seus parentes, mas dedicar todas as suas inclinações e energias à prática contínua da vida ascética. Fazia trabalho manual, pois tinha ouvido que

"o que não quer trabalhar não tem direito de comer".

II Ts. 3, 10

Do que recebia guardava algo para sua manutenção e o resto dava-o aos pobres. Orava constantemente, tendo aprendido que devemos orar em privado (Mt. 6, 6) sem cessar (Lc. 18, 1; 21, 36; I Ts. 5, 17). Além disso, estava tão atento à leitura da Sagrada Escritura, que nada lhe escapava: retinha tudo, e assim sua memória lhe servia de livros.

4.

Assim vivia Antão e era amado por todos. Por seu lado, submetia-se com toda sinceridade aos homens piedosos que visitava; e se esforçava por aprender aquilo em que cada um o avantajava em zelo e prática ascética. Observava a bondade de um, a seriedade de outro na oração; estudava a aprazível quietude de um e a afabilidade de outro; fixava sua atenção nas vigílias observadas por um e nos estudos de outro; admirava um por sua paciência, a outro por jejuar e dormir no chão; considerava atentamente a humildade de um e a paciente abstinência de outro; e em uns e outros notava especialmente a devoção a Cristo e o amor que mutuamente se tinham.

Havendo-se assim saciado, voltava a seu lugar de vida ascética. Então se apropriava do que havia obtido de cada um e dedicava todas as suas energias a realizar em si as virtudes de todos. Não tinha disputas com ninguém de sua idade, nem tampouco queria ser inferior a eles no melhor; e ainda isto fazia-o de tal modo que ninguém se sentia ofendido, mas todos se alegravam com ele. E assim todos os aldeões e os monges com os quais estava unido viram que classe de homem era ele e o chamavam "amigo de Deus", amando-o como filho ou irmão.



PRIMEIROS COMBATES COM OS DEMÔNIOS.

5.

Mas o demônio, que odeia e inveja o bem, não podia ver tal resolução num jovem, e se pôs a empregar suas velhas táticas também contra ele. Primeiro tratou de fazê-lo desertar da vida ascética, recordando-lhe sua propriedade, o cuidado de sua irmã, os apegos da parentela, o amor do dinheiro, o amor à glória, os inumeráveis prazeres da mesa e todas as demais coisas agradáveis da vida. Finalmente apresentou-lhe a austeridade e tudo o que se segue a essa virtude, sugerindo-lhe que o corpo é fraco e o tempo é longo. Em resumo, despertou em sua mente toda uma nuvem de argumentos, procurando fazê-lo abandonar seu firme propósito.

O inimigo viu, no entanto, que era impotente em face da determinação de Antão, e que antes era ele que estava sendo vencido pela firmeza do homem, derrotado por sua sólida fé e sua constante oração. Pôs então toda a sua confiança nas armas que estão

"nos músculos de seu ventre".

Jó 40, 16

Jactando-se delas, pois são sua preferida artimanha contra os jovens, atacou o jovem molestando-o de noite e instigando-o de dia, de tal modo que até os que viam Antão podiam aperceber-se da luta que se tratava entre os dois. 0 inimigo queria sugerir-lhe pensamentos baixos, mas ele os dissipava com orações; procurava incitá-lo ao prazer, mas Antão, envergonhado, cingia seu corpo com sua fé, orações e jejuns. Atreveu-se então o perverso demônio a disfarçar-se em mulher e fazer-se passar por ela em todas as formas possíveis durante a noite, só para enganar Antão. Mas ele encheu seus pensamentos de Cristo, refletiu sobre a nobreza da alma criada por Ele, e sua espiritualidade, e assim apagou o carvão ardente da tentação. E quando de novo o inimigo lhe sugeriu o encanto sedutor do prazer, Antão, enfadado com razão, e entristecido, manteve seus propósitos com a ameaça do fogo e dos vermes (Jd. 16, 21; Sir. 7, 19; Is. 66, 24; Mc. 9, 48). Sustentando isto no alto, como escudo, passou por tudo sem se dobrar.

Toda essa experiência levou o inimigo a envergonhar-se. Em verdade, ele, que pensara ser como Deus, fez-se louco ante a resistência de um homem. Ele que em sua presunção desdenhava carne e sangue, foi agora derrotado por um homem de carne em sua carne. Verdadeiramente o Senhor trabalhava com este homem, Ele que por nós tornou-se carne e deu a seu corpo a vitória sobre o demônio. Assim, todos os que combatem seriamente podem dizer:

"Não eu, mas a graça de Deus comigo".

I Cor. 15, 10

6.

Finalmente, quando o dragão não pôde conquistar Antão nem por estes últimos meios, mas viu-se arrojado de seu coração, rangendo seus dentes, como diz a Escritura (Mc. 9, 17), mudou, por assim dizer, sua pessoa. Tal como é seu coração,assim lhe apareceu: como um moço preto; e como inclinando-se diante dele, já não o molestou com pensamentos, pois o impostor tinha sido lançado fora, mas usando voz humana disse-lhe:

"A muitos enganei e venci;
mas agora que te ataquei a ti e teus esforços, como fiz com tantos outros,
mostrei-me demasiadamente fraco",

"Quem és tu que me falas assim?",

perguntou-lhe Antão. Apressou-se o outro a replicar com a voz lastimosa:

"Sou o amante da fornicação.
Minha missão é espreitar a juventude e seduzi-la,
chamam-me o espirito de fornicação.
A quantos eu enganei, decididos que estavam a cuidar de seus sentidos!
A quantas pessoas castas seduzi com minhas lisonjas!
Eu sou aquele por cuja causa o profeta censura os decaídos:

'Foram enganados pelo espirito da fornicação'.

Os. 4, 12

Sim, fui eu que os levei à queda.
Fui eu que tanto te molestei e tão a miúdo fui vencido por ti".

Antão deu, pois, graças ao Senhor e armando-se de coragem contra ele, disse:

"És então inteiramente desprezível;
és negro em tua alma, e tão débil como um menino.
Doravante já não me causas nenhuma preocupação,
porque o Senhor está comigo e me auxilia:

'Verei a derrota dos meus adversários' (Sl. 117, 7)".

Ouvindo isto, o negro desapareceu imediatamente, inclinando-se a tais palavras e temendo acercar-se do homem.



ANTÃO AUMENTA SUA AUSTERIDADE.

7.

Esta foi a primeira vitória de Antão sobre o demônio; ou melhor, digamos que este singular êxito em Antão foi do Salvador, que

"condenou o pecado na carne, a fim de que a justificação, prescrita na Lei
fosse realizada em nós, que vivemos não segundo a carne, mas segundo o Espírito".

Rm. 8, 3-4

Mas Antão não se descuidou nem se acreditou garantíndo por si mesmo pelo simples fato de se ter o demónio lançado a seus pés; tampouco o inimigo, ainda que vencido no combate, deixou de estar-lhe ã espreita. Andava dando voltas em redor, como um leão (I Pd. 5, 8), buscando uma ocasião contra ele. Antão, porém, tendo aprendido nas Escrituras quão diversos são os enganos do maligno (Ef. 6, 11), praticou seriamente a vida ascética, tendo em conta que, se não pudesse seduzir seu coração pelo prazer do corpo, trataria certamente de enganá-lo por algum outro método; porque o amor do demônio é o pecado. Resolveu, por isso, acostumar-se a um modo mais austero de vida. Mortificou seu corpo sem mais, e o sujeitou, para não acontecer que, tendo vencido uma ocasião, perdesse em outra (I Cor. 9, 27). Muitos se maravilhavam de suas austeridades, porém ele próprio as suportava com facilidade. O zelo que havia penetrado sua alma por tanto tempo transformou-se pelo costume em segunda natureza, de modo que ainda a menor inspiração recebida de outros levava-o a responder com grande entusiasmo. Por exemplo, observava as vigílias noturnas com tal determinação, que a miúdo passava toda a noite sem dormir, e isso não só uma vez, mas muitas, para admiração de todos. Assim também comia só uma vez ao dia, depois do cair do sol; às vezes cada dois dias, e com frequência tomava seu alimento só depois de quatro dias. Sua alimentação consistia em pão e sal; como bebida tomava só água. Não necessitamos sequer mencionar carne ou vinho,porque tais coisas tampouco se encontravam entre os demais ascetas. Contentava-se em dormir sobre uma esteira, embora regularmente o fizesse sobre o simples chão. Desprezava o uso de unguentos para a pele, dizendo que os jovens devem praticar a vida ascética com seriedade e não andar buscando coisas que amolecem o corpo; deviam antes acostumar-se ao trabalho duro, tendo em conta as palavras do Apóstolo:

"É na fraqueza que se revela minha força".

II Cor. 12, 10

Dizia que as energias da alma aumentam quanto mais débeis são os desejos do corpo.

Além disto estava absolutamente convencido do seguinte: pensava que apreciaria seu progresso na virtude e seu consequente afastamento do mundo não pelo tempo passado nisto mas por seu apego e dedicação. Assim, não se preocupava com o passar do tempo, mas dia por dia, como se estivesse começando a vida ascética, fazia os maiores esforços rumo à perfeição. Gostava de repetir a si mesmo as palavras de São Paulo:

"Esquecer-me do que fica para trás, e esforçar-me por alcançar o que está adiante"

Fl. 3, 13

recordando também a voz do profeta Elias:

"Viva o Senhor, em cuja presença estou neste dia".

I Rs 17, 1; 18, 15

Observava que, ao dizer "este dia", não estava contando o tempo que havia passado, mas, como que começando de novo, trabalhava duro cada dia para fazer de si mesmo alguém que pudesse aparecer diante de Deus: puro de coração e disposto a seguir sua vontade. E costumava dizer que a vida levada pelo grande Elias devia ser para o asceta como um espelho no qual poderia sempre mirar a própria vida.



ANTÃO RECLUSO NOS SEPULCROS. MAIS LUTAS COM OS DEMÔNIOS.

8.

Assim dominou-se Antão a si mesmo. Decidiu então mudar-se para os sepulcros que se achavam a certa distância da aldeia. Pediu a um de seus familiares que lhe levasse pão a longos intervalos. Entrou, pois, em uma das tumbas; o mencionado homem fechou a porta atrás dele, e assim ficou dentro sozinho. Isto era mais do que o inimigo podia suportar, pois em verdade temia que agora fosse encher também o deserto com a vida ascética. Assim chegou uma noite com grande número de demónios e o açoitou tão implacavelmente que ficou lançado no chão, sem fala pela dor. Afirmava que a dor era tão forte que os golpes não podiam ter sido infligidos por homem algum para causar semelhante tormento. Pela providência de Deus, porque o Senhor não abandona os que nele esperam, seu parente chegou no dia seguinte trazendo-lhe pão. Quando abriu a porta e o viu atirado no chão como morto, levantou-o e o levou até a igreja da aldeia e o depositou sobre o solo. Muitos de seus parentes e da gente da aldeia sentaram-se em volta de Antão como para velar um cadáver. Mas pela meia-noite Antão recobrou o conhecimento e despertou, Quando viu que todos estavam dormindo e só seu amigo se achava desperto, fez-lhe sinais para que se aproximasse e pediu-lhe que o levantasse e levasse de novo para os sepulcros, sem despertar ninguém.

9.

O homem levou-o de volta, a porta foi trancada como antes e de novo ficou dentro, sozinho. Pelos golpes recebidos estava demasiado fraco para manter-se de pé; orava então, estendido no solo. Terminada sua oração, gritou:

"Aqui estou eu, Antão, que não me acorvadei com teus golpes,
e ainda que mais me dês, nada me separará do amor de Cristo (Rm. 8, 35)".

E começou a cantar:

"Se um exército se acampar contra mim, meu coração não temerá".

Sl. 26, 3

Tais eram os pensamentos e palavras do asceta, mas o que odeia o bem, o inimigo, assombrado de que depois de todos os golpes ainda tivesse valor para voltar, chamou seus cães e arrebatado de raiva disse:

"Vêem vocês que não pudemos deter esse tipo,
nem com o espirito de fornicação, nem com os golpes;
ao contrário, chega até a desafiar-nos.
Vamos proceder contra ele de outro modo".

A função de malfeitor não é difícil para o demônio. Essa noite, por isso, fizeram tal estrépito que o lugar parecia sacudido por um terremoto. Era como se os demônios abrissem passagens pelas quatro paredes do recinto, invadindo impetuosamente através delas em forma de bestas ferozes e répteis. De repente todo o lugar se encheu de imagens fantasmagóricas de leões, ursos, leopar dos, touros, serpentes, víboras, escorpiões e lobos; cada qual se movia segundo o exemplar que havia assumido. O leão rugia, pronto a saltar, sobre ele; o touro, quase a atravessá-lo com os chifres; a serpente retorcia-se sem o alcançar completamente; o lobo acometia-o de frente. E a gritaria armada simultaneamente por todas essas aparições era espantosa, e a fúria que mostravam, feroz.

Antão, atormentado e pungido por eles, sentia aumentar a dor em seu corpo; no entanto, permanecia sem medo e com o espirito vigilante. Gemia, é verdade, pela dor que atormentava seu corpo, mas a mente era senhora da situação e, como por debique, dizia-lhes:

"Se tivessem poder sobre mim, teria bastado que viesse um só de vocês;
mas o Senhor lhes tirou a força e por isso se esforçam em fazer-me perder o juízo com seu número;
é sinal de fraqueza terem de imitar animais ferozes".

De novo teve a valentia de dizer-lhes:

"Se é que podem, se é que receberam poder sobre mim, não se demorem, venham ao ataque.
E se nada podem, para que esforçar-se tanto sem nenhum fim?
Porque a fé em Nosso Senhor é selo para nós e muro de salvação".

Assim, depois de haver intentado muitas argúcias, rangeram os dentes contra ele, porque eram eles próprios que estavam ficando loucos e não ele.

10.

De novo o Senhor não se esqueceu de Antão em sua luta, mas veio ajudá-lo. Pois quando olhou para cima, viu como se o teto se abrisse e um raio de luz baixasse até ele. Foram-se os demônios de repente, cessou-lhe a dor do corpo, e o edifício estava restaurado como antes. Notando que a ajuda chegara, Antão respirou livremente e sentiu-se aliviado de suas dores. E perguntou à visão:

"Onde estavas tu?
Por que não apareceste no começo para deter minhas dores?".

E uma voz lhe falou:

"Antão, eu estava aqui, mas esperava ver-te enquanto agias.
E agora, porque agüentastes sem te renderes,
serei sempre teu auxílio e te tornarei famoso em toda parte".

Ouvindo isto, levantou-se e orou: e ficou tão for talecido que sentiu seu corpo mais vigoroso que antes. Tinha por aquele tempo uns trinta e cinco anos de idade.



ANTÃO BUSCA O DESERTO E HABITA EM PISPIR.

11.

No dia seguinte ele se foi, inspirado por um zelo maior ainda pelo serviço de Deus. Foi ao encontro do ancião já antes mencionado e rogou-lhe que fosse viver com ele no deserto. O outro declinou o convite devido à sua idade e porque tal modo de viver não era costume. Então ele se foi sozinho para a montanha. Ai estava, entretanto, de novo o inimigo. Vendo sua seriedade e querendo frustrá-la, projetou a imagem ilusória de um grande disco de prata sobre o caminho. Antão, porém, penetrando o ardil daquele que odeia o bem, de teve-se e, mirando o disco, desmascarou nele o demônio, dizendo:

"Um disco no deserto? De onde vem isto?
Esta não é uma estrada frequentada, e não há sinais de que haja passado gente por este caminho.
É de grande tamanho, e não pode haver caído inadvertidamente.
Em verdade, ainda que fora perdido, o dono teria voltado a procurá-lo,
e seguramente o haveria encontrado, pois esta região é deserta.
Isto é engano de demônio.
Não vás frustrar minha resolução com estas coisas, demônio!
'Teu dinheiro pereça contigo' (At. 8, 20)".

E ao dizer isto Antão, o disco desapareceu como fumo.

12.

Logo, enquanto caminhava, viu de novo, não mais outra ilusão, mas ouro verdadeiro, espalhado ao longo do caminho. Pois bem, seja que o próprio inimigo lhe tivesse chamado a atenção, ou fosse um bom espirito que atraiu o lutador, ficou demonstrado ao demônio que ele não se preocupava nem sequer das riquezas autênticas; ele próprio não o indicou, e por isso não sabemos nada senão que era realmente ouro o que ali havia. Quanto a Antão, ficou surpreendido pela quantidade que havia, mas passou por ele como se fora fogo, e seguiu seu caminho sem olhar para trás. Ao contrário, pôs-se a correr tão rápido que em pouco tempo perdeu de vista o lugar e dele sesapareceu.

Assim, firmando-se sempre mais em seu próposito, apressou-se em direção à montanha. Em lugar distante do rio encontrou um fortim deserto que com o correr do tempo achava-se infestado de répteis. Ali se estabeleceu para viver. Os répteis, como que expulsos por alguém, foram-se de repente. Bloqueou a entrada, e depois de enterrar pão para seis meses, assim o fazem os tebanos e muitas vezes os pães se mantêm frescos por todo um ano, e tendo água perto, desapareceu como num santuário. Ficou sozinho, não saindo nunca e não vendo ninguém passar. Por muito tempo perseverou nesta prática ascética; só duas vezes por ano recebia pão, que lhe deixavam cair pelo teto.

13.

Seus amigos que vinham vê-lo passavam a miúdo dias e noites fora, pois não queria deixá-los entrar. Ou viam barulho dentro como de multidão frenética, fazendo ruídos, armando tumultos, gemendo lastimosamente e dando guinchos:

"Sai de nosso domínio! Que vens fazer no deserto?
Tu não aguentas nossa perseguição!"

A princípio, os que estavam fora criam haver homens lutando com ele e que haviam entrado por escadas, mas quando espreitaram por um buraco e não viram ninguém, deram-se conta de que os demônios é que estavam na coisa, e cheios de medo, chamaram Antão que estava mais inquieto por eles do que preocupado com os demônios. Chegando á porta, aconselhou-os que se fossem e não tivessem medo. Disse-lhes:

"Os demônios só conjuram fantasmas contra o medroso.
Façam agora o sinal da cruz e voltem a suas casas sem temor,
e deixem que eles se enlouqueçam a si mesmos".

Foram-se então, fortalecidos com o sinal da cruz , enquanto ele ficava sem sofrer dos demônios mal algum , sem se cansar, nem se alterar na contenda, porque a ajuda que recebia do alto por meio de visões e a debilidade de seus inimigos davam-lhe grande alivio em suas penas e ânimo para um entusiasmo maior. Seus amigos vinham uma ou outra vez supondo encontra-lo morto, mas o ouviam cantar:

"Levanta-se Deus e seus inimigos se dispersam; fogem de sua presença os que o odeiam.
Como a fumaça, eles se dissipam; como se derrete a cera ante o fogo, assim perecem os ímpios diante de Deus".

Sl. 67, 2

E ainda:

"Todos os povos rodeavam-me, em nome do Senhor eu os expulsei".

Sl. 117, 10



ANTÃO ABANDONA A SOLIDÃO E SE CONVERTE EM PAI ESPIRITUAL.

14.

Assim passou quase vinte anos, só praticando a vida ascética, não saindo nunca e sendo raramente visto por outros. Depois disto, como havia muitos que ansiavam e aspiravam imitar sua santa vida, e alguns de seus amigos vieram e forçaram a porta, derrubando-a, Antão saiu como de um santuário, como um iniciado nos sagrados mistérios e cheio do Espirito de Deus. Foi a primeira vez que se mostrou fora do fortim aos que vieram a ele. Quando o viram, estavam estupefatos ao comprovar que seu corpo conservava a antiga aparência: não estava nem obeso pela falta de exercício nem macilento pelos jejuns e lutas com os demônios. Era o mesmo homem que haviam conhecido antes de seu retiro.

O estado de sua alma era puro, pois não estrava nem retraído pela aflição, nem dissipado pela alegria, nem dominado pela distração ou pelo desalento. Não se desconcertou ao ver a multidão, nem se orgulhou quando viu tantos que o recebiam. Mantinha-se completamente controlado, como homem guiado pela razão e com grande equilíbrio do caráter.

Por ele o Senhou curou muitos dos presentes que tinham enfermidades corporais, e a outros libertou de espíritos impuros. Concedeu também a Antão o encanto no falar; e assim confortou a muitos em suas penas e reconciliou a outros que brigavam. Exortou a todos a nada preferir neste mundo ao amor de Cristo. E quando em seu discurso exortou-os a pensar nos bens futuros e na bondade demonstrada a nós por Deus,

"que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por nós",

Rm. 8, 32

induziu muitos a abraçar a vida monástica. E assim apareceram celas monásticas na montanha, e o deserto se povoou de monges que abandonavam os seus e se inscreviam como cidadãos do céu.

15.

Uma vez teve necessidade de atravessar o canal de Arsione, por ocasião de uma visita aos irmãos. O canal estava cheio de crocodilos. Orou simplesmente, meteu-se com todos os seus companheiros, e passou ao outro lado sem ser tocado. De volta â cela, aplicou-se com todo o zelo a seus santos e vigorosos exercícios. Por meio de constantes conferências inflamava o ardor dos que já eram monges e incitava muitos outros ao amor a vida ascética; e logo, na medida em que sua mensagem arrastava homens após ele, o número de celas monásticas multiplicava-se, e era para todos como pai e guia.