TERCEIRA PARTE



VIRTUDE MONÁSTICA.

44.

Enquanto Antão discorria sobre esses assuntos com eles, todos se regozijavam. Aumentava em uns o amor à virtude, em outros desaparecia a negligência, e em outros era reprimida a vanglória. Todos prestavam atenção a seus conselhos sobre os ardis do inimigo, e se admiravam da graça dada a Antão pelo Senhor para díscernir os espíritos.

Suas celas solitárias nas colinas eram assim como tendas cheias de coros divinos, cantando salmos, estudando, jejuando, orando, gozando com a esperança da vida futura, trabalhando para dar esmolas e preservando o amor e a harmonia entre si. E em realidade, era como ver um país diferente, uma terra de piedade e justiça. Não haveria nem malfeitores nem vítimas do mal, nem acusações do cobrador de impostos, mas uma multidão de ascetas, todos com um só propósito: a virtude. Assim, ao ver estas celas solitárias e o admirável afastamento dos monges, não se podia deixar de elevar a voz e dizer:

"Como são belas suas tendas, ó Jacó, e tuas moradas ó Israel:
como arroios se estendem, como horto junto ao rio,
como tendas plantadas pelo Senhor, como cedros juntos às águas"

Num. 24, 5

45.

Antão voltou como de costume à sua própria cela e intensificou as práticas ascéticas. Dia por dia suspirava na meditação das moradas celestiais (Jo. 14, 2), com todo anelo, vendo a breve existência do homem. Ao pensamento da natureza espiritual da alma, envergonhava-se quando devia dispor-se a comer ou dormir ou a executar outras necessidades corporais. Muitas vezes, quando ia compartilhar seu alimento com muitos outros monges, sobrevinha-lhe o pensamento do alimento espiritual e, rogando que o perdoassem, afastava-se deles, como que envergonhado de que outros o vissem comendo. Comia, certamente, por necessidade de seu corpo, e frequentemente em companhia dos irmãos, pertubado por causa deles, mas falando-lhes pelo auxilio que suas palavras significavam para eles. Costuma dizer que se deveria dar todo seu tempo à alma antes que ao corpo. Certamente, posto que a necessidade o exige, algo de tempo deve ser dado ao corpo, mas em geral deveríamos dar nossa primeira atenção à alma e procurar seu progresso. Ela não deveria ser arrastada para baixo pelos prazeres do corpo, mas este é que deve ser posto sob a sujeição da alma. Isto, dizia, é o que o Salvador expressou:

"Não se preocupem por sua vida, pelo que hão de comer ou beber,
nem estejam ansiosamente inquietos. Os mundanos é que buscam todas estas coisas.
O Pai sabe que têm necessidade de tudo isto.
Procurem primeiro seu reino, e tudo o mais lhes será dado por acréscimo".

Lc. 12, 22, 29-31; Mt. 6, 31-33



ANTÃO VAI A ALEXANDRIA SOB A PERSEGUIÇÃO DO IMPERADOR MAXIMIANO (311).

46.

Depois disto, a perseguição de Maximiano, que irrompeu nessa época, abateu-se sobre a Igreja. Quando os santos mártires foram levados a Alexandria, ele também deixou sua cela e os seguiu, dizendo:

"Vamos, também nós, tomar parte no combate
se somos chamados, ou a ver os combatentes".

Tinha grande desejo de sofrer o martírio, mas não querendo entregar-se, servia aos confessores da fé nas minas e nas prisões. Afanava-se no tribunal, estimulando o zêlo dos mártires quando eram chamados e escoltando-os quando iam para o martírio, ficando junto deles até que expirassem. Por isso o juiz, vendo sua intrepidez e a de seus companheiros e seu zelo nestas coisas, deu ordem para que nenhum monge aparecesse no tribunal ou ficasse na cidade. Todos os demais julgaram conveniente esconder-se esse dia; Antão, porém, preocupou-se tão pouco com isso que lavou suas roupas e no dia seguinte colocou-se à frente de todos, num proeminente, à vista e paciência do prefeito. Enquanto todos se admiraram e o prefeito mesmo o via, ao acercar-se com todos os seus funcionários, ele estava ali de pé, sem medo, mostrando o espírito anelante próprio a nós cristãos. Como expressei antes, orava para que também ele pudesse ser martirizado, e por isso penalizava-se por não haver sido.

Mas o Senhor cuidava dele para nosso bem e para o bem de outros, a fim de que pudesse ser mestre da vida ascética que ele próprio havia aprendido nas Sagradas Escrituras. De fato, muitos, só ao ver sua atitude, converteram-se em zelosos seguidores de seu modo de vida. De novo, por isso, continuou com o costume de ir ao serviço dos confessores da fé como se estivesse encadeado junto com eles (Hb. 13, 3), esgotou-se em seu afã por eles.



O MARTÍRIO DIÁRIO DA VIDA MONÁSTICA.

47.

Quando finalmente cessou a perseguição e o bispo Pedro, de santa memória, sofreu o martírio, voltou à solidão de sua cela e aí foi mártir cotidiano em sua consciência, lutando sempre as batalhas da fé. Praticou uma vida ascética cheia de zelo e mais intensa. Jejuava continuamente, sua veste interior era de pêlo, e de couro a exterior, e a conservou até o dia de sua morte. Nunca banhou seu corpo, nem tampouco lavou seus pés, nem se permitiu metê-los ma água sem necessidade. Ninguém viu seu corpo nu até que morreu e foi sepultado.

48.

De volta à solidão, determinou um período de tempo durante o qual não sairia nem receberia ninguém. Então um oficial militar, um certo Martiniano, chegou a importunar Antão: tinha uma filha à qual o demônio molestava. Como persistia batendo à porta e rogando que saísse e rogasse a Deus por sua filha, Antão não quis sair, mas por sua janelinha lhe disse:

"Homem, por que fazes todo esse barulho comigo? Sou um homem como tu.
Se crês em Cristo a quem eu sirvo, vai e como crês, ora a Deus e Ele te ouvirá".

O homem foi, crendo e invocando a Cristo, e sua filha foi libertada do demônio. Muitas outras coisas fez também o Senhor por intermédio dele, segundo a palavra:

"Peçam e lhes será dado".

Lc. 11, 9

Muitíssima gente, que sofria, dormia simplesmente fora de sua cela, pois ele não queria abrir-lhes a porta, eram curados por sua fé e sincera oração.



FUGA PARA A MONTANHA INTERIOR.

49.

Quando se viu acossado por muitos e impedido de retirar-se como era seu propósito e seu desejo, e inquieto pelo que o Senhor estava operando por intermédio dele, pois podia transformar-se em presunção, ou poderia alguém estimá-lo mais do que convinha, refletiu e foi-se para a Alta Tebaida, a um povo que o desconhecia. Recebeu pão dos irmãos e sentou-se à margem do rio, esperando ver um barco que passasse e no qual pudesse partir. Enquanto estava assim esperando, ouviu-se uma voz do alto:

"Antão, aonde vais e por que?"

Não se desorientou-se mas, ouvindo outras vezes tais palavras, contestou:

"Já que as multidões não me permitem estar só, quero ir para a Alta Tebaida,
porque são muitos os incômodos a que estou sujeito aqui,
e sobretudo porque me pedem coisas para além de meu poder".

"Se sobes à Tebaida",

disse a voz,

"ou se, como também pensastes, desces à Bucólia, terás mais, sim, o duplo de incômodos a suportar.
Mas se realmente queres estar contigo mesmo, então vai-te ao deserto interior".

"Mas", disse Antão,

"quem me mostrará o caminho? Eu não o conheço".

De repente chamaram-lhe a atenção uns sarracenos que estavam a tomar aquele caminho. Aproximando-se, Antão lhes pediu para ir com eles ao deserto. Como por ordem da Providência, deram-lhe as boas-vindas. E viajou com eles três dias e três noites, e chegou a uma montanha muito alta, tendo ao pé uma água clara como cristal e muito fresca. Estendendo-se dali havia uma planície e algumas tamareiras.

50.

Como inspirado por Deus, Antão ficou encantado com o lugar porque foi isto que quis dizer Quem falou com ele à margem do Rio. Começou por conseguir uns pães de seus companheiros de viagem e ficou sozinho na montanha, sem companhia alguma. Daí em diante olhou esse lugar como se houvera encontrado seu próprio lar. Quanto aos sarracenos, notando o entusiasmo de Antão, fizeram do lugar um ponto em suas travessias, e estavam contentes de levar-lhes pão. Também as tamareiras lhe davam uma pequena frugal mudança de dieta. Mais tarde os irmãos, inteirando-se do lugar, como filhos preocupados por seu pai, engenharam-se para enviar-lhe pão. No entanto, vendo Antão que o pão lhes causava incômodo, pois tinham de aumentar o trabalho que já suportavam, e querendo demonstrar consideração aos monges também nisso, refletiu sobre o assunto e pediu a alguns de seus visitantes que lhe trouxessem um enxadão, um machado e alguns grãos.

Quando o trouxeram, ele foi ao terreno junto da montanha e, encontrando um pedaço adequado, com abundante provisão de água vertente, cultivou-o e semeou. Assim o fez cada ano e conseguia seu pão. Estava feliz, pois com isto não era molesto a ninguém e em tudo tratava de não ser carga para outros. Mais tarde, porém, vendo que de novo chegava gente para vê-lo, começou a cultivar também hortaliças, a fim de que seus visitantes tivessem algo mais para restaurar suas forças depois de tão cansativa e pesada viagem.

No começo, os animais do deserto que vinham beber água danificavam as plantações de sua horta. Pegou então um deles, reteve-o suavemente e disse a todos:

"Por que me prejudicam se não lhes faço nada a nenhum de vocês?
Retirem-se e, em nome do Senhor, não se aproximem outra vez destas coisas!"

E desde então, como atemorizados com essas ordens, lá não voltaram mais.



DE NOVO OS DEMÔNIOS.

51.

Assim esteve sozinho na Montanha Interior, dando seu tempo à oração e à prática da vida ascética. Os irmãos que foram em sua busca rogaram-lhe que lhes permitisse ir cada mês e levar-lhe azeitonas, legumes e azeite, pois agora já era ancião.

De seus visitantes soubemos quantos combates teve de suportar enquanto viveu ali,

"não contra carne e sangue",

Ef. 6, 12

como está escrito, mas em luta com os demônios. Também ali ouviram tumultos e muitas vozes e clamor como de armas. À noite viram a montanha encher-se de vida com animais selvagens. Viram-no também lutando como com inimigos visíveis, e orando contra eles. A um que o visitou falou-lhe palavras de alento enquanto ele próprio mantinha-se firme na contenda, de joelhos e orando ao Senhor. Era realmente notável que, sozinho como estava nesse despovoado, nunca desmaiasse ante os ataques dos demônios, nem tampouco, com todos os animais e répteis que havia, tivesse medo de sua ferocidade. Como está na Escritura, ele realmente

"confiava no Senhor como o monte de Sião",

Sl. 124, 1

com ânimo inquebrantável e intrépido. Assim os demônios antes fugiam dele, e os animais selvagens fizeram paz com ele, como está escrito (Jó 5, 23).

52.

O mau pôs estreita guarda sobre Antão e rangeu os dentes contra ele, como o disse Davi no salmo (Sl. 34, 16), mas Antão foi animado pelo Salvador, não sendo danificado por essa vilania e sutil estratégia. Enviou-lhe animais selvagens enquanto estava em suas vigílias noturnas, e em plena noite todas as hienas do deserto saíram de suas tocas e o rodearam. Tendo-o no centro, abriam suas faces e ameaçavam mordê-lo. Ele, porém, conhecendo bem as manhas do inimigo, disse-lhes:

"Se receberam poder para fazer isto contra mim, estou disposto a ser devorado;
mas se foram enviadas pelo demônio, saiam imediatamente, porque sou servidor de Cristo".

Enquanto Antão dizia isto, fugiram como açoitados pelo látego dessa palavra.

53.

Poucos dias depois, enquanto estava trabalhando, porque o trabalho sempre era parte de seu propósito, alguém chegou à porta e puxou a corda com que trabalhava. Estava fazendo cestos que dava a seus visitantes em troca do que lhe traziam. Levantou-se e viu um monstro que parecia homem até as coxas, mas com pernas e pés de asno. Antão fez simplesmente o sinal da cruz e disse

"Sou servidor de Cristo.
Se foste enviado contra mim, aqui estou".

O monstro porém, com seus demônios, fugiu tão rápido que sua própria rapidez o fez cair e morrer. A morte do monstro veio a significar o fracasso dos demônios: fizeram o que puderam para que saísse do deserto e não o conseguiram.



ANTÃO VISITA OS IRMÃOS AO LONGO DO NILO.

54.

Uma vez os monges pediram-lhe que voltasse para eles e passasse algum tempo visitando-os e a seus estabelecimentos. Fez a viagem com os monges que vieram a seu encontro. Um camelo ia carregado com pão e água, já que em todo esse deserto não havia água, e a única potável estava na montanha de onde haviam saído e onde estava a sua cela. Indo a caminho, acabou-se a água, e estavam todos em perigo quando o calor era mais intenso. Andaram buscando e voltaram sem a encontrar. Estavam por demais fracos para poderem caminhar. Lançaram-se ao chão e deixaram partir o camelo, entregando-se ao desespero.

Vendo o perigo em que todos estavam, o ancião encheu-se de aflição. Suspirando profundamente, apartou-se um pouco deles. Ajoelhou-se, estendeu as mãos e orou. E de repente o Senhor fez brotar uma fonte no lugar onde estava orando, e todos puderam beber e refrescar-se. Encheram os odres e puseram-se a buscar o camelo até que o encontraram: sucedeu que o cordel se embaraçara numa pedra e ficara preso. Levaram-no a beber e carregando-o com os odres concluíram sua viagem sem mais prejuízos ou acidentes.

Ao chegar às celas exteriores, todos lhe deram cordiais boas vindas, olhando-o como a um pai. Por seu lado, como trazendo-lhes provisões de sua montanha, ele os entretinha com suas narrações e lhes comunicava sua experiência prática. E de novo houve alegria nas montanhas e anelos de progresso, e de consolo que vem de uma fé comum (Rm. 1, 12). Também se alegrou ao contemplar o zelo dos monges, e ao ver sua irmã que havia envelhecido em sua vida de virgindade, sendo ela mesma guia espiritual de outras virgens.



OS IRMÃO VISITAM A ANTÃO.

55.

Depois de alguns dias voltou à sua montanha. Desde então muitos foram visitá-lo, entre eles muitos cheios de aflição, que arriscavam a viagem até ele. Para todos os monges que chegavam até ele, tinha sempre o mesmo conselho: pôr sua confiança no Senhor e amá-lo, guardar-se a si mesmo dos maus pensamentos e dos prazeres da carne, e não ser seduzidos por um estômago cheio, como está escrito nos Provérbios (Pr. 24, 15). Deviam fugir da vanglória e orar continuamente; cantar salmos antes e depois do sono; guardar no coração os mandamentos impostos nas Escrituras e recordar os feitos dos santos, de modo que a alma, ao recordar os mandamentos, possa inflamar-se ante o exemplo de seu zelo. Aconselhava-os sobretudo recordar sempre a palavra do apóstolo:

"Que o sol não se ponha sobre vossa ira",

Ef. 4, 26

e a considerar estas palavras como ditas em relação a todos os mandamentos: o sol não se deve pôr não apenas sobre nossa ira, como sobre nenhum outro pecado. "É inteiramente necessário que o sol não nos condene por nenhum pecado de dia, nem a lua por nenhuma falta noturna, inclusive o mau pensamento. Para assegurar-nos disso, é bom ouvir e guardar o que diz o apóstolo:"

"Julguem-se e provem-se a si mesmos".

II Cor. 13, 5

"Por isso, cada um deve fazer diariamente um exame do que fez de dia e de noite; se pecou, deixe de pecar; se não pecou, não se orgulhe disso. Persevere antes na prática do bem e não deixe de estar em guarda. Não julgue o próximo nem se declare justo a si mesmo, como diz o santo apóstolo Paulo",

"até que venha o Senhor e traga à luz o que está escondido".

I Cor. 4, 5; Rm. 2, 16

"Muitas vezes não temos consciência do que fazemos; nós não o sabemos, mas o Senhor conhece tudo. Por isso, deixando a Ele o julgamento, compadeçamo-nos mutuamente e"

"levemos as cargas uns dos outros".

Gl. 6, 2

"Julguemo-nos a nós mesmos e, se nos vemos diminuídos, esforcemo-nos com toda a seriedade por reparar nossa deficiência. Que esta observação seja nossa salvaguarda contra o pecado: anotemos nossos atos e impulsos da alma como se tivéssemos de informar a outro: podem estar seguros de pura vergonha de que isto seja conhecido, deixaremos de pecar e de prosseguir com pensamentos pecaminosos. Quem gosta que o vejam pecando? Quem, depois de pecar, não prefereria mentir, esperando escapar assim de que o descubram? Assim como não quereríamos abandonar-nos ao prazer à vista de outros, assim também se tivéssemos de escrever nossos pensamentos para dizê-lo a outro, muito nos guardaríamos de maus pensamentos, por vergonha que alguém os soubesse. Que essa informação escrita seja, pois, como os olhos de nossos irmãos ascetas, de modo que, ao nos envergonharmos de escrever como se nos estivessem vendo, jamais nos demos ao mal. Modelando-nos desta maneira, seremos capazes de"

"levar nosso corpo a obedecernos",

I Cor. 9, 27

"para agradar ao Senhor e calcar aos pés as maquinações do inimigo".



MILAGRES NO DESERTO.

56.

Estes eram os conselhos a seus visitantes. Com os que sofriam unia-se em simpatia e oração, e amiúdo e em muitos e variados casos, o Senhor ouviu sua oração. Nunca, porem, se jactou quando atendido, nem se queixou não o sendo. Sempre deu graças ao Senhor, e animava-se os que sofriam a ter paciência e a se aperceberem de que a cura não era prerrogativa dele nem de ninguém, mas de Deus só, que a opera quando quer e a favor de quem Ele quer. Os que sofriam ficavam satisfeitos, recebendo as palavras do ancião como cura, pois aprendiam a ter paciência e a suportar o sofrimento. E os que eram curados aprendiam a dar graças, não a Antão, mas a Deus só.

57.

Havia, por exemplo, um homem chamado Frontão, o riúndo de Palatium. Tinha uma enfermidade horrível: mordia continuamente a língua e sua vista ia se encurtando. Chegou à montanha e pediu a Antão que rogasse por ele. Orou e disse a Frontão:

"Vai-te, vais ser curado".

Ele, porém, insistiu e ficou durante dias, enquanto Antão prosseguia dizendo-lhe:

"Não ficarás curado enquanto ficares aqui.
Vai-te, e quando chegares ao Egito, verás em ti o milagre".

O homem consentiu afinal e foi-se; e ao chegar à vista do Egito, sua enfermidade desapareceu. Sarou segundo as instruções que Antão havia recebido do Senhor enquanto orava.

58.

Uma menina de Busiris em Trípoli padecia de uma enfermidade terrível e repugnante: uma supuração nos olhos, nariz e ouvidos transformava-se em vermes quando caia no chão. Além disso tinha o corpo paralisado e seus olhos eram defeituosos. Seus pais ouviram falar de Antão por alguns monges que iam vê-lo, e tendo fé no Senhor que curou a hemorroísa (Mt. 9, 20), pediram-lhes licença para irem também com sua filha,e eles consentiram. Os pais e a menina ficaram ao pé da montanha com Pafnúncio, o confessor e monge. Os demais subiram, e quando se dispunham a falar-lhe da menina, ele adiantou-se e lhes falou tudo sobre os sofrimentos dela, e de como havia feito com eles a viagem. Então, quando lhe perguntaram se essa gente podia subir, não lhes permitiu e disse:

"Podem ir e, se não morreu, vão encontrá-la sã.
Não é certamente nenhum mérito meu que ela tenha querido vir a um infeliz como eu.
Não, em verdade; sua cura é obra do Salvador,
que mostra sua misericórdia em todo lugar aos que o invocam.
Neste caso o Senhor ouviu sua oração, e Seu amor pelos homens me revelou
que curará a enfermidade da menina onde ela está".

Em todo caso o milagre se realizou: quando desceram, encontraram os pais felizes e a menina em perfeita saúde.

59.

Sucedeu também que quando dois dos irmãos estavam em viagem para vê-lo, acabou-se-lhes a água; um morreu e o outro estava a ponto de morrer. Já não tinha forças para andar, mas jazia no chão esperando também a morte. Sentado na montanha, Antão chamou dois monges, que casualmente estavam ali, e os compeliu a se apressarem:

"Tomem um jarro d'água e corram descendo pelo caminho do Egito;
vinham dois, um acaba de morrer e o outro também morrerá, se vocês não se apressarem.
Foi-me revelado isto agora na oração".

Foram-se os monges, acharam um morto e o enterraram. Ao outro fizeram-no reviver com água e o levaram ao ancião. A distância era de um dia de viagem. Agora, se alguém pergunta porque não falou antes de morrer o outro, sua pergunta é injustificada. O decreto de morte não passou por Antão, mas por Deus que a determinou para um, enquanto revelava a condição do outro. Quanto a Antão, o admirável é que, enquanto estava na montanha com seu coração tranqüilo, mostrou-lhe o Senhor coisas distantes.

60.

Noutra ocasião em que estava sentado na montanha, olhando para cima, viu no ar alguém levado para o alto, entre grande regozijo de outros que lhe saiam ao encontro. Admirando-se de tão grande multidão e pensando quão felizes eram, orou para saber quem podia ser este. De repente uma voz se dirígiu a ele dizendo-lhe que era a alma do monge Amón de Nitria, que levou vida ascética até idade avançada. Pois bem, a distância de Nitria à montanha onde Antão estava era de treze dias de viagem. Os que estavam com Antão, vendo o ancião tão extasiado, perguntaram-lhe o motivo e ele lhes contou que Amón acabava de morrer.

Este era bem conhecido pois vinha amiúde e muitos milagres foram operados por seu intermédio. Segue um exemplo. Uma vez tinha que atravessar o chamado rio Lycus na estação das cheias; pediu a Teodoro que se adiantasse para que não se vissem nus um ao outro enquanto atravessavam o rio a nado. Então, quando Teodoro se foi, ele sentiu-se entretanto envergonhado por ter que se ver ele mesmo nu. Enquanto estava assim desconsertado e refletindo, foi de repente transportado á outra margem. Teodoro, também homem piedoso, saiu da água, e ao ver que o outro chegara antes dele sem se haver molhado, perguntou-lhe como atravessara. Quando viu que não o queria contar, agarrou-se a seus pés, insistindo em que não o soltaria até que lhe díssesse. Notando a determinação de Teodoro, especialmente depois do que lhe disse, insistiu por sua vez para que não o dissesse a ninguém antes de sua morte, e assim lhe revelou ter sido levado e depositado na margem; que não havia caminhado sobre as águas, uma vez que isto só é possível ao Senhor e àqueles aos quais Ele o permite, como fez no caso do grande apóstolo Pedro (Mt. 14, 19). Teodoro relatou isto depois da morte de Amón.

Os monges aos quais Antão falou sobre a morte de Amón anotaram o dia e quando, um mês depois, os irmãos voltaram de Nitria, perguntaram e souberam que Amón havia dormido no mesmo dia e hora em que Antão viu sua alma levada para o alto. E tanto eles como os outros ficaram estupefatos ante a pureza de alma de Antão, que podia saber imediatamente o que se passara treze dias antes, e que era capaz de ver a alma levada para o alto.

61.

Noutra ocasião, o conde Arquelao o encontrou na Montanha Exterior e pediu-lhe somente que rezasse por Policrácia, a admirável virgem de Laodicéia, portadora de Cristo. Sofria muito do estômago e das costas devido à sua excessiva austeridade, e seu corpo estava reduzido a grande debilidade. Antão orou e o conde anotou o dia dessa oração. Ao voltar a Laodicéia encontrou curada a virgem. Perguntando quando se havia visto livre de sua debilidade, tirou o papel de onde anotara a hora da oração. Quando lhe responderam, imediatamente mostrou sua anotação no papel, e todos se maravilharam ao reconhecer que o Senhor a havia curado de sua própria doença no momento em que Antão estava orando e invocando a bondade do Salvador em seu auxílio.

62.

Quanto a seus visitantes, predizia freqüentemente sua vinda, dias e às vezes um mês antes, indicando o motivo da visita. Alguns vinham só para vê-lo, outros devido a enfermidades, e outros, atormentados pelos demônios. E ninguém considerava a viagem demasiado molesta ou que fosse tempo perdido; cada um voltava sentindo que fora ajudado. Ainda que Antão tivesse esses poderes de palavra e visão, no entanto suplicava que ninguém o admirasse por essa razão, mas admirasse antes ao Senhor porque Ele nos ouve a nós, que somos apenas homens, a fim de que possamos conhecê-lo melhor.

63.

Noutra ocasião havia descido de novo para visitar as celas exteriores. Quando convidado a subir num barco e orar com os monges, só ele percebeu um mau cheiro horrível e sumamente penetrante. A tripulação disse que havia a bordo pescado e alimento salgado e que o cheiro vinha disso, mas ele insistiu em que o odor era diferente. Enquanto estava falando, um jovem que tinha um demônio e subira a bordo pouco antes como clandestino, soltou de repente um guincho. Repreendido em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, foi-se o demônio, e o homem voltou à normalidade; todos então se aperceberam e que o mau cheiro vinha do demônio.

64.

Noutra vez um homem de posição foi a ele, possuído pelo demônio. Neste caso o demônio era tão terrível que o possesso não estava consciente que ia a Antão. Chegava mesmo a devorar seus próprios excrementos. O homem que o levou a Antão rogou-lhe que rezasse por ele. Compadecido pelo jovem, Antão orou e passou com ele toda a noite. Ao amanhecer, o jovem lançou-se de repente sobre Antão, empurrando-o. Seus companheiros indignaram-se diante disso, mas Antão acalmou-os, dizendo

"Não se aborreçam com o jovem, pois ele não é o responsável, e sim o demônio que nele está.
Ao ser increpado e mandado a lugares desertos (Lc. 11, 24), ficou furioso e fez isto.
Dêm graças ao Senhor, pois o atacar-me deste modo é um sinal de partida do demônio".

E enquanto Antão dizia isto, o jovem voltou a seu estado normal; deu-se conta de onde estava, abraçou o ancião e deu graças a Deus.



VISÕES.

65.

São numerosas as histórias, e além disso todas concordes, que os monges transmitiram sobre muitas coisas semelhantes operadas por ele. E no entanto não parecem tão maravilhosas como outras ainda mais maravilhosas. Uma vez, por exemplo, à hora de noa, quando se pôs de pé para orar antes de comer, sentiu-se transportado em espirito e, estranho é dizê-lo, viu-se a si mesmo como se achasse fora de si mesmo e como se outros seres o levassem aos ares. Então viu também outros seres terríveis e abomináveis no ar, que lhe embargavam o passo. Como seus guias oferecessem resistência, os outros perguntaram sob que pretexto queria fugir de sua responsabilidade diantes deles. E quando começaram eles próprios a pedir-lhes contas desde seu nascimento, intervieram os guias de Antão:

"Tudo o que date desde seu nascimento o Senhor apagou;
podem pedir-lhe contas desde que começou a ser monge e se consagrou a Deus".

Então começaram a apresentar acusações falsas e como não as puderam provar, tiveram de deixar-lhe livre a passagem. Imediatamente viu-se a si mesmo aproximando-se-ao menos assim lhe apareceu e juntando-se a si mesmo, e assim Antão voltou de novo a realidade.

Esquecendo-se então de comer, passou todo o resto do dia e toda a noite suspirando e orando. Estava abismado ao ver contra quantos inimigos devemos lutar e que trabalhos se tem para abrir passagem pelos ares. Lembrou-se de que é isto o que diz o apóstolo:

"de acordo com o príncipe das potências do ar".

Ef. 2, 2

Aí está precisamente o poder do inimigo que peleja e trata de deter os que intentam passar. Por isto o mesmo apóstolo dá também sua especial advertência:

"Tomem a armadura de Deus que os faça capazes de resistir no dia mau",

Ef. 6, 13

e

"nada tendo que dizer contra nós, fique envergonhado".

Tito 2, 8

E nós que aprendemos isto, recordemos o que o mesmo apóstolo diz:

"Se fui levado em meu corpo ou fora dele, não sei; Deus o sabe"

II Cor. 12, 2

Paulo, porém, foi levado ao terceiro céu e ouviu

"palavras inefáveis"

II Cor. 12, 2, 4

e voltou, enquanto Antão viu-se a si mesmo entrando nos ares e lutando até que ficou livre.

66.

Noutra ocasião teve o seguinte favor de Deus, quando sozinho na montanha e refletindo, não podia encontrar solução alguma a Providência lhe revelava em resposta a sua oração; o santo varão era ensinado por Deus com palavras da Escritura (Is. 54, 13; Jo. 6, 45; I Ts. 4, 9). Assim favorecido, teve uma vez discussão com alguns visitantes sobre a vinda da alma e que lugar teria depois desta vida. Na noite seguinte chegou-lhe um chamado do alto:

"Antão, sai para fora e veja!"

Ele saiu, pois distinguia os chamados que devia atender, e olhando para o alto viu uma enorme figura, espantosa e repugnante, de pé, que alcançava as nuvens; viu além disto certos seres que subiam como com asas. A primeira figura estendia as mãos, e alguns dos seres eram detidos por ela, enquanto outros voavam sobre ela, e havendo-a ultrapassado, continuavam sem maior incômodo. Contra eles o monstro rangia os dentes, alegrando-se porém pelos outros que haviam caído. Neste momento uma voz se dirigiu a Antão:

"Compreende a visão!"

Dn. 9, 23

Abriu-se seu entendimento (Lc. 24, 45) e apercebeu-se de que isto era a passagem das almas e de que o monstro que ali estava era o inimigo, o invejoso dos crentes. Sujeitava os que lhe correspondiam e não os deixava passar; mas os que ele não tinha podido dominar, tinha que deixá-los passar fora do seu alcance.

Tendo visto isso, e tomando-o como advertência, lutou ainda mais para admirar cada dia na direção do que o esperava. Não tinha nenhuma inclinação para falar acerca destas coisas. Quando, porém, havia passado muito tempo em oração e absorto em toda essa maravilha, e seus companheiros insistiam e o importunavam para que falasse, era forçado a fazê-lo. Como pai não podia guardar um segredo ante seus filhos. Sentia que sua própria consciência era limpa e que contar-lhes isto poderia servir-lhe de ajuda. Conheceriam o bom fruto da vida ascética, e que muitas vezes as visões são conhecidas como compensação pelas privações.