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Uma grande dificuldade, talvez a maior dificuldade para a
compreensão deste argumento reside no fato de que não é claro para a
maioria das pessoas que a apreensão da inteligência possui de fato todas
as características que mencionamos. Muitas pessoas não cultivaram a vida
da inteligência de modo a alcançarem uma capacidade de abstração
suficiente para perceberem claramente a existência destas idéias
abstratas em sua inteligência. Ainda que não o digam, supõem que uma
idéia seja no máximo um sinal, -o som da palavra casa, por exemplo, ou
o desenho imaginado de uma casa-, sinal que dizemos ter tal ou qual
significado por convenção, por atribuir este sinal a muitos objetos
externos semelhantes, de tal modo que quando dizemos que queremos
construir a casa, queremos dizer com isto não que queremos construir
aquele sinal, mas que queremos construir um prédio em determinado
terreno. Pessoas assim se elevaram tão pouco acima da atividade da
fantasia que para elas a distinção entre a fantasia e a inteligência
fica muito pouco nítida.
Para complicar ainda mais a situação destas pessoas, se bem
que a inteligência seja algo totalmente diverso da fantasia, diz porém
S. Tomás que nunca a inteligência pode trabalhar no homem de tal modo
que esteja totalmente ausente da fantasia, não só ao abstrair as idéias
dos dados da fantasia, como também ao recordar idéias já abstraídas.
Estas são suas palavras a este respeito:
diz Tomás,
"que para que alguém esteja especulando em ato,
simultaneamente se forme algum fantasma.
Por causa disso sem o sentido
não pode nenhum homem apreender
ou adquirir nova ciência,
nem sequer inteligir
utilizando-se de uma ciência já adquirida.
É falsa a opinião de Avicenna, portanto,
de que o intelecto não necessita dos sentidos
depois que já adquiriu a ciência;
ao contrário, mesmo depois
de alguém já ter adquirido a ciência,
necessita usar os fantasmas para que especule.
É por causa disso que
por uma lesão dos órgãos corporais
pode-se impedir o uso
das ciências já adquiridas" (53).
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Isto ocorre porque a fantasia está para a inteligência assim como o seu
objeto, da mesma maneira como as coisas visíveis são objetos para a
vista. Ora, retirando-se os objetos visíveis, a vista, ainda que sã,
nada mais será capaz de ver. Mas a inteligência funciona, segundo Tomás,
unida à fantasia de um modo semelhante, tal que sem o funcionamento
paralelo da fantasia a inteligência nada apreende. Esta foi a explicação
que já tinha sido dada por Aristóteles para o fato de que a
inteligência, ainda que imaterial, possa ter o seu funcionamento
alterado ou até definitivamente impedido por uma lesão corporal, ou pela
ingestão de alguma droga. Pois ela não funciona sem o concurso da
fantasia, assim como a vista não veria na ausência de objetos visíveis.
Portanto, apesar de ser algo bastante distinto da fantasia,
a inteligência não pode funcionar sem o funcionamento paralelo da
fantasia; a partir dos dados da fantasia, ela pode inteligir segundo
diversos graus de abstração. Pode abstrair tão pouco que mal se perceba
a diferença entre a inteligência e a fantasia. Neste caso, como sempre
que inteligimos deverá estar presente algum sinal da fantasia,
confundiremos aquele sinal com a própria inteligência.
Mas também a inteligência pode gradativamente ir se
elevando a graus de abstração tão elevados e tão intensos que de suas
alturas mal se percebe mais o movimento paralelo da fantasia. A
dificuldade da questão da imaterialidade da alma é, portanto, a
dificuldade dos principiantes na vida filosófica: para os principiantes
fica muito difícil distinguir
"se o intelecto é a própria fantasia
ou é algo distinto
que se dá conjuntamente à fantasia" (54).
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É isto o que acontece quando, por exemplo, um neurologista
quer demonstrar a materialidade da mente. Ele injeta na circulação
sanguínea do homem uma solução de glicose marcada com um carbono
radioativo; o cérebro se alimenta exclusivamente de glicose, e a glicose
marcada com isótopos radioativos de carbono pode ser rastreada em seu
caminho pelo cérebro através de aparelhos. Então o neurologista diz ao
paciente que pense em um quadrado. O paciente, em vez de pensar em um
conceito totalmente abstrato do quadrado, imaginará verdadeiramente um
quadrado. Nisto a glicose radioativa será vista concentrando-se em uma
determinada parte do cérebro; não é a atividade da inteligência, porém,
o que está sendo rastreado, mas a da fantasia. É verdade que há uma
forma inteligível também, porque o paciente sabe que aquele não é o
único quadrado; entretanto, sua atenção está muito mais concentrada na
imagem do que na idéia. O neurologista então lhe diz que gire o quadrado
em que pensou. A esta nova ordem o paciente imaginará o quadrado
girando, e a glicose radioativa se deslocará para outra região do
cérebro. Se, entretanto, sua atenção estivesse voltada para a abstração
do quadrado e fosse isto o que ele estivesse contemplando claramente,
sua resposta seria:
"Não posso!
Posso girar este ou aquele quadrado,
esta ou aquela imagem do quadrado,
mas se estou realmente vendo a essência do quadrado,
esta essência eu não posso girar".
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No fim da experiência o cientista e o paciente supõem terem demonstrado a
materialidade do pensamento. O que aconteceu, na verdade, é que a
experiência que ambos tinham da vida do pensamento era muito pequena
para diferenciar-se da fantasia. Quando pensamos no quadrado vemos uma
imagem do quadrado e concomitantemente também a essência do quadrado;
mas existe toda uma gradação de intensidades com que vemos desde
fortemente a imagem e palidamente a essência até palidamente a imagem e
fortissimamente a essência.
Este problema de confundir fantasia com inteligência tinha
contornos bastante diversos nos filósofos gregos. Pudemos mostrar no
capítulo anterior como eles se submetiam a uma educação que tendia a
favorecer a atividade da abstração intelectual em um grau muito elevado.
Basta, para perceber isto, refletir um pouco novamente sobre o programa
educacional de Platão e seus objetivos:
"O verdadeiro filósofo
é aquele que gosta
de contemplar a verdade.
Os amadores de espetáculos e das artes
não merecem o nome de filósofos,
porque gostam de belas vozes,
das cores, das formas e de todas as coisas
elaboradas por estes elementos,
mas as suas mentes são incapazes
de apreciarem o belo em si.
Aqueles que apenas possuem
o sentimento das coisas belas,
mas não o da própria beleza,
estão confundindo a cópia com o objeto real.
Aqueles que vêem muitas coisas belas,
mas não vêem o belo em si,
aqueles que vêem muitas coisas justas
mas não vêem a justiça em si,
aqueles que vêem muitas verdades,
mas não conseguem ver a verdade em si,
nem são capazes de seguir um guia
que os conduza a este ponto,
estes não são os filósofos.
Só os que são capazes de contemplar
cada coisa como ela é em si mesmo
é que devem ser chamados de filósofos
ou amantes do saber".
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Para estes que assim viviam, era evidente o caráter imaterial da
inteligência humana; mais do que a força interna do argumento que eles
usaram para explicar a imaterialidade da inteligência, foi a experiência
pessoal deles que os levou a desenvolver o próprio argumento.
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