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Já afirmamos várias vezes neste capítulo que na operação do
sentido o sentido recebe a mesma forma que existe no sensível, porém sem
a matéria.
Talvez tenhamos aceito esta proposição sem refletir
suficientemente sobre o significado da mesma. Pois, se o tivéssemos
feito, talvez nos dias de hoje alguém teria feito a seguinte objeção:
"Foi dito que na operação do sentido
recebe-se a mesma forma
que existe no sensível,
sem, porém, a matéria.
Ora, isto parece ser impossível,
como demonstram os seguintes exemplos.
O que nós vemos como sendo a cor
não é o mesmo que a cor:
a cor é uma vibração eletromagnética,
mas a sensação da cor não se parece em nada
com uma vibração eletromagnética.
O que nós ouvimos como sendo o som
não é o mesmo que o som:
o som é uma onda longitudinal de compressão do ar;
a sensação de uma música não se parece em nada
com uma onda longitudinal de compressão do ar.
Como, então, na operação do sentido
pode ser recebida a mesma forma
que existe no sensível sem a matéria?
Pois a forma recebida parece ser
completamente outra".
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Nesta objeção as observações são corretas; o erro está na interpretação
do que seja a forma na coisa sensível e no sentido.
Quando Tomás diz que o sentido recebe a mesma forma que
existia no sensível, porém sem a matéria, o que se quer dizer é que nas
transformações naturais em geral o paciente, juntamente com a forma,
adquire uma disposição material semelhante àquela que havia no agente;
no caso especial dos sentidos, esta forma também é recebida, mas em uma
disposição material diversa daquela que havia no agente. Mas que se
trata realmente da mesma forma, isto pode ser visto, acrescentamos nós,
pelo fato de que, se analisássemos a informação armazenada no sentido,
poderíamos reconstituir o sensível. Analisando a informação contida nos
impulsos nervosos que saem do nervo ótico, bastante diferentes das ondas
eletromagnéticas, ou então, a informação contida no relato do observador
a respeito das cores que está vendo, que se parecem menos ainda com as
ondas eletromagnéticas, poderíamos reconstituir o objeto colorido.
Analisando-se a soma das informações contidas nos impulsos nervosos que
saem de todos os sentidos, ou então a soma das informações contidas no
relato do observador sobre todas as informações que lhe trazem os cinco
sentidos, com esta soma de informações reconstituímos o objeto material
observado. De onde que toda esta informação é a própria forma do objeto
sensível, armazenada em uma disposição corporal diversa. A forma do
objeto sensível foi realmente recebida sem a matéria, isto é, sem uma
idêntica disposição corporal à que existia no objeto sensível.
Mas quando analisamos a forma abstraída pela inteligência
do objeto sensível que lhe é apresentada pela fantasia, a informação ali
contida não é a forma de um objeto material. De fato, se considerarmos
que a essência apreendida de homem é animal racional, limitando-nos
estrita e rigorosamente ao conteúdo desta informação, que ser poderemos
reconstituir? O animal em questão poderá ser de carne, de sílica, de
circuitos digitais, ou de algum ou de todos os materiais desconhecidos
que se queiram; poderá ser grande ou pequeno, imensamente pequeno como
uma bactéria, imensamente grande como uma estrela; ou poderá ter todas
as formas geométricas e disposições de partes que se queiram; poderá ter
os órgãos os mais diferentes que se possam imaginar; todas estas
características com que ele poderá se realizar enquanto indivíduo
poderão ser tão variadas quanto seja possível serem tecidas com a
imaginação ou fantasia; pois na verdade a informação contida na
inteligência não especificou nenhuma destas qualidades porque não as
continha a nenhuma; se fossemos construir na realidade o ser apreendido
pela abstração da inteligência tal como ele está lá, teríamos que
construir um ser imaterial, um homem imaterial. Este homem não existe;
mas, o que é particularmente interessante, pode ser visto pela
inteligência. Deste ser sem matéria existe uma imagem na inteligência,
uma imagem num certo sentido ilimitada, por não ter as limitações que a
concretização nesta ou naquela matéria lhe imporiam. A inteligência,
assim, é capaz de ver o imaterial; e isto que ela vê, não está na
realidade, mas apenas nela mesma. Nela própria, portanto, existe esta
natureza e ela própria tem que ser imaterial.
É importante notar que estas informações, esta forma
abstraída pela inteligência do objeto sensível apresentado pela fantasia
e nela existente não é algo apenas significado; isto é, não é algo ao
qual se atribua um significado ou uma relação para tal ou qual
característica do objeto sensível. Não é algo contido na inteligência
sob modo de significação ou de relação, mas é algo que pode realmente
ser visto pela inteligência; a inteligência vê, realmente, a essência
abstrata do homem, a essência abstrata do belo, a essência abstrata do
bem, etc.. É esta possibilidade de ver estas essências abstratas que é o
fundamento psicológico da contemplação da inteligência. Não se trata de
um sinal elaborado pela inteligência ao qual relacionamos as qualidades
que vemos em todos os homens; é a própria essência das coisas que pode
ser vista como objeto próprio da faculdade da inteligência, e, por esta
mesma razão, causar-lhe agrado e repouso como em uma operação que lhe
seja conatural.
Estes objetos contemplados pela inteligência em sua
operação própria têm características bastante diversas dos vistos pelos
sentidos. As formas existentes no sentido e na imaginação carregam
consigo todas as características da materialidade. Em primeiro lugar,
elas são imagens de objetos individuais; a individualidade é
característica da matéria, pois é a matéria que, unindo-se à forma,
causa a individualidade daquela forma; esta característica existe também
nas formas apreendidas pelos sentidos. São, portanto, necessariamente,
formas existentes na matéria, mesmo dentro dos sentidos. Em segundo
lugar, elas têm todas as qualidades que são próprias da matéria; têm
cores, têm dimensões geométricas, apresentam movimento; têm que estar,
por esta razão, guardadas materialmente nos sentidos. Tal como elas são
vistas pelos sentidos interiores e pela fantasia, podem ser desenhadas
em um papel, reproduzidas num desenho animado ou num filme, esculpidas
em uma estátua. Mas as formas vistas pela abstração da inteligência não
podem ser desenhadas em papel; nem podem ser reproduzidas em filme, nem
esculpidas em estátua. Não é possível desenhar a essência do homem; não
é possível desenhar a essência do belo, não é possível esculpir a
essência da bondade; no entanto, elas estão lá dentro, visíveis no
interior da inteligência. Cabe então a pergunta: em que matéria? São
coisas totalmente despidas de todas as características da materialidade,
tanto que não podem ser reproduzidas na matéria, no entanto, elas
existem e podem ser vistas dentro de nós. Existem, portanto, dentro de
nós, entidades totalmente desprovidas de características materiais. Não
pode ser num substrato material que elas estão, portanto, depositadas.
Mas este substrato é o intelecto; portanto, o intelecto é algo imaterial
existente dentro do homem.
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