IV.9.

Como percebemos que vemos? Solução.

Com estas distinções feitas sobre a fantasia, podemos responder à pergunta anteriormente colocada: o homem tem experiência de que percebe que vê; esta percepção da operação dos sentidos próprios é feita pelo próprio sentido ou por alguma outra faculdade?

S. Tomás de Aquino responde a esta pergunta na lectio 2 do Livro III do Comentário ao De Anima. Não nos parece, porém, ter sido totalmente feliz quanto à clareza de sua redação. Para que sua resposta fique mais manifesta, além de reportá-la, teremos também que interpretá- la em parte.

Ao responder a questão que foi colocada, S. Tomás começa por fazer uma distinção; o ato de ver, diz Tomás, pode ser entendido de dois modos diversos.

De um primeiro modo, ver é dito quando a visão é alterada por uma cor visível e presente diante do sentido da vista. Quando o ato de ver é tomado segundo este modo, nada pode ser visto senão a cor; conseqüentemente, segundo este modo de ver não é possível perceber que vemos. Segundo este modo de ver, somente se percebem as cores, não a própria operação da vista.

Ver, porém, diz Tomás de Aquino, pode ser dito ainda de um segundo modo; isto é, quando, depois da alteração do órgão pelo sensível externo, podemos distinguir entre a luz e as trevas ou entre uma cor e outra mesmo na ausência da alteração provocada por um sensível presente externamente à vista, quando então podemos julgar da própria percepção do órgão já realizada pelo sensível externo (44). Santo Tomás não fala aqui da fantasia ou imaginação, mas, pelo que já se comentou a respeito dela, parece-nos claro que ele está se referindo ao trabalho da fantasia, um prolongamento da atividade dos cinco sentidos que se dirige ao sentido comum e que continua mesmo após a cessação das operações dos sentidos próprios provocadas pelos sensíveis externos. A fantasia ou imaginação é algo organicamente ligado aos cinco sentidos; ela pertence ainda ao domínio da atividade sensitiva, embora não seja um sentido próprio, nem o sentido comum. Parece-nos também que é por isto que S. Tomás acrescenta aqui esta outra afirmação:

"aquela potência,
pela qual alguém se vê estar vendo,
não está além do gênero da potência visiva"
(45).

Por vista entende-se aqui o segundo modo em que pode ser entendida a operação de ver; deve-se, ao que nos parece, entender-se aqui não apenas os olhos, mas todo o sistema sensitivo ligado à vista, incluindo os sentidos internos e a imaginação. É através das representações da imaginação que os sentidos internos percebem que vemos.

À pergunta, pois, anteriormente feita, de como uma faculdade que não a vista pode perceber que vemos sem ver a cor, e, se vê a cor, por que não é a própria vista, Tomás de Aquino responde o seguinte:

"a cor tem um duplo ser;
o primeiro, natural,
na própria coisa sensível;
o segundo,
na medida em que é apreendida
pelo sentido"
(46).

A imaginação, prolongamento dos sentidos e em seu mesmo gênero, vê apenas este segundo modo da cor.

Assim, parece ser claro que segundo S. Tomás a capacidade de percepção da operação de um sentido não é algo que transcende a materialidade do próprio sentido. A consciência de uma operação própria não é indício de imaterialidade na alma humana.

Fica, porém, uma outra pergunta a ser respondida: nós percebemos que percebemos que vemos? E se percebemos, como percebemos que percebemos que vemos? É a própria imaginação que percebe sua percepção da operação dos sentidos ou é outra faculdade? E se for outra faculdade, ela por sua vez perceberá sua percepção ou necessitará ainda de uma outra faculdade para isto? E, se necessitar de uma outra, até onde irá parar esta seqüência?

Estas questões não podem ainda ser respondidas; para isso será necessário continuar nossa investigação da psicologia humana. Mas é importante mostrar que estas perguntas levantam o problema da percepção total da própria atividade cognitiva; se é possível, e como, que algum ser vivo dotado de faculdades apreensivas possa possuir uma consciência total de si mesmo enquanto cognoscente.

Vimos que, segundo Tomás de Aquino, para que percebamos que vemos não é necessária a atividade de nenhum instrumento imaterial; a percepção da operação própria dos sentidos não supõe a imaterialidade da alma. Para que, além de ver, percebamos que vemos, não é necessário ir além do âmbito do próprio conhecimento sensível. Porém, tal como foi descrita até aí, esta não é uma percepção total da própria atividade cognoscitiva; é uma percepção apenas parcial, porque percebemos que vemos, mas se não formos capazes de perceber também que percebemos que vemos, não teremos uma consciência total de nossa atividade cognoscitiva, mas apenas uma parte.

Pode-se admitir uma terceira faculdade que percebe a percepção que a segunda tem da operação dos sentidos, mas não se poderá admitir uma série infinita de faculdades, cada uma percebendo a percepção da anterior. Uma delas terá que ser a última. Se esta última não perceber a própria atividade cognoscente, então o homem não terá uma consciência total de si mesmo enquanto cognoscente. Se esta última percebe a sua própria atividade, deve-se então explicar como isto seja possível.



Referências

(44) In librum De Anima Commentarium, L. III, l. 2, 558.
(45) Idem, L. III, l. 2, 590. (46) Idem, L. III, l. 2, 589.