VII

Santo Irineu




1.

Comentário geral.

Santo Irineu foi o teólogo que resumiu o pensamento do século segundo e dominou a ortodoxia cristã antes de Orígenes. A visão de Irineu da Divindade foi a mais completa e a mais explicitamente trinitária antes de Tertuliano.

Conforme veremos, Santo Irineu, seguindo a Teófilo em vez de Justino, identificou o Espírito Santo com a Sabedoria divina, com o que pôde fortalecer sua doutrina da terceira pessoa com uma base escriturística segura. Com isto deixou uma imagem no fim do século segundo da Divindade, não de três pessoas co-iguais, mas de um único personagem, o Pai, que é a própria divindade, inefavelmente uno, contendo em si mesmo desde toda a eternidade o Verbo, sua mente ou racionalidade, e sua Sabedoria; o qual, ao manifestar-se, ou ao empenhar-se na Criação e Redenção, extrapolou e manifestou a estes como o Filho e o Espírito.

2.

A doutrina de Irineu.

Nos escritos de Santo Irineu encontramos que ele aborda Deus sob dois ângulos diferentes:

  • Enquanto Ele existe em Seu ser intrínseco, e

  • enquanto Ele manifesta a si mesmo na "economia", isto é, no processo ordenado de sua auto revelação.

Do ponto de vista de seu ser intrínseco, Deus é o Pai de todas as coisas, inefavelmente uno e contendo em si mesmo desde toda a eternidade seu Verbo e sua Sabedoria.

Do ponto de vista de sua auto-revelação, ou empenhando-se na Criação e na Redenção, Deus extrapola ou manifesta o Verbo e a Sabedoria. Estes, como Filho e Espírito, são suas "mãos", imagem sem dúvida tirada de Jó 10,8:

"Tuas mãos me fizeram,
e me plasmaram todo";

e de Salmos 118,73:

"Tuas mãos me fizeram
e me formaram".

Assim, Irineu afirma que

"pela própria essência
e natureza de Seu ser
existe apenas um só Deus",

enquanto que ao mesmo tempo,

"de acordo com a economia
de nossa Redenção
existem tanto o Pai como o Filho",

ao que poderia acrescentar: "e o Espírito Santo".

Referências:
S. Irineu: Adversus Hereses 4,20,1-3;
Idem: Demons. Pred. Apost. 47.

3.

A geração do Filho.

Em Irineu nós temos a concepção familiar aos apologistas do Verbo como racionalidade imanente de Deus que Ele extrapola na criação.

Ao contrário dos apologistas, porém, ele rejeita as tentativas de se explicar a geração do Verbo, citando Isaías 53,8:

"Sua geração,
quem a narrará?"

Além disso, ele coloca em relevo de uma maneira muito mais explícita a coexistência do Verbo com o Pai desde toda a eternidade mas, embora pareça claro que ele tenha concebido a existência de uma relação eterna do Verbo para com o Pai, em nenhum momento ele chegou a declarar que esta seria a geração do Verbo.

Referências:
S. Irineu : Adv. Hereses 2,28,4-6; 2,13,8; 2,30,9; 3,18,1; 4,20,1.

4.

As funções do Verbo e do Espírito Santo: a Criação.

O Verbo e o Espírito Santo, segundo Santo Irineu, colaboraram no trabalho da criação sendo, se tal fosse possível, as "mãos" de Deus, conforme vimos acima.

Foi função do Verbo trazer as criaturas à existência, e do Espírito ordená-los e adorná-los.

Referências:
S. Irineu: Adv. Hereses 4, pref., 4; 5,1,3; 5,5,1; 5,6,1; 4,20,2;
Idem: Demonst. 11.

5.

Outras funções do Verbo: revelar o Pai.

Afirma Irineu:

"Deus é inefável,
mas o Verbo o declara para nós";

e também:

"o que é invisível
no Filho é o Pai,
e o que é visível
no Pai é o Filho".

Nas Teofanias do Velho Testamento foi realmente o Verbo que falou com os patriarcas.

Referências:
S. Irineu: Adv. Hereses 4,6,3; 4,6,6; 4,9,1; 4,10,1.

6.

Outras funções do Espírito Santo: inspirar os profetas, revelar o Verbo, santificar os justos.

Afirma Santo Irineu que foi através do Espírito Santo

"que os profetas profetizaram,
e os justos foram levados
ao caminho da justiça,
e foi ele que nos fins dos tempos
foi derramado de uma nova maneira,
renovando o homem para Deus".

Além disso, sem o espírito Santo, é

"impossível ver o Verbo de Deus";

e também

"o conhecimento do Pai é o Filho,
mas o conhecimento do Filho de Deus
somente pode ser obtido
através do Espírito Santo".

Nossa santificação é totalmente obra do Espírito Santo,

"o qual o Filho ministra e dispensa
a quem o Pai quer e como quer".

Referências:
S. Irineu: Demonst. 6,7.

7.

Conclusão: Trinitarianismo Econômico de Santo Irineu.

É evidente que a abordagem dos apologistas e mesmo de Santo irineu não é muito clara quanto à posição do Filho e do Espírito Santo antes de sua geração ou emissão.

Por causa de sua ênfase na "economia", este tipo de pensamento recebeu posteriormente o nome de "Trinitarianismo Econômico". Especialmente no caso de Santo Irineu, esta expressão é correta, desde que não se presuma que a ênfase na "economia" impediu-o de reconhecer o mistério da trindade na unidade na vida interna da Divindade.