SERMO III

Sobre o sentido anagógico
da dedicação de uma Igreja.




"Louva, ó Jerusalém,
ao Senhor;
Louva, ó Sião,
ao teu Deus".

Salmo 147,1

Jerusalém, a cidade santa e a cidade do Santo, é a santa Igreja, que se edifica assim como se edifica uma cidade, e, já edificada, adorna-se com diversos ornamentos. Esta cidade santa, isto é, a Igreja, possui as suas paredes, o seus muro, as suas torres, os seus edifícios, as suas portas. Possui as suas pedras, que são os fiéis, os quais estão unidos entre si pela caridade assim como pelo cimento uma pedra está unida à outra. Possui o seu muro pela fortificação das virtudes, pelas quais permanece firme contra os vícios, para que estes não a assaltem e a despojem de seus bens espirituais. Possui suas torres naqueles que são sublimes pela contemplação, pois qualquer homem perfeito se ergue como uma torre na santa Igreja quando, abandonando as coisas da terra, se eleva pela contemplação às celestes. Possui edifícios menores, maiores e máximos; possui edifícios menores pela vida dos casados, edifícios maiores pela vida dos continentes, edifícios máximos pela vida das virgens. A vida dos casados, de fato, pelas obras terrenas e pelo prazer da geração gira em torno das coisas inferiores; a vida dos continentes, pelo exercício das virtudes e pelo oferecimento das boas obras se dirige para algo mais alto e a vida dos que guardam a virgindade, pela pureza do coração e pela integridade da carne se ergue até o que é celeste. Possui edifícios de pedra e edifícios de marfim. Possui edifícios de pedra naqueles que são resplandecentes pela castidade; a pedra, de fato, pela sua firmeza significa a fé, e o marfim, pela sua natureza fria, significa a castidade. Possui portas diversas, pelas quais entram homens de diversas nações e costumes; outrora distantes entre si, tornam-se agora seus cidadãos e membros de uma só família.

Possui também as suas portas, a porta do rebanho, a porta dos peixes, a porta antiga, a porta do vale, a porta do esterco, a porta da fonte, a porta das águas, a porta dos cavalos, a porta judicial, cuja significação mística, tanto quanto Deus o conceder, vo-la darei a conhecer rapidamente.

A porta do rebanho era aquela onde estava a piscina probática, isto é, a piscina das ovelhas, pois ali se lavavam as carnes das ovelhas que eram oferecidas em sacrifício. A porta do rebanho, pois, pelo fato da ovelha ser um animal inocente, significa a inocência. Por esta porta entram os culpados e se tornam inocentes: réus de culpa, tornam-se inocentes pela justiça. Estavam fora pela culpa, agora estão dentro pela justiça: fora como lobos, pela rapacidade; dentro como ovelhas, pela simplicidade. Excelente esta porta, em que tais coisas obrou a destra do Altíssimo.

Chamava-se porta dos peixes aquela porta pela qual eram trazidos os peixes provenientes do mar. Esta porta significa o arrependimento, que possui uma de suas colunas na compunção do coração e outra na confissão da boca. Por esta porta são trazidos os homens agiotados pelas inquietudes do mundo presente, amargosos pelo sal, corrompidos pelo fedor, ensoberbecidos pela elevação das ondas, ásperos pelas escamas do homem velho, conspurcados pela lama dos prazeres carnais, alheios à luz do verdadeiro Sol. Caídos na rede do bem aventurado Pedro, ou daqueles que fazem as suas vezes, removidos das flutuações do mundo, são conduzidos para Jerusalém, isto é, à Igreja, onde se lhes retiram as escamas dos pecados. Há, todavia, alguns que, à semelhança das enguias, agarram-se à pele do homem velho e aderem ao lodaçal dos vícios, freqüentemente ou sempre fugindo da rede do Senhor, nunca vindo para cima para a luz da verdade, onde morreriam para si, mas ganhariam vida nova e viveriam para Deus.

A porta antiga é a caridade, conforme está escrito:

"Caríssimos,
não vos escrevi um mandamento novo,
mas um mandamento velho,
que vós recebestes desde o princípio".

I Jo 2, 7

Entram por esta porta aqueles que passam do amor do mundo para o amor de Deus. Por esta porta entrou Maria Madalena a qual, depois de tantos e tão grandes escândalos carnais, de vaso de ignomínia transformou-se em vaso de glória.

A porta do vale, que estava diante do Vale de Josafá, significa a humildade. Por esta porta entram aqueles que da soberba do demônio se voltam para a humildade de Cristo. Fora se consideravam sublimes, dentro se tornam humildes. Fora, pelo seu orgulho, se assemelhavam ao cedro; dentro, pela humildade, se assemelham ao hissopo. Afastados de Deus pelo orgulho, convertidos a Ele pela humildade, esta porta produz uma profunda conversão.

A porta do esterco, que estava na parte inferior da cidade, pela qual eliminavam-se os detritos, significa a excomunhão. Por esta porta não entram, antes são expulsos, aqueles que pelas suas culpas se tornaram a si mesmos próprios como o esterco. Não convém, de fato, que habitem juntos o cabrito e o cordeiro, o pecador e o justo, o puro com o imundo, o adúltero com Cristo, para que não aconteça que o justo, incentivado pelo exemplo do pecador, estenda as suas mãos à iniqüidade.

A porta da fonte era assim chamada porque estava diante da fonte de Siloé. Siloé significa Enviado, e significa Cristo, a quem o Pai enviou para a salvação do gênero humano. Esta fonte é o próprio Verbo de Deus, em cuja corrente bebem os sedentos, saciam-se os famintos, são chamados de volta os antes desprezados, recobram a saúde os doentes, reconciliam-se os inimigos, libertam-se os cativos, justificam-se os ímpios, alcançam a bem aventurança os pobres. A porta de Siloé é, portanto, a fé em Cristo. Fora dela estão aqueles que não alcançaram a fé; dentro dela estão os fiéis, membros de Cristo, unidos a Cristo pela fé, enquanto vivem na esperança de serem bem aventurados com Ele na glória.

A porta das águas significa a compunção. Aqueles que por ela entram nela são lavados. Sórdidos quando estavam fora, aqui tornam-se limpos; de negros que eram, tornam-se alvos. Antes cabritos, agora cordeiros.

A porta dos cavalos significa a vitória sobre os vícios. Os que ingressam por ela vencem, pelo freio da temperança, o ímpeto da ira, a cobiça da avareza, a voracidade da gula, o fluxo da luxúria.

A porta judicial significa o discernimento. Aqueles que passam por ela distingüem entre o sagrado e o profano, entre o puro e o imundo, entre o verdadeiro e o falso, entre o bem e o mal, entre a justiça e a culpa, entre a verdade e a mentira, entre o honesto e o desonesto.

Bem aventurado o que entra por estas portas. Esforcemo-nos, irmãos caríssimos, esforcemo-nos para sermos cidadãos de tão gloriosa cidade, e nela imolar a Deus nosso Senhor um sacrifício de louvor, oferecendo-lhe o novilho de nossos lábios, a Ele, que vive e reina pelos séculos.

Amén.