Irmãos caríssimos, o mundo presente é um mar. À semelhança do mar, ele fede, incha, é falso e instável. Fede pela luxúria, incha pelo orgulho, é instável pela curiosidade. Faz-se necessário, pois, irmãos caríssimos, possuir um navio e as coisas que pertencem ao navio se quisermos atravessar sem perigo um mar tão perigoso. Importa que tenhamos um navio, um mastro, uma vela e duas traves entre as quais se estende a vela, uma trave superior e uma trave inferior, assim como um sinalizador ao alto pelo qual possamos avaliar a direção do vento. Devemos possuir cordas, remos, leme, âncora e a comida que nos for necessária. Tenhamos também uma rede, com a qual possamos pescar algum peixe. Vejamos, porém, o que todas estas coisas significam. O navio significa a fé, que em Abraão teve início como em sua primeira tábua. Com Isaac e Jacó o navio aumentou consideravelmente. Depois deles o navio passou a crescer com a propagação das dez tribos. Quanto maior o número dos que criam, tanto mais se dilatava o navio da fé. Mais ainda se dilatou em seguida, após a passagem do Mar Vermelho, recebendo os filhos de Israel a Lei de Deus e multiplicando-se na terra prometida. Vindo depois Cristo e padecendo pelo gênero humano, ouviu-se em toda a terra o som da pregação apostólica, e este navio muito se dilatou com a multidão dos povos que nele entravam. No tempo do Anti Cristo, esfriando-se a caridade de muitos, excluir-se-ão os falsos fiéis e o navio será acabado na sua parte superior e mais estreita. E assim como em Adão foi colocada na proa a primeira tábua da fé, assim o último justo será na popa a sua última tábua. Certamente todos aqueles que, desde o início, atravessaram proveitosamente o mar do tempo presente, todos aqueles que escaparam de seus perigos, todos os que alcançaram o porto da salvação, todos eles navegaram no navio da fé, e foi por ele que realizaram a travessia. Pela fé Abel ofereceu a Deus uma hóstia mais agradável do que Caim, pela qual obteve o testemunho de sua justiça e pela qual, já falecido, ainda falava. Pela fé Henoc agradou a Deus, e foi transladado. Pela fé Noé construíu uma arca para a salvação de sua casa. Pela fé, ao ser chamado, Abraão obedeceu dirigir-se ao lugar que lhe haveria de ser dado. Pela fé Sara, a estéril, recebeu a capacidade de conceber. Pela fé Isaac abençoou cada um de seus filhos. Pela fé José, ao morrer, lembrou-se do retorno dos filhos de Israel à terra prometido, e lhes ordenou para lá transportarem os seus ossos. Pela fé Moisés foi escondido ao nascer. Pela fé negou ser filho da filha do Faraó. Pela fé celebrou a Páscoa. Pela fé os filhos de Israel atravessaram o Mar Vermelho. Pela fé se derrubaram os muros de Jericó. E que mais ainda direi? O dia não será suficiente para falar dos santos da antiguidade que pela fé venceram reinos, operaram a justiça, alcançaram as promessas. Destes alguns fecharam as bocas dos leões, como Daniel. Outros extingüiram o ímpeto do fogo, como os três jovens; outros convalesceram de sua enfermidade, como Jó e Ezequias; tornaram-se fortes na guerra, como Josué e Judas Macabeu; por meio de Elias e Eliseu algumas mulheres receberam de volta seus falecidos que ressuscitaram. Outros foram cortados, não aceitando serem livrados da morte temporal em troca da transgressão da Lei, como os sete irmãos cujo martírio lemos no Segundo Livro dos Macabeus. Outros foram apedrejados como Jeremias no Egito e Ezequiel na Babilônia; foram cortados, como Isaías; mortos pela espada, como Urias e Josias, ou andaram errantes, como Elias e outros eremitas (Heb. 11, 4-38). E todos estes, e muitos outros, atravessaram pela fé os perigos do mundo presente, e foram encontrados provados pelo testemunho da fé. As tábuas deste navio são as sentenças das Sagradas Escrituras, e para sua fabricação algumas destas tábuas nos são trazidas pelo Velho Testamento e outras pelo Novo. Os pregos, pelos quais se unem estas tábuas, isto é, pelos quais se unem estas sentenças, são os escritos dos santos, pelos quais são colocadas em concordância as coisas contidas em ambos os testamentos. Estas tábuas são cortadas pelo estudo e aplainadas pela meditação. O mastro, que se dirige para o alto, significa a esperança, pela qual nos erguemos à busca e ao conhecimento das coisas celestes, conforme está escrito:
A vela é a caridade, que se estende para a frente, para a direita e para a esquerda. Estende-se para a frente pelo desejo das coisas futuras; para a direita pelo amor dos amigos, para a esquerda pelo amor dos inimigos. As duas traves superior e inferior significam a rezão e a sensualidade; a superior é a razão, e a inferior é a sensualidade. A caridade deve firmar-se superiormente pela razão, na qual deve permanecer imovelmente presa; inferiormente, porém, deve ficar presa mas movendo-se, pois por ela deve exercitar-se na boa obra. É assim que é feito no navio material, porque a trave superior não se move, mas sim a trave inferior. O sinalizador superior do vento significa o discernimento dos espíritos. Para isto o sinalizador, ou o que quer que o substitua, é colocado sobre o mastro, para que através dele se distinga o vento ou a direção de onde ele sopra. Deste sinalizador, isto é, do discernimento dos espíritos, foi escrito:
E também:
As cordas são as virtudes, a humildade, a paciência, a compaixão, a modéstia, a castidade, a continência, a constância, a mansidão, a bondade, a prudência, a fortaleza, a justiça, a temperança. Estas cordas, isto é, as virtudes, devem pelo seu exercício ser sempre estendidas para que por elas possa firmar-se o mastro da nossa esperança. De fato, não há mastro da esperança que possa manter-se firme se estiver ausente o exercício das virtudes. Seguem-se os remos, que saem do navio e mergulham nas águas, os quais significam as boas obras, que procedem da fé e se estendem às águas, isto é, aos próximos. As águas são os povos, que tem suas origens pelo nascimento, fluem pela mortalidade, e refluem pela morte. Devemos, porém, ter estes remos não apenas à direita, para que não façamos o bem apenas àqueles que nos fazem o bem, mas também à esquerda, para que façamos o bem àqueles que nos fazem o mal, conforme está escrito:
E também:
O leme, pelo qual se dirige o navio, significa o discernimento pelo qual somos conduzidos em frente, de modo que não nos dissipemos à direita pela prosperidade, nem sucumbamos à esquerda pela adversidade. A nossa âncora é a humildade, que é lançada para baixo e pela qual nosso navio se estabiliza, para que não ocorra que, soprando o vento das sugestões diabólicas e agitando- se o mar de nossos pensamentos nosso navio se rompa e afunde nas profundezas. O navio de nossa fé deve, portanto, tornar-se firme e estável pela humildade, para que no tempo da tentação embora não possa se entregar a um livre curso, possa permanecer firme em seu lugar. Devemos ter nosso alimento pelo estudo das Escrituras. Os maus não apetecem este manjar, conforme está escrito:
Ele é dado aos bons, conforme está escrito:
A rede significa a pregação. Devemos utilizá-la sem cessar, para poder com ela pescar os homens submersos nas ondas do mundo presente e, retirando-lhes as escamas dos pecados, prepará-los para Nosso Senhor Jesus Cristo. Devemos também, conforme o costume dos marinheiros, cantar as canções do mar pela modulação do louvor divino, conforme nos diz o Salmista:
Depois de tudo isto, porém, ainda será necessário para nós a ação do vento, que significa a inspiração do Espírito Santo, para que por ela nos dirijamos ao porto da tranqüilidade, ao médico da salvação, à terra prometida, à casa da eternidade. O Senhor nos dará o vento pela inspiração de seu Espírito, conforme está escrito:
As luzes são os dons; o Pai das luzes é o autor, o doador e o distribuidor destes dons. O dom perfeito significa os dons da graça. Ele, que nos deu os demais bens, seja os que nos vem pela natureza, seja os que nos são dados pela graça, nos dará também o vento favorável, isto é, o Espírito Santo. Para que, porém, irmãos caríssimos, possamos atravessar este mar com proveito, saudemos freqüentissimamente a Estrela do Mar, isto é, a bem aventurada Maria, e invoquemo-la saudando-a dizendo:
Segundo o costume dos marinheiros, ergamos sempre nossas preces à bem aventurada Maria, assim como ao seu Filho. Seja ela para nós uma mãe espiritual, por meio de Jesus, fruto de seu ventre, o qual, nascido dela e por nós entregue, é Deus, e reina feliz, pela vastidão dos séculos que hão de vir. Amén. |