XII

A Existência de Deus



1.

O movimento racional demonstra a existência de Deus.

O primeiro e principal sacramento da sabedoria é a sabedoria criada, isto é, a criatura racional. Sendo em parte visível e em parte invisível, por isto mesmo é simultaneamente porta e caminho para a contemplação: enquanto visível, é porta; enquanto invisível, caminho.

É porta, porque oferece o primeiro auxílio à alma de quem ingressa na contemplação.

É caminho, porque conduz a alma do que corre pela contemplação ao seu termo.

É porta, porque mostra o invisível de modo visível.

É caminho, porque das coisas visíveis pelas invisíveis conduz à visão do Criador das coisas tanto visíveis como invisíveis, e isto o homem pode conhecer em si mesmo.

Ninguém será sábio que não veja ser a si mesmo. E todavia, se começar a examinar o que ele próprio é, compreenderá que não é nenhuma das coisas que nele são vistas ou podem ser vistas. Entenderá pela própria razão que aquela coisa que em nós é capaz de uso da razão, embora infusa e mista com a carne, distingue-se da substância da carne e lhe é diversa. Por que duvidará o homem da existência das coisas invisíveis, se vê ser invisível aquela mesma coisa que é verdadeiramente o homem e de cuja existência nunca duvidaria? A porta da contemplação se abre, pois, ao homem, quando ele próprio, conduzido pela sua razão, principia a conhecer-se. Resta em seguida correr por este caminho até o fim, para que cada um pela consideração de si mesmo, chegue ao conhecimento de seu Criador.

Aquilo, pois, que em nós não possui essência de carne não pode também ter matéria da carne. Assim como em sua essência é diverso da carne, assim também em sua origem sente-se alheio a ela.

Conhece também, e com certeza, ter tido um início, pois ao compreender que é, não lembra ter sido sempre, a inteligência não podendo desconhecer a si própria.

Se, portanto, não pode haver intelecto que não se intelija, conclui-se que nem sempre existiu aquilo que sabemos nem sempre ter-se inteligido, e por isto cremos ter tido princípio em algum momento.

Mas, conforme já foi dito, aquilo que possui uma essência espiritual não pode ter origem corpórea: pode-se comprovar ser corpóreo tudo o que provém da matéria já preexistente. Se, portanto, houve um início para o invisível que há em nós, ele deve ter sido feito não da matéria pré-existente, mas do nada.

Ora, o que é nada, não pode dar a si o ser. Qualquer coisa, portanto, que tenha tido início, sem dúvida alguma recebeu o ser de um outro.

Aquilo que porém não é a partir de si próprio, não pode dar o ser a outros. Quem quer que seja, portanto, aquele que deu o ser às coisas, não pode ter recebido o ser de outro.

Nossa natureza nos ensina, portanto, termos um Criador eterno, para quem o subsistir é seu e próprio.

Se tivesse recebido o ser de outro, não poderia ser dito primeira origem das coisas. Se tivesse havido um tempo em que não existia, não teria tido início de si mesmo, nem poderia ser dito primeiro se tivesse recebido o ser de outro. Se, pois, é o Criador, sempre existiu.

Ademais, o que é por si próprio não pode não existir. Quem quer que seja por si próprio, nele sua existência e aquilo que é são o mesmo, porque nada pode ser dividido ou separado dele. Nada podendo ser separado dele, aquele em que a existência e o que é são o mesmo necessariamente existe sempre.

Se, portanto, naquele que é por si próprio sua existência e aquilo que é são o mesmo, segue-se que aquele que não recebeu o ser de outrém necessariamente sempre seja, não podendo ser-lhe tirado por outrém aquilo que por outrém não lhe tinha sido dado.

É necessário, pois, que confessemos que aquele que cremos ser o Criador não possa ter princípio nem fim. Não possui princípio quem sempre foi; nem fim, quem nunca cessou. Nada, ademais, é eterno além do Criador; nem o Criador poderá ser senão eterno.

2.

Os demais movimentos também comprovam a existência de Deus.

Pelo movimento racional encontramos este conhecimento: temos um Criador eterno, que carece de princípio, porque sempre foi; não padece fim, porque sempre será. Os demais movimentos também dão testemunho desse conhecimento: o animal, o natural e o local.

3.

O movimento animal.

No movimento animal temos o sentido e o apetite.

Todo apetite natural encontra nas coisas o modo de satisfazer-se, e não há afeto ordenado que não possa alcançar o seu efeito. Em outras palavras: têm fome os animais, encontram o que comer; têm sede, encontram o que beber; têm frio, encontram com que aquecer-se. É claro, pois, que lhes precedeu a providência, por cujo conselho as coisas vêm em auxílio dos que as necessitam, e que aquele que instituiu o apetite, também lhes preparou os alimentos. Em tudo quanto existe os afetos têm os seus efeitos que lhes respondem, algo que de modo algum poderia ter sido feito se os eventos das coisas se dessem ao acaso.

4.

O movimento natural.

Coisa idêntica pode ser demonstrada pelo movimento natural. Assim como é impossível que algo se faça a partir do nada por si mesmo, assim também é inteiramente impossível que aumente por si mesmo: isto é, aquilo que não pode dar início a si próprio por si mesmo, não pode também aumentar por si mesmo. Comprova-se que tudo o que vem para aumento do que cresce está para além dele, já que por si mesmo anteriormente estava só e sem estar aumentando. Se, pois, nada pode crescer a não ser que se lhe acrescente o que primeiro não possuía, é claro que nada cresce aumentando por si mesmo. Aquele que, portanto, dá o incremento às coisas que crescem, este mesmo deu o início às que não existiam.

5.

O movimento local.

Demonstra-se o mesmo pelo movimento local, pois vemos algumas criaturas serem movidas perpetuamente, enquanto outras apenas durante certos tempos, e outras ainda deste ou daquele modo. Porém, ainda que as coisas sejam movidas de modos tão dessemelhantes, nunca se confunde a sua ordem. Não se pode duvidar da existência de uma disposição interior que as presida e que as modere com precisão de lei.

6.

Conclusão.

Que razão teremos para negar a providência se todo apetite racional encontra por si o alimento preparado pela natureza, se a natureza jamais foi vista apetecer em um ser aquilo que em outro ela própria não tivesse? Como negaremos a existência de uma disposição interior, se os movimentos existentes externamente na natureza, tão diversos e dessemelhantes, nunca confundem a sua ordem? Não se pode duvidar da presidência interior de um reitor invisível que prevê os eventos de todas as coisas pela sua providência e os dispõe pela sua sabedoria.