XIII

A Unidade de Deus



1.

A natureza e a unidade de Deus.

A natureza também nos ensina a unidade do Criador, isto é, ser um só o Criador e Reitor de todas as coisas. Se houvesse diversos conselhos na presidência interior da natureza, os cursos das coisas se dividiriam exteriormente de quando em vez, o contrário do que de fato sucede, em que uma concordante concorrência de tudo quanto existe a um só fim demonstra ser uma só a fonte e a origem de sua procedência.

2.

Em que sentido Deus é uno.

Entretanto, a unidade pode ser entendida de diversas maneiras. Devemos considerar, por conseguinte, segundo qual delas deverá o Criador ser dito uno.

Existe a unidade por ajuntamento, a unidade por composição, a unidade por semelhança, a unidade por essência e a unidade por identidade.

A unidade por ajuntamento se dá quando dizemos haver um só rebanho em que, entretanto, temos muitos animais.

A unidade por composição se dá quando dizemos haver um só corpo, em que todavia, existem muitos membros.

A unidade por semelhança se dá quando dizemos ser uma só voz aquela que, não obstante, pode ser proferida por muitas pessoas.

Nenhuma destas unidades é, porém, a verdadeira unidade. São ditas unidades apenas por se aproximarem, de alguma forma, daquela unidade que o é de fato. Não seria correto julgarmos o Criador das coisas uno por ajuntamento do diverso, pela composição das partes ou pela semelhança da multidão, se aquilo que em nós é racional já não possui mais em si próprio nenhum destes modos de unidade. Pela nossa própria razão podemos comprovar que tudo o que em nós é composto por uma multidão de partes não é racional, mas apenas adjunto ao racional. Se, pois, o nosso racional já possui uma verdadeira unidade, quanto mais não deveremos crer possuí-la aquele que é o seu Criador?

Só possui verdadeira unidade aquele que é uno por essência, para quem o seu todo é ser um só, sendo simples naquilo que é. Tudo o que é verdadeiramente uno é simples, não podendo ser dividido em partes por não possuir composição de partes.

O Criador de todas as coisas, portanto, possui unidade naquilo que é por ser inteiramente uno e simples.

3.

A verdadeira unidade inclui também a invariabilidade.

Mas ainda será necessário considerar que encontramos coisas que embora possuam verdadeira unidade, todavia esta unidade não é neles ainda a suma unidade. É o caso das almas: possuem a unidade por essência, mas não a possuem de modo invariável. Entretanto, o que é verdadeira e sumamente uno deverá sê-lo por essência e invariavelmente. Resta, pois, se cremos Deus possuir verdadeira unidade, investigar se poderá também ser-lhe atribuída a suma unidade.

Podemos mostrar Deus possuir a suma unidade se pudermos comprovar ser ele inteiramente invariável; não podemos, porém, saber como Deus seja invariável, se primeiro não conhecermos de quantos modos uma coisa qualquer possa estar sujeita à variação. É necessário, pois, que descrevamos primeiro todos os modos de mutabilidade; e depois, percorrendo-as uma a uma, mostrar a impossibilidade de Deus estar submetido a cada uma delas.

4.

Os modos da mutabilidade.

Toda mutabilidade se realiza segundo três modos: pelo lugar, pela forma, pelo tempo.

5.

A mutabilidade pelo lugar.

Uma coisa é localmente mutável quando transita de lugar a lugar, isto é, quando deixa de estar onde esteve, e onde não estava passa a estar. Esta mutação é extrínseca, nada varia da essência da coisa. Se deixou de estar onde estava, ainda que passasse a estar em outro lugar, não principiou, todavia, a não ser o que não era.

6.

A mutabilidade pela forma.

Uma coisa passa por uma mutação formal quando, permanecendo no mesmo lugar, varia segundo a sua essência, ou por aumento recebe algo que anteriormente não possuía, ou por decréscimo perde algo que antes não possuía, ou por alteração passa a possuir de modo diverso algo que já possuía.

7.

A mutabilidade pelo tempo.

A mutabilidade pelo tempo se origina das duas precedentes, porque nada pode variar no tempo se não variar formalmente ou localmente.

8.

Deus é imutável local e formalmente.

Reunindo o que dissemos, torna-se evidente que será inteiramente imutável aquilo que não for passível de mutação nem formal nem local. Se, portanto, for possível constatarmos Deus não poder padecer variação nem segundo a forma nem segundo o lugar, não poderá haver dúvidas sobre sua completa imutabilidade.

9.

Em Deus não há mutação local.

Facilmente removeremos a mutação local de Deus se mostrarmos ser Ele onipresente, porque o que é onipresente está em todo lugar, e o que está em todo lugar, não pode transitar de lugar a lugar.

Ora, existem de fato muitos indícios da onipresença de Deus.

Temos em primeiro lugar a nossa própria alma, que a razão não duvida ser uma simples essência; temos também o sentido, o qual mostra difundir-se por todo o corpo que vivifica. Qualquer que seja a parte lesada do corpo animado, um só é aquele para o qual se volta a dor de todos os sentidos, o que não poderia acontecer se este idêntico um só não estivesse difundido por toda a parte. Se, portanto, o espírito racional do homem, sendo simples, difunde-se por todo o corpo que rege, não será digno que aquele Criador que tudo rege e tudo possui seja confinado em algum único lugar e não se creia melhor que tudo preenche. Os próprios movimentos das coisas, que correm com governo tão certo e tão racional, mostram a existência de uma vida que as move internamente.

Todavia, não se deve crer que assim como o sentido do homem se une em uma só pessoa com o corpo que sensifica, assim também aquele espírito Criador se una em uma só pessoa com o corpo sensível deste mundo, porque de modos diversos preenchem Deus o mundo, e a alma o corpo: a alma preenche o corpo e por ele é contido, porque é circunscritível; Deus, porém, preenche o mundo, mas não está contido no mundo, porque, embora onipresente, não pode ser abarcado.

Ademais, se vemos nunca estarem ausentes os efeitos da virtude divina, porque duvidaríamos da presença desta mesma virtude em todas as coisas? Se, porém, a virtude de Deus é onipresente, não sendo outra a virtude de Deus senão o próprio Deus, consta Deus nunca estar ausente. Deus não necessita, de fato, para a sua operação, da virtude alheia, como é o caso do homem, o qual realiza freqüentemente pelo auxílio alheio o que não é capaz de fazer pela virtude própria. Disto originou-se um certo costume no falar segundo o qual às vezes o homem é dito operar onde é, entretanto, indubitável estar ele pessoalmente ausente, como quando dizemos que um rei faz guerra aos seus inimigos em locais distantes, os vence ou é vencido por eles, sem todavia ter-se ausentado de sua residência, apenas pelo fato de que seus soldados, pela sua vontade e sob suas ordens, lutam, vencem ou são vencidos. O mesmo ocorre quando alguém estende uma vara ou atira uma pedra em direção a alguma coisa colocada ao longe e é dito tocar aquilo que a pedra ou a vara tiver tocado. Há muitos exemplos semelhantes, mas em nenhum deles a realidade a que a linguagem se refere é expressa com propriedade, pois em todas estas coisas atribuímos a alguém o que é operado por outro. Deus, porém, que por si mesmo e com virtude própria faz todas as coisas, onde quer que esteja presente pela obra, necessariamente também está presente pela divindade.

Poderia perguntar-se então como a essência divina, sendo simples, pode estar em todo lugar. Quem faz esta pergunta, saiba que o espírito e o corpo são ditos simples segundo modos diversos. O corpo é dito simples por causa de sua parvidade. Quando, porém, o espírito é dito simples, referimo-nos não à parvidade, mas à unidade. O Criador é, portanto, simples, porque é uno, e é onipresente, porque é Deus. Existindo em todo lugar, nunca é abarcado; preenchendo o universo, contém mas não é contido. Estando em todo lugar, não pode ser movido de lugar a lugar, e porque por nada é abarcado, não é localmente mutável.

10.

Em Deus não há mutação formal.

Nem também aquela mutação a que chamamos formal pode ocorrer em Deus. Tudo o que varia segundo a forma padece uma mutação que pode ser por aumento, por diminuição ou por alteração, e é fácil ver, examinando cada uma delas, que a natureza divina não pode sofrer nenhuma delas.

11.

Na natureza divina não pode haver mutação por aumento ou diminuição.

A natureza divina não aumenta.

Tudo o que cresce por aumento, recebe algo que é mais do que ele próprio. Tudo o que, porém, recebe algo além daquilo que possui em si próprio, é necessário que o receba de outro, porque nenhuma coisa pode dar a si mesmo o que não possui. De quem, portanto, o Criador receberia algo que não possui, se tudo o que existe procede de si próprio? Não pode crescer, portanto, quem nada pode receber que seja mais do que si próprio.

A natureza divina também não pode diminuir.

Tudo o que pode tornar-se menor do que a si mesmo, não possui verdadeira unidade, porque aquilo que se divide na separação, na união não foi o mesmo. Deus, portanto, cujo ser é inteiramente uno, de modo algum pode tornar-se menor do que si mesmo. Sua perfeição não pode ser aumentada, sua unidade não pode ser diminuída, sua imensidade não pode ser abarcada, nem pode mudar de lugar aquilo que é onipresente.

12.

Na natureza divina não há alteração.

Resta-nos mostrar agora apenas como também a alteração não convém à natureza divina.

Há diferença entre as alterações, porque umas são as dos corpos, outras as dos espíritos. Como, porém, consta pelo que já dissemos que Deus não é corpo, mas espírito, não será necessário, ao falarmos de Deus, discorrer longamente sobre as alterações dos corpos. Trataremos destas muito brevemente, para passarmos com mais competência às alterações dos espíritos: as alterações dos corpos se fazem por transposição das partes ou por mudança das qualidades. As alterações dos espíritos se fazem pelo conhecimento e pelo afeto. O espírito se altera pelo afeto quando está ora triste, ora alegre; quando é ora menos, ora mais sábio.

13.

A alteração do espírito pelo afeto.

Há principalmente duas coisas que costumam mudar o afeto do operante: um feito passado que exige arrependimento, ou um propósito de realizar no futuro algo que esteja fora da justa ordem.

O curso imutável de todas as coisas, que por uma lei perpétua não abandona o modo de sua primeira instituição, mostra, entretanto, e com bastante evidência, que Deus não se arrepende do que faz; e o nunca contradizer-se em tantos e tão numerosos corpos da natureza mostra também como nada propõe de desordenado.

Sempre imutável é, pois, a vontade divina, que não muda o conselho do passado, nem o propósito do futuro.

14.

A alteração do espírito pelo conhecimento.

Assim também deve-se crer Deus ser imutável pelo conhecimento.

O conhecimento humano está submetido à mutabilidade por três modos; por aumento, por diminuição, por sucessão.

Quando aprendemos o que não sabíamos, o conhecimento muda por aumento. Quando esquecemos o que sabíamos, o conhecimento muda por diminuição.

Quanto à mutabilidade por sucessão, pode ocorrer de quatro maneiras: na essência, na forma, no lugar, no tempo.

O conhecimento humano passa por sucessão na essência quando pensamos ora nisto, ora naquilo, porque não podemos abarcar simultaneamente todas as coisas com nossos sentidos; na forma, quando consideramos uma só e mesma coisa ora deste, ora daquele modo, não podendo fazê-lo de ambos simultaneamente; no lugar, quando conduzimos nosso pensamento para este ou para aquele outro lugar, não podendo pelo pensamento estarmos presentes em ambos; no tempo, quando consideramos ora o passado, ora o presente, ora o futuro. O conhecimento também varia no tempo quando interrompemos ou retomamos nossos pensamentos, não os podendo possuir de modo contínuo.

O conhecimento divino, porém, não sofre nenhuma destas mutabilidades.

Não aumenta, porque é pleno. Nada pode desconhecer quem tudo cria, quem tudo governa, quem tudo penetra, quem tudo sustenta. E quem a tudo está presente pela divindade, não pode estar ausente pela visão.

Também não pode diminuir aquele para quem tudo o que é não o é por outro, mas ele próprio tudo o que é o é por si mesmo e cujo um só todo que é o é por um só.

Que direi da mutabilidade por sucessão? Como poderá receber sucessão aquela sabedoria que abarca simultaneamente, de uma só vez e sob um só raio de visão, a todas as coisas? Simultaneamente, porque compreende todas as essências, todas as formas, todos os lugares, todos os tempos. De uma só vez, porque não recebe uma visão intermitente, e não interrompe a visão possuída; mas o que uma vez foi, sempre será, e o que sempre é, o é no seu todo. Vê todas as coisas, e de todas as coisas tudo vê, e vê sempre e em todo lugar. Não lhe advém nada de novo, nem de alheio, nem do seu: quando é futuro, prevê; quando é presente, vê; quando é passado, retém. Nem prevê, vê e retém nada que não esteja nele próprio, pois o que advém no tempo, já lhe era na visão, e o que passou no tempo, permanece-lhe na visão. Da mesma maneira, se todo o teu corpo fosse olho, e para ti não fossem coisas distintas o ser e o ver, qualquer coisa para que ele se voltasse não poderia não estar presente diante de ti, e, permanecendo imóvel, com um só golpe de vista, compreenderias tudo o que tivessses diante da vista, qualquer que fosse a parte de que proviesse; na verdade, verias diante de ti tudo o que de qualquer maneira estivesse situado atrás de ti. A coisa passaria, mas a visão permaneceria, e tudo o que cessasse devido à sua mobilidade, para aquele que permanece não deixaria de estar presente. Porém de fato, porque vês por partes, não vês pelo modo imutável: passando a coisa, esta ou cessará de ser vista, ou levará consigo a sua visão. Não verias deste modo mutável se fosses todo olho. Tudo o que, portanto, é por partes é mutável; e o que não é por partes não é mutável.

Deus, porém, para quem o mesmo é o ser, o viver e o inteligir, não sendo por essência por partes, não poderia sê-lo também em sua sabedoria, e assim como imutável é em sua essência, também imutável será em sua sabedoria.

15.

Conclusão.

Seja suficiente o que já dissemos sobre o conhecimento divino.

Devemos mencionar, entretanto, que este conhecimento é dito visão, sabedoria, preciência e providência. Visão porque vê, sabedoria porque intelige, preciência porque antecipa, e providência porque dispõe. Daqui se originam muitas questões difíceis e perplexas, as quais julgamos melhor não interpolar neste texto devido ao seu caráter resumido.

Passemos, pois, ao restante.