Hugo de São Vitor

OPÚSCULO SOBRE A ARTE DE
DE MEDITAR



I

OS TRÊS GÊNEROS DE MEDITAÇÃO



A meditação é a cogitação freqüente, que investiga o modo, a causa e a razão de cada coisa.

No modo, investiga o que é; na causa, por que é; na razão, como é.

Os seus gêneros são três: o primeiro é sobre as criaturas, o segundo sobre as escrituras, e o último sobre os costumes.

A meditação das criaturas surge da admiração; a meditação das escrituras, da leitura; a meditação dos costumes da circunspecção, do atento exame dos afetos, pensamentos e obras humanas.



II

A MEDITAÇÃO DAS CRIATURAS



Na meditação das criaturas a admiração gera a questão, a questão gera a investigação, a investigação a descoberta.

A admiração considera a disposição, a questão busca a causa e a investigação, a razão.

Admiramos a disposição quando consideramos a diferença entre o céu, onde tudo é igual, e a terra, onde existe o alto e o baixo.

Daqui passamos a questionar a causa, que é a terra ter sido feita para a vida terrena, enquanto que o céu para a vida celeste.

A investigação, finalmente, buscará a razão, descobrindo-a ao encontrar que tal como é a terra, tal é a vida terrena; e tal como é o céu, tal é a vida celeste.



III

A MEDITAÇÃO DAS ESCRITURAS



Na meditação sobre as Escrituras, a consideração deve ser realizada do seguinte modo.

A meditação inicia-se com a leitura: ela é que ministra a matéria para se conhecer a verdade. Segue-se-lhe a meditação, que a une. A esta se acrescentarão a oração, que a eleva; a operação, que a compõe; e a contemplação, que nela exulta. Nossa intenção agora é tratar apenas da meditação.

Nas Escrituras a meditação versa sobre como importa conhecer. Tomemos um exemplo. Está escrito:

"Desvia-te do mal, e faze o bem".

Salmo 36

À leitura sobrevém a meditação. Por que disse primeiro "desvia- te do mal" e depois "faze o bem"? A causa é porque, a não ser que os males sejam primeiro removidos, os bens não podem vir. A razão, assim como primeiro se erradicam as más sementes, depois as boas são plantadas. E também, por que disse: "Desvia-te do mal"? Porque ocorrem no caminho.

Disse também "desvia-te", porque onde pela fortaleza não podemos resistir, pelo conselho e pela razão escapamos desviando-nos.

Desviamo-nos também do mal evitando a matéria do pecado, como por exempo, por causa da soberba, evitando-se as riquezas; por causa da incontinência, a abundância; por causa da concupiscência, a inclinação da carne; por causa da inveja e do litígio, o amor da posse. Isto é desviar-se.

Do mesmo modo, se nos é dado o preceito de nos desviarmos de todo o mal, também somos ordenados a que façamos todo o bem. Aquele que não se desvia de todo o mal é réu; assim é réu também aquele que não faz o bem. Mas, se é assim, quem não é réu? Somos, portanto, ordenados a que nos desviemos de todo o mal. Quanto aos bens, porém, há alguns que são necessários; outros, voluntários. São bens necessários aqueles contidos nos preceitos e no voto; quanto aos restantes, se algo for feito, recompensar-se-á; se nada, não serão imputados.

A meditação sobre uma coisa lida deve versar também sobre como são as coisas que são sabidas, por que o são e como devem ser feitas. A meditação deve ser uma reflexão do conselho sobre como se realizam as coisas que são sabidas, porque inutilmente serão sabidas se não forem realizadas.

Três considerações a serem feitas na meditação sobre as Escrituras

Na meditação acerca de uma leitura devem se fazer três considerações: segundo a história, segundo a alegoria, e segundo a tropologia.

A consideração é segundo a história quando buscamos a razão das coisas que se fizeram, ou as admiramos em sua perfeição de acordo com os tempos, os lugares ou os modos convenientes com que se realizaram. A consideração dos julgamentos divinos exercita quem medita que em nenhum tempo faltou o que foi reto e justo, em todos os quais foi feito o que importava e foi recompensado o que foi justo.

A consideração é segundo a alegoria quando a meditação se ocupa sobre as disposições dos fatos passados, considerando- lhes a significação dos futuros. Considera também a admirável razão e providência com que foram adaptados à inteligência e à forma da fé a ser edificada.

Na tropologia a meditação se ocupa do fruto que podem trazer as coisas que foram ditas, indagando o que insinuam que se deve fazer, ou o que ensinam que deva ser evitado; o que a leitura da escritura propõe para ser aprendido, o que para ser exortado, o que para consolar, o que para se temer, o que para iluminar o vigor da inteligência, o que para alimentar o afeto, e qual a forma de viver para o caminho da virtude.



IV

A MEDITAÇÃO SOBRE OS COSTUMES



A meditação sobre os costumes deve ter por objeto os afetos, os pensamentos e as obras.

Os afetos

Deve-se considerar nos afetos que sejam retos e sinceros, isto é, orientados para aquilo que devem sê-lo e segundo o modo com que devem sê-lo.

Amar aquilo que não se deve é mau, e semelhantemente amar de um modo indevido aquilo que deve ser amado também é mau: o bom afeto existe quando se dirige para aquilo que é devido e segundo o modo com que é devido.

Amnon amou a irmã, e este era um afeto a algo que era devido, mas porque amou mal, não o era segundo o modo como era devido.

O afeto pode ser dirigido àquilo a que é devido e não ser do modo devido; nunca, porém, poderá sê-lo do modo devido se não for dirigido àquilo a que é devido.

O afeto é reto segundo se dirija ao que é devido, e é sincero segundo seja do modo devido.

Os pensamentos

Nos pensamentos deve-se considerar que sejam puros e ordenados.

São puros quando nem são gerados de maus afetos, nem geram maus afetos.

São ordenados quando advém racionalmente, isto é, no seu tempo. De fato, no tempo que não é o seu, mesmo o pensar no que é bom não é sem vício; como na leitura pensar na oração, e na oração pensar na leitura.

As obras

Nas obras deve-se considerar primeiro que sejam feitas com boa intenção.

A boa intenção é a que é simples e reta.

É simples a que é sem malícia.

É reta a que é sem ignorância.

A intenção que é sem malícia possui zelo. Mas a que é por ignorância e não é segundo a ciência, só por causa disso já não possui zelo.

Assim, importa que a inteção seja reta pela discrição, e simples pela benignidade.

Ademais, além da boa intenção deve-se considerar também nas obras que sejam conduzidas desde a reta intenção concebida até ao seu fim por um perseverante fervor, de tal modo que nem a perseverança se entorpeça, nem o amor se arrefeça.



V

OUTROS REQUISITOS DA
MEDITAÇÃO SOBRE OS COSTUMES



A meditação sobre os costumes deve discorrer, ademais, por duas considerações, que são a externa e a interna. A consideração externa é a consideração quanto à forma; a consideração interna é a consideração quanto à consciência.

Na consideração externa, devemos examinar o que é decente e o que é conveniente.

A decência deve ser considerada pelo exemplo dado em relação ao próximo. A conveniência deve ser considerada pelo mérito em relação a nós.

Na consideração interna, quanto à consciência, devemos examinar se a consciência é pura e se não possa ser acusada tanto pelo torpor no bem como pela presunção no mal. A consciência é pura quando nem é acusada do passado, nem se regozija injustamento do presente.

A origem e a tendência de todos os movimentos do coração.

A meditação sobre os costumes deve exercer também sua consideração no sentido de depreender todos os movimentos que se originam no coração, de onde vêm e para onde tendem.

Deve examinar de onde vêm segundo a origem, e para onde tendem segundo o fim: todo movimento é proveniente de algo e se dirige para algo.

Os movimentos do coração, porém, às vezes têm uma origem manifesta, outras vezes oculta. Os que a têm manifesta, ainda às vezes a têm manifestamente boa, outras vezes manifestamente má.

A origem que é manifestamente boa é de Deus; a que é, porém, manifestamente má é do demônio ou da carne. Todas as sugestões e todas as aspirações que invisivelmente advêm ao coração procedem destes três autores.

As coisas ocultas às vezes são boas e ocultas, outras vezes màs e dúbias. As que são boas são de Deus; as que são más, do demônio ou da carne.

O que é manifesto, seja bom ou seja mau, é julgado pela sua primeira origem. O que, entretanto, é dúbio em sua origem, é provado pelo fim. O fim manifesta o que no princípio se encobria; por causa disto, quem não pode julgar os seus movimentos pelo princípio, investigue o fim e a consumação.

As coisas, portanto, que são dúbias ou incertas são bens ou males ocultos. As que são males, conforme foi dito, são do demônio ou da carne. Elas não se distinguem pelo fato de serem más; distinguem-se pelo fato de que as da carne freqüentemente surgem por causa de uma necessidade, enquanto as do demônio o fazem sem uma razão, pois aquilo que é sugerido pelo demônio, assim como é alheio ao homem, assim freqüentemente é alheio à razão humana. As obras do demônio se discernem, pois, por serem estranhas ao homem e alheios à razão humana, enquanto que as da carne e as suas sugestões freqüentemente têm uma necessidade precedente como causa; ultrapassando, porém, o modo e a necessidade, crescem até à superfluidade.

O discernimento entre o bem e o mal, e dos bens entre si.

A meditação dos costumes também deve exercer-se pelos três julgamentos seguintes.

O primeiro é o que julga entre o dia e a noite.

O segundo é o que julga entre o dia e o dia.

O terceiro é o que julga o dia todo.

Julgar entre o dia e a noite é dividir as coisas más das boas.

Julgar entre o dia e o dia é ter o discernimento entre o bom e o melhor.

Julgar o dia todo é avaliar cada um dos bens singulares pelo seu mérito.

O fim e a direção de todos os trabalhos.

A meditação dos costumes deve também considerar o fim e a direção de todos os trabalhos.

O fim é aquilo ao qual se tende.

A direção, aquilo através do qual mais facilmente se chega.

Tudo aquilo que tende a algum fim a ele se dirige segundo algum caminho próprio, e aquilo que prossegue do modo mais direto, mais rapidamente chega. Há alguns bens nos quais há muito para se mover e pouco para se promover. Outros, com pequeno trabalho produzem grande fruto.

Estes, portanto, que mais aproveitam, devem ser discernidos e mais escolhidos: são os melhores, e importa julgar todo trabalho segundo o seu fruto.

Muitos, não possuindo este discernimento, trabalharam muito e progrediram pouco, já que puseram seus olhos apenas externamente na beleza da obra, e não internamente no fruto da virtude. Gabaram-se mais em fazer grandes coisas do que exercitar o que é útil, e amaram mais aquilo em que pudessem ser vistos, do que aquilo em que pudessem se emendar.

O discernimento dos graus das obrigações

A meditação dos costumes deve considerar sempre em primeiro lugar as coisas que são devidas, seja pelo preceito, seja pelo voto, e julgá-las como as primeiras a serem feitas. Estas obras, se feitas, possuem mérito; se não feitas, geram reato. Devem, portanto, ser feitas em primeiro lugar, e não podem ser deixadas sem culpa.

Depois destas, se lhe são acrescentadas outras por um exercício voluntário, isto deverá ser feito de tal maneira que não seja impedido o que é devido.

Há quem queira o que não deve, não querendo o que deve; outros, ainda, querendo o que devem, todavia colocam impedimentos voluntários querendo o que não devem.

O evitar a aflição e a ocupação

A meditação dos costumes deve considerar também evitar-se na boa ação principalmente os dois males da aflição e da ocupação.

A aflição gera a amargura, a ocupação gera a dissipação. Pela aflição, amarga-se a doçura da mente; pela ocupação, dissipa-se a sua tranquilidade.

A aflição surge quando a impaciência nos queima com coisas impossíveis. A ocupação, quando a impaciência nos agita com coisas possíveis.

Para que a alma não se amargure, sustente pacientemente a sua impossibilidade; para que não se ocupe erroneamente, não estenda suas possibilidades além da sua medida.

O julgamento da forma correta de viver

A meditação dos costumes deve julgar também a forma de viver, provando não ser bom apetecer impacientemente as coisas que não se fazem, nem aborrecer-se tolamente com as que se fazem.

Quem sempre apetece o que não faz e aborrece o que faz, nem frui o que lhe é presente, nem se sacia do que lhe é futuro. Abandona o iniciado antes da consumação, e toma antes do tempo o que deve ser iniciado.

Portanto, é bom contentar-se com o seu bem e aumentar os bens presentes com os bens supervenientes, sem desprezá-los pelos futuros.

A troca dos bens pertence à leviandade; o exercício, porém, à virtude: aqueles que desprezam os velhos pelos novos e aqueles que sobem dos inferiores aos superiores correm por caminhos muito diversos. Aquele que busca a mudança é tão fastidioso como é aplicado aquele que apetece o aperfeiçoamento.

Caminha, portanto, retissimamente aquele que é de tal maneira fervoroso para o melhor que não se aborrece no bem, mas sustenta o anterior até que no devido tempo alcance o posterior.