Orígenes

De Principiis (livro IV)

IIª Parte



8.

Feito este breve comentário sobre a inspiração das Sagradas Escrituras pelo Espírito Santo, parece-nos agora necessário explicar por que motivo alguns, ignorando o caminho pelo qual se alcança o entendimento das letras divinas, não as lendo corretamente, caíram em tantos erros.

Os judeus, pela dureza de seu coração, querendo parecer sábios diante de si mesmos, julgando que as coisas que foram ditas de Cristo deviam ser entendidas segundo a letra, não creram em nosso Senhor e Salvador. Julgaram que Ele pregaria a libertação aos cativos de modo sensível e visível, que deveria antes edificar a cidade que verdadeiramente consideram a cidade de Deus, exterminando simultaneamente as carroças de Efraim e os cavalos de Jerusalém (Zc. 9, 10), e que comeria manteiga e mel para que, antes que soubesse rejeitar o mal, escolhesse o bem (Is. 7, 15). Também julgaram ter sido profetizado que, quando do advento de Cristo, o lobo, este animal quadrúpede, seria apascentado com os cordeiros, que o leopardo repousaria com os cabritos, que o bezerro e o touro se alimentariam junto com os leões e que seriam conduzidos ao pasto por uma criança pequena; que o boi e o urso descansariam juntos nas pastagens e que suas crias seriam alimentadas igualmente; que os leões freqüentariam as mesmas manjedouras que os bois e se alimentariam de palha (Is. 11, 6-9). Vendo que nenhuma destas coisas que foram profetizadas se realizaram segundo a história, coisas que, consideravam eles, seriam os principais sinais que se observariam quando do advento de Cristo, não quiseram aceitar a presença de nosso Senhor Jesus Cristo. Ao contrário, como se ele, contra o direito e o lícito, isto é, contra a fé da profecia, tivesse assumido para si o nome de Cristo, o crucificaram.

Os hereges, por outro lado, lendo o que está escrito na Lei:

"O fogo de meu furor se acendeu";

Jer. 15, 14

e também:

"Eu sou o Senhor teu Deus
forte e zeloso,
que vingo a iniquidade
dos pais nos filhos
até à terceira e quarta geração
daqueles que me odeiam";

Ex. 20, 5

"Arrependo-me de ter ungido
rei a Saul";

I Sam. 15, 11

"Eu sou o Senhor,
que faço a paz,
e que crio os males";

Is. 45, 7

"Haverá algum mal na cidade
que não tenha sido feito por Deus?"

Amós 3, 6

"Desceram do Senhor os males
sobre as portas de Jerusalém";

Miq. 1, 12

"O espírito maligno,
mandado por Deus,
sufocava Saul";

I Sam. 18, 10

e muitas outras coisas passagens semelhantes a estas, não ousaram dizer que elas não fossem escrituras de Deus, mas as julgaram que fossem daquele Deus criador que os judeus cultuam, do qual afirmaram que seria apenas justo, não, porém, bom. Julgaram dever crer também que o Salvador teria vindo para anunciar-nos um Deus mais perfeito, que negam ser o criador do mundo, havendo, porém, entre eles, até mesmo a este respeito, diversas opiniões discordantes. Uma vez que, afastando-se da fé do Deus criador que o é de todas as coisas, na medida em que a fantasia e a vaidade de suas almas lhos sugeria, entregaram-se a diversas fábulas e ficções e disseram que algumas coisas seriam visíveis e criadas por um Deus, enquanto que outras seriam invisíveis e criadas por outro. Alguns, entretanto, dos mais simples entre eles, os quais parecem manter-se dentro da fé da Igreja, julgam que não há nenhum Deus maior do que o Criador, conservando a este respeito uma reta e sadia sentença; julgam, porém, coisas tais sobre este Deus que não poderiam ser julgadas sequer de um homem extremamente injusto e cruel.

9.

A causa do entendimento errôneo de todas estas coisas por parte daqueles a quem mencionamos acima não é outra senão que a Sagrada Escritura não é por eles entendida segundo o sentido espiritual, mas segundo o som da letra. Por isso nos esforçaremos em demonstrar, segundo a pequenez do nosso sentir, aos que crêem que as Sagradas Escrituras não foram compostas por palavras humanas, mas redigidas por inspiração do Espírito Santo e transmitidas e confiadas a nós por vontade de Deus Pai pelo seu Filho unigênito Jesus Cristo, o que a nós parece ser a reta via dos que observam a inteligência, aquela regra e disciplina transmitida por Jesus Cristo aos apóstolos os quais, por sucessão, a transmitiram também aos seus pósteros que haveriam de ensinar a santa Igreja.

Todos, conforme penso, até mesmo os mais simples dos fiéis, crêem que há certas dispensações místicas assinaladas pela Sagrada Escritura. Quais sejam estas, porém, ou o que são, quem possuir reta mente e não for oprimido pelo vício da jactância será religiosamente obrigado a confessar ignorá-lo.

Se alguém, por exemplo, nos questionar sobre as filhas de Ló, que contra o direito se aproximaram carnalmente do pai, ou sobre as duas esposas de Abraão, ou sobre as duas irmãs que se casaram com Jacó, ou sobre as duas servas que lhes aumentaram a numerosidade dos filhos, o que mais poderá ser respondido senão que estas coisas são certos sacramentos e formas de coisas espirituais, que nós todavia ignoramos quais sejam?

Quando lemos sobre a construção do tabernáculo, temos como certo também que estas coisas que são escritas são figuras de outras coisas ocultas. Adaptar, porém, cada uma ao seu modo e abrir e dissertar sobre cada uma delas, considero ser coisa imensamente difícil, para não dizer impossível.

Todavia, conforme disse, é algo que não escapa até mesmo da inteligência comum que aquela descrição é repleta de mistérios. Todas aquelas narrativas que parecem terem sido escritas sobre núpcias, sobre procriação de filhos, sobre guerras diversas ou quaisquer outras histórias, que outra coisa devemos crer que sejam senão formas e figuras de coisas ocultas e sagradas? Todavia, devido ao fato de que os homens usam de tão pouca aplicação para exercitar o engenho e que, antes que aprendam, já consideram que sabem, decorre que nunca começam a saber. No entanto, se não faltar o estudo nem o mestre, e se estas coisas forem buscadas como divinas, isto é, religiosa e piamente, com autêntica esperança de que muitas sejam abertas pelo Deus que revela, ainda que para o entendimento humano sejam imensamente difíceis e ocultas, talvez quem assim as busque facilmente encontrará o que é lícito buscar.

10.

Mas para que não se julgue que a dificuldade esteja apenas nos discursos proféticos, já que para todos é certo que o estilo profético está semeado de figuras e enigmas, o que deveremos dizer quando nos aproximamos do Evangelho? Não se esconde ali também um sentido interior, como que um sentido divino, que somente é revelado por aquela graça que a recebeu aquele que dizia:

"Nós, porém, temos o pensamento de Cristo,
para que conheçamos as coisas
que por Deus nos foram dadas.
Falamos não com palavras
aprendidas de humana sabedoria,
mas na doutrina do Espírito".

I Cor. 2, 16-12-4

E quanto às coisas que foram reveladas a João, como não se admirará, quem as ler, de que haja ali ocultos tantos inefáveis mistérios, nos quais tão manifestamente também aqueles que não podem entender o que neles se esconde, entendem todavia que algo se esconde? Também as cartas dos apóstolos, as quais a alguns parecem que sejam mais fáceis, não estão elas igualmente repletas de sentidos tão profundos que, para aqueles que podem entender o sentido da sabedoria divina, parece que se lhes infunde, por um pequeno receptáculo, a claridade de uma luz imensa?

Já que estas coisas são assim e há tantos que erram nesta vida, julgo que não é coisa destituída de perigo que se declare facilmente que alguém as conhece ou as entende. Tratam-se de coisas que, para que possam ser abertas, é preciso usar a chave da ciência, chave que o Salvador dizia estar com os doutores da lei. Embora estejamos nos desviando de nosso tema, considero que deveria ser assunto de reflexão para aqueles que dizem que antes do advento do Salvador não havia verdade junto aos que eram versados na Lei, como é possível que Jesus Cristo, Nosso Senhor, diga que as chaves da ciência estejam junto aos que tinham os livros dos profetas e da Lei em suas mãos? De fato, é assim que ele diz:

"Ai de vós, doutores da Lei,
que usurpastes a chave da ciência,
e nem entrastes vós,
nem deixastes entrar
os que queriam entrar".

Lc. 11, 52

11.

Retornando, porém, ao nosso assunto, conforme começávamos a dizer, julgamos que a via que nos parece ser reta para entender as Escrituras e buscar o seu sentido é aquela que no-la é ensinada pela própria Escritura quando esta nos mostra como devemos sentir sobre ela mesma.

No livro de Provérbios encontramos Salomão ter preceituado o seguinte sobre a consideração da Sagrada Escritura:

"E tu",

diz ele,

"descreve para ti
estas coisas três vezes,
em conselho e ciência,
para que respondas as palavras da verdade
aos que as propuserem a ti".

Pr. 22, 20-21

Cada um, portanto, deve descrever três vezes em sua alma a inteligência das letras divinas.

Deve fazê-lo, primeiro, para que os mais simples sejam edificados pelo próprio corpo das Escrituras, por assim dizer. É deste modo que chamamos ao entendimento comum e histórico.

Se, porém, eles já começam a adiantar-se um pouco, de tal modo que possam entender algo mais profundamente, que sejam edificados também pela própria alma das Escrituras.

Quanto aos que, porém, forem perfeitos e semelhantes àqueles de quem diz o Apóstolo:

"Não obstante,
é a sabedoria que pregamos
entre os perfeitos;
não, porém, uma sabedoria
deste mundo,
nem dos príncipes deste mundo,
que serão destruídos;
mas falamos da sabedoria de Deus
encoberta no mistério,
e que Deus predestinou antes dos séculos
para a nossa glória";

I Cor. 2, 6-7

que sejam estes edificados, como que pelo seu espírito, pela própria lei espiritual que possui a sombra dos bens futuros.

Assim como o homem é dito ser constituído de corpo, alma e espírito, assim também o é a Sagrada Escritura que pela liberalidade divina foi concedida para a salvação dos homens.

Tudo isto pode ser visto assinalado também no livro chamado "O Pastor", que parece ser desprezado por alguns. Nele, com as seguintes palavras, está escrito ter sido ordenado a Hermas que escreva dois livros, e que depois anuncie aos presbíteros da Igreja aquilo que aprendeu pelo Espírito:

"Escreve",

diz o livro,

"dois livros,
e darás um a Clemente,
e outro a Grapte.
Que Grapte advirta
as viúvas e os órfãos.
Clemente seja enviado
por todas as cidades de fora.
Tu, porém, as anunciarás
aos presbíteros da Igreja".

L. 1 Vis. 2,4

Grapte, ao qual se ordena que advirta os órfãos e as viúvas, é o puro entendimento da própria letra, pela qual são advertidas as almas infantis que ainda não mereceram ter Deus como pai, e que por causa disso são chamados de órfãs. Já as viúvas são aquelas que se separaram do homem iníquo ao qual foram unidas contra a Lei, permanecendo, todavia, viúvas, pelo fato de ainda não se terem unido ao esposo celeste.

A Clemente ordena-se que envie as coisas que foram ditas às cidades de fora, que são aqueles que já se afastam da letra, aquelas almas que começaram a ser edificadas fora dos cuidados do corpo e além dos desejos carnais.

Aquilo que, porém, Hermas aprendeu do Espírito Santo, não por letras, nem por livros, mas por viva voz, é-lhe ordenado que o anuncie aos presbíteros da Igreja de Cristo, isto é, aos que possuem um maduro sentido da prudência capaz da doutrina espiritual.

12.

Não se deve, todavia, ignorar que há algumas coisas nas Escrituras em que nem sempre pode ser encontrado o que chamamos de corpo, isto é, o que se segue ao entendimento da história, nas quais, conforme demonstraremos a seguir, somente deverão ser entendidas as coisas às quais chamamos de alma ou espírito.

Penso que isto no-lo é apontado também no Evangelho, quando este diz que haviam sido postas para a purificação dos judeus seis talhas de pedra, nas quais cabiam, cada uma, duas ou três metretas (Jo. 2, 6). Nesta passagem a palavra evangélica parece referir-se aos que são chamados pelo Apóstolo de judeus que o são em oculto, os quais se purificam pela palavra da Escritura, contendo às vezes duas metretas, isto é, recebendo o entendimento da alma ou do espírito, contendo outras vezes três metretas, quando a leitura pode conter, para a edificação, também o entendimento corporal, que é a história. As seis talhas de pedra, por conseguinte, se referem aos que, colocados neste mundo, buscam a purificação. De fato, lemos ter-se consumado em seis dias, que é número perfeito, este mundo e tudo o que nele existe. A multidão de todos os fiéis testemunha quanta utilidade há neste primeiro entendimento que chamamos de histórico, o qual pode ser suficientemente crido com fidelidade e simplicidade sem necessidade de muitas explicações, conforme é bastante evidente para todos.

Quanto à inteligência da qual dissemos acima ser como que a alma da Sagrada Escritura, o apóstolo Paulo dela nos deu numerosíssimos exemplos, como quando escreve na Primeira Epístola aos Coríntios:

"Está escrito na Lei de Moisés:

`Não amordaçarás o boi
que tritura o grão'".

I Cor. 9, 9

Em seguida, explicando como este preceito deveria ser entendido, acrescenta dizendo:

"Porventura Deus tem cuidado dos bois?
Não é antes por nós mesmos
que Ele diz isto?
Sim, é por causa de nós
que isto foi escrito,
porque o que lavra
deve lavrar com esperança,
e o que debulha deve-o fazer
com esperança de participar dos frutos".

I Cor. 9, 10

Assim também uma multidão de outras coisas que são assim interpretadas da Lei conferem aos ouvintes muitíssimo entendimento.

13.

Quanto à explicação espiritual, esta é aquela pela qual alguém pode mostrar quais são as coisas celestes às quais os que são judeus segundo a carne servem como imagens e sombras, coisas futuras das quais a Lei é sombra, e outras tantas semelhantes que se encontram nas Santas Escrituras. A inteligência espiritual é também aquela pela qual buscamos qual seja a sabedoria escondida no mistério

"que Deus predestinou
antes dos séculos
para a nossa glória
e nenhum dos príncipes
deste século conheceu".

I Cor. 2, 7

É também aquela a que se refere o próprio Apóstolo quando usa de alguns exemplos de Êxodo ou de Números e diz que

"estas coisas lhes aconteciam em figura,
mas foram escritas por causa de nós,
para quem o fim dos séculos chegou",

I Cor. 10, 11

oferecendo-nos ocasião à inteligência para que possamos entender do que estas coisas que lhes aconteciam eram figuras, quando nos diz também que

"bebiam da pedra espiritual
que os seguia,
e esta pedra era Cristo".

I Cor. 10, 4

Quanto ao tabernáculo, o mesmo apóstolo nos lembra em outra epístola aquelas palavras que foram preceituadas a Moisés:

"Farás todas as coisas
segundo a forma
que te foi mostrada no monte".

Heb. 8, 5

Escrevendo aos Gálatas, e repreendendo pela palavra a alguns que a si mesmos pareciam que liam a Lei mas, por ignorarem haver alegorias nas coisas que foram escritas, não a entendiam, assim lhes diz com uma certa repreensão:

"Dizei-me vós, os que credes
estar debaixo da Lei,
não lestes a Lei?
De fato, está escrito que Abraão
teve dois filhos,
um da escrava e outro da livre.
Mas aquele que nasceu da escrava,
nasceu segundo a carne;
aquele, porém, que nasceu da livre,
nasceu segundo a promessa.
Estas coisas são alegorias.
De fato, estes são os dois testamentos".

Gal. 4, 21-24

Nisto deve-se também considerar o quão cautelosamente o Apóstolo falou, ao dizer:

"Vós, que estais sob a Lei,
não ouvistes a Lei?"

`Ouvistes', isto é, `entendestes e conhecestes'. E também, na Epístola aos Colossenses, abraçando e resumindo brevemente o sentido de toda a Lei:

"Ninguém, pois, me condene
pelo comer e pelo beber,
ou pelos dias solenes,
ou pelas neomênias, ou pelo sábado,
que são sombra de coisas futuras".

Col. 2, 16-17

É ele também que, escrevendo aos Hebreus e aos que são da circuncisão, diz:

"Eles que servem
à imagem e à sombra
das coisas celestes".

Heb. 8, 5

Tudo isto talvez não parecerá matéria de dúvida, para aqueles que recebem os escritos do Apóstolo como sentenças divinas, no que diz respeito aos cinco livros de Moisés. Mas se investigarmos o que se refere à história restante, veremos que mesmo as coisas que ali estão contidas deverão também ser ditas terem acontecido em figura para aqueles dos quais são escritas. É o que se encontra escrito na Epístola aos Romanos, quando o Apóstolo coloca um exemplo tirado do Terceiro Livro dos Reis, dizendo:

"Eu reservei para mim
sete mil homens,
que não dobraram os joelhos
diante de Baal".

Rom. 11, 4

Paulo toma estas palavras como ditas figurativamente daqueles que são chamados israelitas segundo a eleição, para que fosse mostrado que o advento de Cristo não aproveita somente agora aos gentios, mas a muitos outros chamados à salvação também da descendência de Israel.