Orígenes

De Principiis (livro IV)

IIIª Parte



14.

Tudo isto sendo assim, esboçaremos, como exemplo e forma, conforme nos ocorrer, de que modo deve ser entendida, sobre cada uma destas coisas, a divina Escritura.

Repetiremos e mostraremos primeiro que o Espírito Santo, pela providência e vontade de Deus e pela virtude de seu Verbo unigênito, que era no princípio Deus junto de Deus, iluminava os ministros da verdade, os profetas e apóstolos, para que conhecessem os mistérios daquelas coisas ou causas que aconteciam entre os homens ou com os homens. Chamo aqui de homens as almas colocadas nos corpos que, ao narrar ações humanas ou transmitir preceitos e observâncias, descreviam figuradamente os mistérios que lhes eram conhecidos e revelados por Cristo, não para que qualquer um que os quisesse conculcar aos pés as tivesse explicadas, mas para que os que se entregassem ao seu estudo com toda a pureza, sobriedade e vigílias pudessem investigar profundamente o sentido escondido do Espírito de Deus e pudessem, pela narrativa costumeira do discurso, contemplar um outro contexto mais elevado, tornando-se desta maneira sócios da ciência e do Espírito e participantes do conselho divino. De fato, não há nenhuma outra maneira pela qual a alma pode alcançar a perfeição da ciência se não pela inspiração da verdade da sabedoria divina.

Estes homens, portanto, repletos do espírito divino, trataram principalmente de Deus, isto é, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Falaram também, conforme dissemos, repletos do espírito divino, dos mistérios do Filho de Deus, de como o Verbo se fêz carne e por qual causa veio a tomar a forma de servo. Pela palavra divina, em seguida, ensinaram aos mortais, sobre as criaturas racionais, tanto as celestes quanto as mais felizes entre as terrenas, sobre a diferença das almas e sobre a origem destas diferenças, e sobre o que é este mundo, por que foi feito e de onde provém a existência de tanta e tamanha malícia sobre a terra. Quanto à questão sobre se esta malícia existe somente na terra ou também é encontrada em outros lugares, isto será necessário que o aprendamos a partir dos discursos divinos.

A intenção do Espírito Santo era iluminar primeiramente estas santas almas e outras a elas semelhantes que haviam se consagrado ao ministério da verdade. Em seguida, conforme já dissemos, por causa daqueles que não pudessem ou não quisessem entregar-se ao trabalho e à indústria pela qual mereceriam que lhes fossem ensinadas ou viessem a conhecer tantas e tais coisas, havia a perspectiva de ocultar os mistérios envoltos em discursos costumeiros, sob o pretexto de alguma história ou da descrição de coisas visíveis.

Foi deste modo que se introduziu a narração da criação e da formação da criatura visível e do primeiro homem, à qual se seguiu a da sua descendência, fazendo-se referência a algumas coisas realizadas por alguns justos e também relembrando-se alguns de seus delitos como de homens. Foi daqui que foram escritas algumas ações impúdicas e iníquas dos ímpios. De um modo admirável, encontram-se também narrações de batalhas realizadas e a descrição da diversidade ora dos que vencem, ora dos vencidos, pelas quais coisas se declaram, aos que sabem investigar tais ditos, certos mistérios inefáveis. À Escritura legal, pela admirável disciplina da sabedoria, é inserida a Lei da verdade e também dos profetas; e com todas estas coisas foram tecidas pela divina arte da sabedoria como que um certo indumento e véu dos sentidos espirituais. É a isto que chamamos de corpo da Sagrada Escritura, e é deste modo que, pelo que chamamos de revestimento da letra, tecido pela arte da sabedoria, muitos, que não o poderiam de outro modo, podem ser edificados e adiantar-se.

15.

No entanto, se em todas as coisas desta roupagem, isto é, se em tudo o que se encontra na história da lei, fossem guardadas as conseqüências e conservada a ordem, de tal modo que nela a inteligência pudesse conservar um curso contínuo de entendimento, não acreditaríamos que pudesse haver mais nada inserido mais profundamente nas Sagradas Escrituras do que isto que nos é manifestado na sua superfície. A sabedoria divina procurou, por este motivo, colocar certos estorvos ou interrupções ao entendimento histórico, inserindo em sua narrativa certas impossibilidades e inconveniências, para que as próprias interrupções da narração oferecessem resistência ao leitor como se fossem obstáculos pelos quais se nega caminho ou passagem ao entendimento vulgar. Assim excluídos e repelidos, somos conduzidos ao início de uma outra via, de tal modo que, pelo ingresso de uma passagem estreita para um caminho mais elevado e mais eminente, se manifeste a imensa grandeza da ciência divina.

Devemos considerar que o principal objetivo do Espírito Santo foi o de guardar a conseqüência da inteligência espiritual, tanto nas coisas que devem ser feitas como nas coisas que já se fizeram. Assim, onde o Espírito Santo encontrou que as coisas que se fizeram segundo a história podiam ser adaptadas à inteligência espiritual, compôs a ordem de ambos os textos em um só discurso narrativo, escondendo sempre o sentido oculto mais elevado. Onde, porém, não pôde convir a conseqüência espiritual à história das coisas realizadas, inseriu algumas coisas que foram feitas menos ou que não poderiam ter sido feitas de nenhum modo, ou às vezes também que poderiam ter sido feitas, mas que não o foram. Em alguns discursos nos quais, segundo a inteligência corporal, não parece que possa ser guardada a verdade, isto é feito com muitas inserções, o que principalmente costuma acontecer na legislação, onde há muitas coisas que nos próprios preceitos corporais é manifesto que sejam úteis, embora haja outras nas quais não se manifesta nenhuma razão de utilidade e às vezes até mesmo se observam impossibilidades.

Tudo isto, conforme dissemos, o Espírito Santo buscou para que, na medida em que o que está na superfície não possa ser verdadeiro ou útil, rapidamente fôssemos chamados à busca de uma verdade mais alta e procurássemos nas Escrituras, que cremos inspiradas por Deus, um sentido digno de Deus.

16.

O Espírito Santo, porém, não cuidou apenas das coisas que foram escritas até o advento de Cristo mas, como um só e mesmo Espírito procedente de um só Deus, fêz também o mesmo nos evangelistas e apóstolos. Também aquelas narrações que inspirou por meio destes foram tecidas pela arte de sua sabedoria que expusemos acima.

Também nelas misturou coisas nada pequenas pelas quais, interpolada ou interrompida pela sua impossibilidade a ordem histórica da narrativa, dobrasse e chamasse a intenção do leitor ao exame da inteligência interior.

Mas, para que o que dizemos seja conhecido pelos próprias coisas, consultemos as próprias passagens das Escrituras.

A quem, pergunto, que tenha senso, parecerá ser dito coerentemente que o primeiro, o segundo e o terceiro dia, nos quais se nomeiam tardes e manhãs, foram sem Sol, sem Lua e sem estrelas, e o primeiro dia sem céu?

Quem será encontrado tão idiota que julgue que Deus, como um homem qualquer do campo, tenha plantado árvores no paraíso, no Éden voltadas para o Oriente, e nele tenha plantado a árvore da vida, isto é, uma árvore visível e palpável, e de tal maneira que alguém comendo desta árvore com seus dentes corporais alcançasse a vida e, comendo de outra árvore, obtivesse a ciência do bem e do mal?

Quando se diz que Deus caminhava no paraíso após o meio dia, e que Adão se escondia debaixo da árvore, não tenho dúvida de que com isto a Escritura profere uma expressão figurativa, na qual se indicam certos mistérios.

Caim, tendo-se retirado da face de Deus (Gen. 4, 16) manifestamente induz o leitor prudente a que se pergunte o que é a face de Deus, e como alguém poderá retirar-se dela.

Para não ampliar a obra que temos em mãos mais do que o justo, será muito fácil, para quem o quiser, reunir das santas escrituras muitas coisas que, apesar de terem sido escritas como fatos, não podem ser cridas competente e razoavelmente que se tenham realizado segundo a história.

Este modo de escrever pode ser encontrado abundante e copiosamente também nos livros evangélicos, quando se diz, por exemplo, que o demônio transportou Jesus para um elevado monte (Mt. 4, 8) para que dali lhe mostrasse todos os reinos do mundo e a sua glória. Como parecerá que tenha se podido fazer com que Jesus tivesse sido conduzido pelo demônio a um alto monte, ou também que se lhe tivesse sido mostrado aos seus olhos carnais, junto a um só monte, todos os reinos do mundo, isto é, o reino dos Persas, dos Scítios e dos Índios, ou também como os seus reis são glorificados pelos homens? Muitíssimas outras coisas semelhantes a estas encontrará no Evangelho quem o ler mais atentamente, e poderá notar que nestas narrativas que parecem enunciadas segundo a letra, há inseridas e simultaneamente tecidas coisas que a história não recebe, mas que, todavia, possuem uma inteligência espiritual.

19.

Não queremos que ninguém suspeite que julgamos que não haja história alguma nas Escrituras porque dissemos que algumas destas coisas não foram feitas, nem que nenhum preceito da Lei deva ser entendido segundo a letra porque consideramos que em alguns deles a razão ou a possibilidade não admite que sejam entendidos segundo a letra. Não é nosso pensamento também que as coisas que foram escritas do Salvador não se tenham cumprido de modo sensível, nem que os seus preceitos não devam ser observados segundo a letra. Ao contrário, o que se nos mostra de modo evidente é que em muitas passagens da Escritura não só pode como também deve ser observada a verdade da história.

Quem poderá negar que Abraão foi sepultado em uma caverna dupla em Hebron (Gen. 25, 10), assim como também Isaaque e Jacó, juntamente com suas esposas (Gen. 49, 31; 50, 13)?

Ou quem duvidará que Siquém foi dada como porção a José (Jos. 24, 32)?

Ou que Jerusalém é metrópole da Judéia, na qual foi construído o templo de Deus por Salomão?

E, assim como ocorre com estas passagens, o mesmo pode ser dito de uma multidão inumerável de outras.

Muitas mais, de fato, são as passagens que constam deverem ser entendidas segundo a história do que aquelas que contém um aberto sentido espiritual. Quem não afirmará que o mandamento que preceitua:

"Honra teu pai e tua mãe,
para que haja bem para ti",

Ex. 20, 13

seja suficiente sem nenhuma interpretação espiritual, e que seja necessário aos que o observam? E isto principalmente quando consideramos que Paulo, repetindo as mesmas palavras, confirma o mesmo preceito (Ef. 6, 2-3). E o que deveremos dizer do que está escrito:

"Não adulterarás,
não matarás,
não furtarás,
não dirás falso testemunho",

Ex. 20, 13-16

e outras muitas passagens como estas? E quanto às coisas que são ordenadas no Evangelho, quem poderá duvidar que muitas devem ser observadas segundo a letra, como quando se diz:

"Eu, porém, vos digo,
não jureis de modo algum"?

Mt. 5, 34

E também quando se diz:

"Quem olhar para uma mulher
para desejá-la,
já adulterou com ela
em seu coração".

Mt. 5, 14

O mesmo se deve dizer de Paulo apóstolo quando preceitua:

"Corrijais os inquietos,
consoleis os pusilânimes,
sustentai os fracos,
sede pacientes com todos",

I. Tes. 5, 14

e de muitos outros preceitos que a estes se assemelham.

Todavia, se alguém ler mais atentamente, estou certo que em muitos lugares duvidará se esta ou aquela história deve ser considerada verdadeira ou menos verdadeira segundo a letra; e se algum determinado preceito deva ser observado segundo a letra ou não. Para isto é necessário que nos esforcemos com muito estudo e trabalho, entendendo com a maior reverência que as coisas que são colocadas nos livros santos são palavras divinas e não humanas.

20.

Nós, portanto, consideramos que este é o entendimento que deve ser guardado, digna e conseqüentemente, nas Sagradas Escrituras.

As sagradas letras pregam haver um povo sobre a terra escolhido por Deus, o qual foi chamado com vários nomes. Às vezes todo este povo é dito Israel, às vezes Jacó. De um modo especial, depois que este povo foi dividido por Jeroboão filho de Nadab em duas partes (1Reis 12), as dez tribos que permaneceram sob seu domínio foram chamadas de Israel, enquanto que as outras duas, junto com as quais também estava a tribo de Levi, e das quais uma era aquela de cuja estirpe real descendia Davi, foi chamada de Judá. Todo o lugar que este povo possuía e que o havia recebido de Deus era chamado Judéia, do qual a metrópole era Jerusalém. Chama-se metrópole aquela cidade que é dita como que a mãe de muitas cidades. Os nomes destas cidades, separadamente, são citados com muita freqüência nos diversos livros divinos; são enumerados, porém, todos simultaneamente, no livro de Josué, filho de Num.

21.

Tudo isto sendo coisa certa, querendo o Apóstolo de algum modo elevar a nossa inteligência da terra, diz ele em algum lugar:

"Considerai Israel segundo a carne".

I Cor. 10, 18

Com isto ele nos ensina que, na verdade, há um outro Israel que não é segundo a carne, mas segundo o espírito. E, novamente, afirma em outro lugar:

"Porque nem todos
os que descendem de Israel
são israelitas".

Rom. 9, 6

22.

Se, portanto, aprendemos por meio do Apóstolo que há um Israel segundo a carne e outro segundo o espírito, quando o Salvador nos diz que

"Eu não fui enviado senão
às ovelhas desgarradas
da casa de Israel",

Mt. 15, 24

não mais podemos entender esta passagem como aqueles que só conhecem o que é terreno, isto é, como por exemplo os Ebionitas, os quais também são chamados de pobres pelo mesmo nome. Ebion, de fato, significa pobre entre os hebreus. Devemos entender que há um outro gênero de almas que são também chamadas de Israel, segundo o significado de seu próprio nome, pois Israel significa `a mente que vê a Deus', ou `o homem que vê a Deus'.

O Apóstolo revela igualmente coisas deste mesmo gênero sobre Jerusalém quando nos diz que

"aquela Jerusalém,
que é de cima,
é livre e é nossa mãe".

Gal. 4, 26

Sobre Jerusalém, em outra de suas epístolas, nos diz também o seguinte:

"Vós, porém,
aproximaste-vos do monte Sião
e da cidade do Deus vivo,
da Jerusalém celeste
e da multidão de muitos milhares de anjos,
e da Igreja dos primogênitos,
que estão inscritos no céu".

Heb. 12, 22-23

Se, portanto, há algumas almas neste mundo que são chamadas de Israel, e no céu há uma cidade que é chamada de Jerusalém, seguir-se-á que estas cidades que são ditas do povo de Israel tenham como metrópole a Jerusalém celeste e que deste modo também entendamos de toda Judá. É delas que consideramos que os profetas falaram quando, através de místicas narrativas, profetizaram algo da Judéia ou de Jerusalém, ou quando algumas santas histórias relatam ter acontecido este ou aquele gênero de invasão na Judéia ou em Jerusalém.

Tudo, portanto, o que é narrado ou profetizado de Jerusalém e de todos os lugares ou cidades que são ditos cidades da terra santa, cuja metrópole é Jerusalém, se escutarmos as palavras de Paulo como sendo palavras do Cristo que, segundo a sentença do próprio Apóstolo, nele fala, devemos entende-lo como referindo- se àquela cidade que ele chama de Jerusalém celeste.

Deve-se considerar que o Salvador nos queria estimular a uma inteligência mais elevada destas mesmas cidades quando prometeu, aos que tivessem dispensado bem o dinheiro que lhes havia sido confiado, que teriam poder sobre dez cidades (Lc. 19, 17), ou sobre cinco cidades (Lc. 19, 19).

Se, portanto, as profecias que foram feitas sobre Judá e Jerusalém, e também sobre Judá, Israel e Jacó, quando não as entendemos carnalmente, significam mistérios divinos, conseqüentemente também aquelas profecias que foram proferidas sobre o Egito ou sobre os egípcios, sobre Babilônia ou sobre os babilônios ou sobre Sidônia e os sidonitas não devem ser entendidas como profetizadas deste Egito, desta Babilônia, deste Tiro, ou desta Sidônia que estão colocados na terra. As coisas que o profeta Ezequiel profetizou de Faraó rei do Egito (Ez. 29- 32) não podem convir a nenhum homem que pudesse ter reinado no Egito, assim como manifestamente o indica o próprio texto da leitura. Semelhantemente, as coisas que são ditas do príncipe de Tiro não podem ser entendidas terem sido ditas de algum homem ou rei de Tiro. E quanto a Nabucodonosor, as coisas que nas Sagradas Escrituras dele estão escritas em muitos lugares, principalmente em Isaías, como será possível que as entendamos como ditas de um homem? Não pode ser um homem aquele do qual se diz

"ter caído do céu,
luzeiro resplandecente,
que brilhava ao nascer do dia".

Is. 14, 12

E as coisas que são ditas em Ezequiel sobre o Egito, como aquela segundo a qual esta nação seria exterminada durante quarenta anos de tal maneira que nela não se encontraria pé de homem (Ez. 29, 11), e que seria expugnada a tal ponto que por toda a sua terra o sangue humano ter-se-ia elevado até os joelhos, não sei se alguém que tenha inteligência poderia entendê-lo como referindo-se a esta terra do Egito adjacente à Etiópia.

Deve-se, portanto, examinar se é possível entender com mais dignidade que, assim como existe a Jerusalém e a Judéia celeste e, sem dúvida, também um povo que habita nela, que é dito Israel, assim também será possível que vizinhos a estes lugares haja outros que pareçam chamar-se Egito, Babilônia, Tiro ou Sidônia, e que os príncipes destes lugares e as almas que neles habitam possam ser chamados de egípcios, tirenses e sidônios. E que, segundo a vida que ali conduzem, será um cativeiro aquele pelo qual dizemos a Judéia ter descido à Babilônia ou ao Egito como que proveniente de lugares melhores e superiores, ou ter sido dispersa entre outros povos.

23b.

Todas estas coisas, conforme dissemos, estão escondidas e seladas nas histórias da Sagrada Escritura, porque

"o reino do céu é semelhante
a um tesouro escondido no campo,
o qual, quando um homem o acha, esconde-o e,
pela alegria que sente de o achar,
vai, vende tudo o que tem,
e compra aquele campo".

Mt. 13, 44

Deve-se considerar mais diligentemente, nesta passagem, se nela não se indica que somente a própria superfície, por assim dizer, da Escritura, isto é, aquilo que se lê conforme a letra, é um campo repleto e florescente de todo gênero de plantas, mas também aquele entendimento espiritual mais elevado e profundo que são os tesouros de sabedoria e ciência escondidos aos quais o Espírito Santo, por meio de Isaías, chama de tesouros obscuros, invisíveis e escondidos (Is. 45, 3). Para que estes tesouros possam ser encontrados é necessário o auxílio divino, o único que poderá quebrar as portas de bronze (Is. 45, 2) em que foram fechados e escondidos que poderá arrombar as travas de ferro (Is. 45, 2) com as quais se fecha o caminho pelo qual se chega às coisas que no Gênese foram escritas e seladas sobre os diversos gêneros de almas, às descendências e gerações que pela proximidade pertencem a Israel ou que são separadas mais longe de sua estirpe, ao que é aquela descida ao Egito das setenta almas (Gn. 46, 27) que foram no Egito como astros do céu em meio à multidão. Não são todos os que descenderam destes, porém, que foram luz deste mundo:

"Nem todos, de fato,
os que descendem de Israel,
são israelitas".

Rom. 9, 6

Os descendentes destas setenta almas, de fato, se tornaram como a areia inumerável que está à beira do mar.

24.

A descida dos santos padres ao Egito pode ser considerada como tendo se realizado a este mundo, concedida pela providência divina para a iluminação e a instrução do gênero humano. Por meio deles seriam ajudadas as demais almas iluminadas, e foi a eles que foi concedida em primeiro lugar a palavra de Deus. Somente este, ademais, é o povo que é dito ver a Deus, que é o que significa o nome de Israel quando traduzido.

É, portanto, conseqüente que adaptemos e interpretemos segundo este entendimento o castigo do Egito com as dez pragas para que permitisse a saída do povo de Deus, assim como os acontecimentos com o povo no deserto, a construção do tabernáculo pela congregação de todo o povo, a urdidura das vestimentas sacerdotais e o demais que se diz das vestes do ministério. Verdadeiramente, conforme foi escrito, estas coisas contém em si a sombra e a forma das coisas celestes. Paulo, de um modo manifesto, afirma dos que são do povo de Israel que eles

"servem à sombra e à imagem
das coisas celestes".

Heb. 8, 5

Na própria Lei encontram-se as leis e as instituições pelas quais deve-se viver na terra santa. São também feitas ameaças aos que tiverem prevaricado da mesma e colocam-se diversos gêneros de purificação aos que necessitam de purificação ou aos que mais freqüentemente se maculam. Por meio destas purificações podem alcançar aquela única purificação depois da qual não é mais lícito macular-se.

Este povo é recenseado, mas não todos. O preceito divino estabelece que as almas infantis ainda não estão no tempo de serem recenseadas (Num 1, 2-3); não o estão também aquelas almas que são súditas de outras como à sua cabeça, as quais são chamadas de mulheres. Numeram-se somente os homens, as mulheres não sendo contadas no número que é ordenado por Deus que seja recenseado. Porém fica também manifesto que elas não podem ser numeradas extrinsecamente, mas que estão incluídas no número daqueles que são chamados de homens. São principalmente os que são aptos para lutar nas guerras israelíticas os que são incluídos no santo número, aqueles que podem guerrear contra os adversários e inimigos que o Pai submeteu ao seu Filho sentado à sua direita para que destrua todo principado e potestade. Este número é o dos seus soldados que, militando para Deus e não se misturando nos negócios seculares, vencem os adversários do Reino. São aqueles que, revestidos pelo escudo da fé, vibram a lança da sabedoria, aqueles nos quais brilha o elmo da esperança e da salvação e por cuja armadura da caridade Deus defende todo o peito. Parece-me que os que Deus preceitua nos livros divinos que sejam recenseados sejam soldados que se preparam para tais guerras. Destes, porém, são apontados como muito mais resplandecentes e perfeitos aqueles dos quais se diz que até os cabelos de suas cabeças são numerados (Mt. 10, 30). Quanto aos que foram punidos pelos pecados e cujos corpos caíram no deserto, estes parecem ter semelhança com os que, tendo-se adiantado não pouco, no fim não puderam alcançar a perfeição por diversas causas. Diz-se deles que murmuraram, cultuaram os ídolos, fornicaram ou fizeram outras coisas que não é lícito à mente conceber.

Não considero também vazio de mistério que alguns, tendo muito gado e animais, se adiantaram e arrebataram antecipadamente um lugar apto ao pasto e à alimentação de seus animais, os quais lutaram nas guerras de Israel antes que todos. Pedindo eles mesmos este lugar a Moisés, foram separados dos demais além do Jordão e segregados da possessão da terra santa (Num. 32). O Jordão pode ser visto, segundo a forma das coisas celestes, regar e inundar as almas sedentas e os sentidos que lhes são adjacentes.

Não me parece ocioso também que o próprio Moisés tenha ouvido de Deus as coisas que são descritas no Levítico, enquanto que no Deuteronômio o povo torna-se ouvinte de Moisés, dele aprendendo as coisas que não pôde ouvir de Deus. Por este motivo o Deuteronômio é dito segunda lei, o que a alguns parece significar que, cessando a primeira Lei que havia sido dada a Moisés, tivesse se formado uma segunda Lei, entregue de um modo especial por Moisés a Josué seu sucessor, o qual cremos ser a forma de nosso Salvador, por cuja segunda lei, que são os preceitos evangélicos, todas as coisas são conduzidas à perfeição.

25.

Devemos examinar ademais se isto não parece indicar que assim como no Deuteronômio se declara uma legislação mais evidente e mais manifesta do que a que havia sido escrita antes, assim também não se indica que ao primeiro advento do Salvador que se realizou na humildade quando assumiu a forma de servo não se sucederá aquele segundo mais resplandecente e glorioso na glória do Pai, nisto se plenificando a forma do Deuteronômio, quando no reino dos céus todos os santos viverem das leis daquele evangelho eterno. Deste mesmo modo. como Cristo agora, pelo seu primeiro advento, plenifica a lei que contém a sombra dos bens futuros, assim também pelo seu segundo e glorioso advento, plenificará e conduzirá à perfeição a sombra deste seu primeiro advento. Foi assim que, efetivamente, disse dele o profeta:

"O sopro de nossa boca,
ó Cristo Senhor,
foi preso em nossos pecados,
a quem dissemos:
Na tua sombra viveremos
entre as nações",

Lam. 4, 20

quando todos os santos forem transferidos do evangelho temporal ao mais digno evangelho eterno, segundo no-lo é assinalado sobre o Evangelho eterno por João no Apocalipse (Ap. 14, 6).

26.

Seja para nós suficiente em tudo isto adequar o nosso senso à regra da piedade e sentir das palavras do Espírito Santo que não constituem um discurso escrito segundo a fragilidade da linguagem humana. De fato, está escrito que

"toda a glória do rei
provém do interior".

Salmo 44, 14

É deste modo também que o tesouro dos sentidos divinos está escondido, encerrado nos frágeis vasos da vil letra. Se alguém, no entanto, busca mais curiosamente a explicação de cada uma destas coisas, venha e, junto conosco, ouça como Paulo apóstolo, por meio do Espírito Santo, o qual perscruta até as profundezas de Deus, investiga a elevação da sabedoria e da ciência divina e, não chegando nem ao fim e nem, por assim dizer, podendo chegar a um íntimo conhecimento, em desespero e admiração de causa, clama e diz:

"Ó altitude das riquezas da sabedoria
e da ciência de Deus!"

Rom. 11, 33

E que ele proclamou isto desesperando de uma perfeita compreensão, podemos ouvi-lo dizendo:

"Quão incompreensíveis são os seus juízos,
e impenetráveis os seus caminhos!"

Rom. 11, 33

De fato, ele não diz quão dificilmente podem ser compreendidos os juízos de Deus, mas que não o podem completamente; nem disse que dificilmente podem ser perscrutados os seus caminhos, mas que não podem ser perscrutados. Quanto mais alguém crescer na investigação e mais se adiantar no estudo interior, e quanto mais for ajudado pela graça de Deus e iluminado em seu entendimento, mais não poderá chegar ao perfeito fim daquelas coisas que são buscadas, nem nenhuma mente que foi criada terá possibilidade de compreendê-las de modo algum. Antes, para encontrar algumas das coisas que busca, verá outras mais que terá que buscar. E se também a estas alcançar, verá muitíssimas outras que deverão ser buscadas. Foi por este motivo que o sapientíssimo Salomão, compreendendo pela sabedoria a natureza das coisas, disse:

"Eu disse: far-me-ei sábio,
e a sabedoria retirou-se
para longe de mim,
muito mais do que antes estava.
A sua profundidade é grande,
quem a poderá sondar?"

Ec. 7, 24

Também Isaías, sabendo que o início das coisas não poderia ser encontrado pela natureza mortal, nem tampouco por aquelas naturezas que, embora sejam mais divinas do que a humana, foram, todavia, elas próprias feitas e são, portanto, também criaturas, e sabendo, portanto, que por nenhuma destas, nem o início nem o fim pode ser encontrado, diz:

"Dizei as coisas que foram no início,
e saberemos que sois deuses;
ou anunciai as últimas que serão,
e então veremos que sois deuses".

Is. 41, 22-23

Por isto também o doutor hebreu colocava que, como o início ou o fim de todas as coisas não pode ser compreendido por ninguém, senão somente pelo Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito Santo, Isaías teria dito pela figura da visão haver somente dois serafins que com duas asas cobriam a face diante de Deus, com duas os pés, e com duas voavam, clamando mutuamente e dizendo:

"Santo, santo, santo,
é o Senhor Deus dos Exércitos,
toda a terra está cheia de sua glória".

Is. 6, 1-3

Porque, portanto, somente os serafins tinham ambas as suas asas cobrindo-lhes as faces diante de Deus e os seus pés, devemos ousar declarar que nem o exército dos santos anjos, nem os santos tronos, nem as dominações, nem os principados, nem as potestades podem conhecer integralmente o início e o fim de todas as coisas. Deve-se, porém, entender que estes santos que foram enumerados como sendo espíritos e virtudes próximas aos próprios inícios tenham alcançado mais do que os restantes puderam conseguir. De tudo aquilo que, porém, revelando-o o Filho de Deus e o Espírito Santo, tiverem aprendido estas virtudes, muito estes outros puderam alcançar e muito mais os primeiros do que os inferiores. Tudo, porém, mesmo para elas é impossível que o compreendam, porque está escrito:

"Muitas obras de Deus são ocultas".

Ec. 16, 22

De onde que é desejável que cada um, segundo a medida de suas forças, sempre queira arrojar-se para o que está adiante, esquecendo-se do que fica para trás, tanto para as obras melhores como também para o senso e o entendimento mais puro, por Jesus Cristo, nosso Salvador, ao qual é a glória pelos séculos dos séculos.

27.

Todos, portanto, os que se ocupam com a verdade, pouco se preocupem com nomes e palavras, porque cada povo tem diversos costumes de palavras. Preocupem-se em buscar mais o que significa, do que com quais palavras se significa, principalmente em coisas tão grandes e tão difíceis, como quando se busca, por exemplo, se há alguma substância que não possa ser entendida nem pela cor, nem pelo hábito, nem pelo tato, nem pelo tamanho, mas que seja apenas visível pela mente, seja a qual nomeada como se o queira. Os gregos a chamam de "assomaton", isto é, incorpóreo, as divinas Escrituras a chamam de invisível, como quando Paulo diz Cristo ser a imagem invisível do Pai (Col. 1, 15), para pouco depois dizer que por Cristo foram criadas todas as coisas, as visíveis e as invisíveis (Col. 1, 17). Vemos, assim, que que Paulo declara haver também entre as criaturas algumas que são invisíveis segundo a propriedade de suas substâncias. Estas, porém, embora não sejam corporais, usam, todavia, os corpos, ainda que eles mesmos sejam, segundo a substância, melhores do que os corpos. A substância da Trindade, porém, que é princípio e causa de todas as coisas, da qual são todas, por qual são todas e na qual são todas, não se pode crer que seja nem corpo, nem em corpo, mas que seja de todo incorpórea.

Exortados assim brevemente pela própria lógica e coerência do assunto, embora nos tenhamos estendido um pouco, seja suficiente o que dissemos para mostrar que há algumas coisas cuja significação não pode ser explicada por nenhum discurso da língua humana, mas que são declaradas por uma inteligência mais simples do que as propriedades de quaisquer palavras. A esta regra deve ater-se também a inteligência das letras divinas, e considere-se o que se diz não pela vileza da palavra, mas pela divindade do Santo Espírito que inspirou quem as escreveu.

Orígenes