Orígenes
185 - 256 DC

DE PRINCIPIIS

LIVRO IV
- Caps. 1-16, 19-27 -

Iª Parte



1.

Para tratar de tantas e tais coisas não basta confiar a sumidade deste assunto aos sentidos humanos e à inteligência comum, discorrendo, por assim dizer, visivelmente sobre as coisas invisíveis. Devemos tomar também, para a demonstração das coisas de que falamos, os testemunhos das Divinas Escrituras. No entanto, para que estes testemunhos possam oferecer-nos uma fé certa e indubitável, tanto nas coisas que haveremos de dizer, como nas que já dissemos, parece-nos ser necessário mostrar antes que as próprias Escrituras são divinas, isto é, inspiradas pelo Espírito de Deus. Mostraremos, tão brevemente quanto pudermos, o que as próprias Escrituras nos dizem a este respeito e que nos possa mover competentemente. Falaremos, pois, de Moisés, o primeiro legislador do povo hebreu, e das palavras de Jesus Cristo, autor e príncipe da religião e do dogma dos cristãos.

Entre gregos e bárbaros. de fato, existiram muitos legisladores e também inúmeros doutores e filósofos afirmando oferecer a verdade. Não nos lembramos, porém, de nenhum legislador que tenha podido produzir tal afeto e dedicação nas almas dos povos estrangeiros a tal ponto que estes aceitassem livremente as suas leis ou com toda a alma defendessem as suas intenções. Ninguém houve também que tenha podido sugerir ou dar a conhecer aquilo que lhe pareceu ser a verdade, não digo a muitas nações estrangeiras, mas nem mesmo sequer a um só povo, para que todos alcançassem a sua ciência ou a sua fé. E, no entanto, não se pode duvidar que os legisladores gostariam que suas leis fossem obedecidas por todos, se isto fosse possível, e que os mestres apreciariam que aquilo que lhes pareceu ser a verdade fosse também conhecido por todos. Sabendo, porém, que não seria de nenhum modo possível que neles subsistisse tamanha virtude que fosse capaz de convidar as nações estrangeiras à observância de suas leis ou de suas afirmações, nem sequer ousaram começar a fazê-lo, para que não ficassem conhecidos como imprudentes por semelhantes iniciativas ineficazes e inexecutáveis.

São, no entanto, multidões inumeráveis, em toda a face da terra, em toda a Grécia e em todas as demais nações estrangeiras, aqueles que, abandonando as leis de sua pátria e aqueles que consideravam deuses, se entregaram à observância da lei de Moisés e ao discipulado e ao culto de Cristo, e isto não sem um grande ódio levantado contra si por parte daqueles que veneram os simulacros, a ponto de serem freqüentemente atormentados por parte destes e algumas vezes inclusive conduzidos à morte. Mesmo assim, abraçam e observam com todo o afeto a palavra do ensinamento de Cristo.

2.

É verdadeiramente admirável como em tão breve tempo esta religião cresceu pelo sofrimento e pelo martírio de seus seguidores, pela violência que lhes foi feita e pela paciência com que toleraram todo gênero de suplícios. Mais admirável ainda é que seus doutores não são nem eruditos nem numerosos e, no entanto, esta palavra é pregada em toda a terra, de modo que gregos e bárbaros, sábios e ignorantes, recebem a doutrina cristã. Não há dúvida de que isto não se realiza por força ou obra humana. A palavra de Cristo Jesus se fortalece com toda a fé e poder junto a todas as mentes e junto a todas as almas. Ademais, é manifesto que todas estas coisas foram preditas e confirmadas por Ele, quando disse em seus divinos oráculos:

"Por causa de mim sereis conduzidos
à presença de governadores e juízes,
para dar testemunho perante eles
e perante as nações".

Mt. 10, 18

E também:

"Este evangelho será pregado
em todas as nações".

Mt. 24, 14

E novamente:

"Muitos me dirão naquele dia:

`Senhor, Senhor,
porventura não foi em teu nome
que caminhamos e bebemos,
e em teu nome que expulsamos demônios?'

E eu lhes direi:

`Afastai-vos de mim,
vós que operais a iniquidade,
nunca vos conheci'".

Mt. 7, 22-23

Se todas estas coisas tivessem sido ditas por Ele, mas sem que se tivesse realizado o que havia sido predito, pareceriam talvez menos verdadeiras, embora tivessem mesmo assim alguma autoridade. Agora, porém, preditas com tanto poder e autoridade e tendo chegado à sua realização, fica manifestissimamente declarado ser verdade que Ele, ao fazer-se homem, veio trazer aos homens os preceitos da salvação.

3.

E o que deveremos dizer sobre o que, antes dEle, os profetas predisseram sobre Ele? Estava escrito que não cessariam os príncipes de Judá, nem os soberanos de seu meio, até que chegasse aquele a quem teria sido confiado o reino, e até que viesse a expectação dos povos (Gen. 49, 10). Pelo que hoje pode observar-se, tudo isto é mais do que manifesto pela própria história. Desde os tempos de Cristo não há mais reis entre os judeus. Todas aquelas ambições judaicas nas quais tantos se jactavam e se exaltavam, seja do decoro do Templo, seja dos famosos altares, de todos aqueles aparatos sacerdotais e vestimentas pontifícias, tudo isto foi destruído. Consumou-se assim a profecia que dizia:

"Os filhos de Israel ficarão
durante muitos dias
sem reis e sem príncipes,
sem sacrifício e sem altar,
sem sacerdócio e sem respostas".

Os. 3, 4

Utilizamos estes testemunhos para aqueles que, no que diz respeito às coisas que foram ditas no Gênesis por Jacó ao falar de Judá (Gen. 49, 10), parecem afirmar que ainda haveria um príncipe da descendência de Judá, que seria aquele que é o príncipe de seu povo e ao qual chamam de Patriarca, os quais afirmam também que não poderá faltar alguém que permaneça de sua descendência até o advento do Cristo, conforme o descrevem para si mesmos. Mas se é verdadeiro o que diz o Profeta, segundo quem

"por muitos dias os filhos de Israel
permanecerão sem rei e sem príncipe,
nem haverá sacrifício,
nem altar, nem sacerdócio",

e se, de fato, desde que foi destruído o Templo, não se oferecem mais sacrifícios, nem se encontram altares, e se consta também não haver sacerdócio, é mais do que certo que

"faltam os príncipes de Judá",

assim como estava escrito,

"nem há soberanos em seu meio,
até que venha aquele
a quem foi confiado o reino".

Gen. 49, 10

Consta, porém, que já veio Aquele a quem foi confiado, Aquele em que reside a expectação das nações, e que tudo isto parece manifestamente consumado pela multidão daqueles que, de diversas nações, por meio de Cristo, creram em Deus.

4.

Mas no Deuteronômio também nos é assinalado, por meio de uma profecia, que pelos pecados do primeiro povo haveria a futura eleição de um povo insensato, eleição esta que não é outra senão a que foi realizada por Cristo. Assim, de fato, está escrito:

"Eles provocaram-me
com o que não era Deus,
e irritaram-me com os seus simulacros;
e eu os provocarei em meu zelo,
e os irritarei com um povo insensato".

Dt. 32, 21

É bastante evidente que os hebreus, dos quais se diz terem provocado a Deus com aqueles que não são deuses e terem-no irritado com os seus simulacros, irritaram-se também eles em ciúmes por um povo insensato, que Deus escolheu pelo advento de Jesus Cristo, e pelos seus discípulos. De fato, assim diz o Apóstolo:

"Vede a vossa vocação, irmãos,
como entre vós não há
muitos sábios segundo a carne,
nem muitos nobres,
mas aqueles que são estultos para o mundo,
estes Deus escolheu,
e os que não são,
para destruir os que eram primeiro".

I Cor. 1, 27-28

Não se glorie, portanto, o Israel carnal. Assim é, de fato, que este é chamado pelo Apóstolo,

"para que não se glorie a carne
na presença de Deus".

I Cor. 1, 29

5.

O que se deverá dizer, também, do que é profetizado de Cristo nos Salmos, principalmente naquele que levou o título de `Cântico pelo Amado', onde se diz:

"Sua língua é como a pena
de um escriba que escreve velozmente;
ultrapassa em formosura
aos filhos dos homens,
pois a graça derramou-se
sobre os seus lábios"?

Salmo 44, 2-3

O sinal da graça derramada em seus lábios é que, passado tão breve tempo, pois ensinou Ele por apenas um ano e alguns poucos meses, toda a terra encheu-se com a doutrina e a fé da sua piedade. Floresceu, portanto,

"em seus dias a justiça,
e a abundância da paz",

Salmo 71, 7

que durará até o fim, fim este que no salmo é designado como "até que a lua deixe de existir" (Salmo 71, 7).

"E dominará de mar a mar,
e desde o rio
até as extremidades da terra".

Salmo 71, 8

Foi dado também este sinal à casa de Davi:

"Uma virgem conceberá,
e dará à luz a um filho,
cujo nome será Emmanuel,
que quer dizer Deus conosco".

Is. 7, 14

"Ajuntai-vos, povos, e sereis vencidos" (Is. 8, 9). Fomos vencidos e superados, nós que somos dos gentios, e somos como que despojos de sua vitória, nós que dobramos nosso pescoço à sua graça.

Mas também o lugar de seu nascimento foi predito pelo profeta Miquéias, ao dizer:

"E tu, Belém, terra de Judá,
não és a menor entre as cidades de Judá.
De ti, de fato, sairá o condutor
que regerá o meu povo de Israel".

Miq. 5, 2

Completaram-se também as semanas de anos até o Cristo condutor que haviam sido preditas pelo profeta Daniel. Está também presente aquele que em Jó é dito que haveria de vencer a enorme besta, o qual também deu poder aos seus discípulos de

"calcar aos pés serpentes e escorpiões,
e todo o poder do inimigo,
sem que nada lhes fizesse dano".

Lc. 10, 19

Se alguém considerar igualmente os discursos dos apóstolos de Cristo, pelos quais estes pregaram o Evangelho de Cristo por cada um dos lugares aos quais foram por Ele enviados, encontrará que o que eles ousaram começar é algo sobrehumano e o que eles puderam realizar provém de Deus. Se considerarmos como os homens os receberam, ao ouvirem que eles lhes anunciavam uma nova doutrina; ou melhor, como freqüentemente os homens, querendo fazer-lhes o mal, foram impedidos por uma força divina que neles havia, veremos que nada nesta causa foi realizado por forças humanas, mas tudo pelo poder e pela providência divina, o que sem dúvida, por sinais e portentos evidentes, testemunha em favor de sua palavra e de seus ensinamentos.

6.

Demostradas previamente estas coisas, isto é, a deidade de Jesus Cristo e a realização de todas as coisas que dele foram profetizadas, julgo que com isto provamos também que as próprias Escrituras que sobre Ele profetizaram são divinamente inspiradas. Elas predisseram o seu advento, o poder de sua doutrina e a assunção de todos os povos.

Devemos acrescentar também que é principalmente pelo advento de Cristo ao mundo que ilumina-se e prova-se que tanto os vaticínios dos profetas como a Lei de Moisés são divinos e divinamente inspirados. Antes que se tivessem realizado as coisas que haviam sido por eles preditas por eles, embora estes fossem verdadeiros e inspirados por Deus, não podiam, todavia, ser mostrados como verdadeiros, pelo fato de que ainda não podiam ser provados realizados. O advento de Cristo, porém, manifestou serem verdadeiras e divinamente inspiradas as coisas que eles haviam dito, já que antes era incerto se as coisas que haviam sido preditas seriam realizadas com êxito.

Mesmo assim, porém, se alguém considerar os escritos proféticos com toda a aplicação e reverência de que são dignos, no próprio ato de lê-los e de examiná-los diligentemente, reconhecerá certamente, tocado por alguma inspiração divina em sua mente e em seus sentidos, que aquilo que lê não foi dito humanamente, mas que é palavra de Deus. Sentirá por si mesmo que estes livros foram escritos não por uma arte humana, nem por discurso de mortais, mas pela excelência de uma arte divina. O esplendor do advento de Cristo, iluminando pelo fulgor da verdade a lei de Moisés e retirando o véu que estava sobreposto à sua letra, descobriu a todos os que crêem nEle toda a multidão de bens que o invólucro da palavra escondia.

7.

É algo verdadeiramente trabalhoso enumerar cada uma das coisas que outrora foram ditas pelos profetas, e como e quando cada uma se realizou, para que por elas vejamos confirmarem-se aqueles que duvidam. Para quem queira conhecê-las mais diligentemente, será possível reunir abundantemente estas provas dos próprios livros da verdade. Não se admirem, porém, se perceberem que as coisas divinas são transmitidas ao homem com alguma lentidão, quando aos que são menos eruditos nas disciplinas divinas não se lhes descobre imediatamente, logo na primeira leitura, o sentido que está acima do homem. Tudo isto está tanto mais encondido quanto mais incrédulo ou indigno for o homem.

É coisa certa que tudo o que está ou se faz neste mundo é dispensado pela providência divina. Algumas, porém, manifestam de modo bastante evidente serem governadas pela providência, enquanto que outras têm uma explicação tão oculta e tão incompreensível que nelas a razão da divina providência é-nos inteiramente oculta, e de tal modo que às vezes alguns nem crêem que pertençam à providência. A razão pela qual, por uma inefável arte, a obra da divina providência é dispensada, permanece escondida; esta razão, todavia, não está igualmente oculta para todos. Entre os homens ela é considerada por uns menos, por outros mais, e é mais conhecida pelos que habitam no céu do que por todos os homens que habitam na terra. A natureza dos corpos é clara para nós de modo diverso pelo qual no-la é a natureza das árvores, dos animais e da alma. A maneira pela qual os diversos movimentos das mentes racionais são dispensadas pela divina providência está mais escondida para os homens do que para os anjos, embora também para eles julgo que não o esteja pouco. No entanto, assim como a existência da divina providência não é refutada por aqueles que estão certos de sua existência, mas que não podem compreender sua obra e dispensação pelo engenho humano, assim também nem a inspiração divina da Sagrada Escritura, que se estende através de todo o seu corpo, pode ser considerada inexistente porque a enfermidade de nossa inteligência não é capaz de investigar as sentenças ocultas e escondidas em cada singular palavra. O tesouro da divina sabedoria está escondido nos recipientes mais vis e grosseiros das palavras, como o próprio Apóstolo o afirma, dizendo:

"Trazemos este tesouro
em vasos de barro".

II Cor. 4, 7

Não misturando nenhum ornamento da eloqüência humana na verdade dos dogmas, mais resplandece com isto a virtude da potência divina. Se, de fato, nossos livros tivessem sido escritos de modo que levassem os homens a crer seduzindo-os pela astúcia filosófica ou pela arte retórica, sem dúvida a nossa fé seria considerada estar fundamentada na arte das palavras ou na sabedoria humana e não no poder de Deus. Agora, porém, é conhecido por todos que a palavra desta pregação foi recebida por muitos em todo o mundo de tal modo que os que creram entenderam que ela se fundamenta não em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas na demonstração da força e do espírito. Pelo que, conduzidos por uma celeste virtude, ou até mais do que celeste, à fé e à aceitação pela qual adoramos nosso Deus como o único Criador de todas as coisas, procuremos agora esforçar-nos para que, abandonando a palavra dos inícios de Cristo que são os primeiros princípios da ciência, sejamos conduzidos à perfeição, para que aquela sabedoria, que é transmitida aos perfeitos, também no-la seja transmitida. Assim, de fato, foi afirmado por aquele a quem foi confiada a pregação desta sabedoria:

"No entanto, é da sabedoria
que falamos entre os perfeitos,
não a sabedoria deste mundo,
nem dos príncipes deste mundo,
que serão destruídos".

I Cor. 2, 6

Ele nos mostra, com estas palavras, que esta nossa sabedoria nada tem em comum, no que nos diz respeito à beleza do fraseado, com a sabedoria deste mundo. Esta sabedoria será inscrita mais clara e perfeitamente em nossos corações se nos for manifestada segundo a revelação do mistério que ficou oculto desde os tempos eternos, e que no-lo foi agora manifestado pelos escritos proféticos e pelo advento do Senhor e Salvador nosso Jesus Cristo, a quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amén.