IX



Para compreender um pouco melhor o papel da Liturgia em Pio X e no movimento litúrgico que a ele se seguiu dentro da Igreja, deve-se mencionar que todas as obras deste Pontífice obedeceram a um objetivo único e bem definido que ele expressou desde os inícios de seu pontificado. Em 1903 Pio X o declarou em sua primeira encíclica, e fêz dele o seu programa e o seu lema:

"Nosso objetivo único,
no exercício do Sumo Pontificado,
é restaurar tudo em Cristo
a fim de que Cristo seja tudo em tudo.
Se nos pedirem um lema
que traduza o próprio fundo de nossa alma,
jamais daremos outro senão este:

`Restaurar todas as coisas em Cristo'".

Encíclica
`E Supremi Apostolatus'

Para alcançar este objetivo, Pio X chamou primeiro a atenção da Igreja para a realidade do ensino religioso. Explicou o que entendia por esta expressão e mostrou a impossibilidade da Igreja sanear a triste situação da cristandade de seu tempo sem ser através deste meio:

"Ninguém a quem anima
o zelo da glória divina
deixará de investigar
as causas e as razões dos males
de que padece o Cristianismo em nossos dias",

escreveu Pio X.

"Conforme cada qual encontrar
causas e razões diversas,
proporá meios diversos para restaurar
o Reino de Deus sobre a terra.
Nós estamos, porém,
com aqueles que pensam
que a debilidade das almas
e a espessura das trevas que as envolvem
derivam da ignorância das coisas divinas".

"A primeira e a maior das obrigações
dos pastores de almas
é a de ensinar ao povo cristão".

"Há sacerdotes que supõem
que com seus sermões
satisfazem a obrigação de ensinar;
certamente não negamos a aprovação
devida aos oradores sagrados,
mas é freqüente que discursos floreados,
recebidos com aplausos por assembléias numerosas,
só sirvam para encantar os ouvidos,
sem comover as almas.

Em troca, ao ensino,
ainda que simples e humilde,
se aplicam as palavras do Senhor
por meio do profeta Isaías:

`Assim como a chuva e a neve do céu
descem e não voltam para lá
sem terem antes irrigado a terra,
e a terem fecundado e feito germinar,
e dar semente ao semeador
e pão para comer,
assim será a palavra
que sair de minha boca, diz o Senhor;
não voltará a mim vazia,
mas antes,
operará tudo o que me agrada,
e obterá o escôpo para o qual a mandei'.

Is. 55, 10-11

De onde inferimos que
se a fé definha em nossos dias
a ponto de que em muitos parece morta,
cumpriu-se descuidadamente
ou se omitiu de todo
a obrigação de ensinar
as verdades da doutrina cristã".

"É para o nosso coração uma grande tristeza
e uma contínua dor verificar
que se pode aplicar aos nossos dias
esta queixa de Jeremias:

`As crianças pediram pão,
e não havia ninguém
para lhes repartir este pão'.

Jer. 4, 4

Efetivamente, não falta no clero quem,
cedendo a gostos pessoais,
dispenda a sua atividade em coisas de utilidade
mais aparente do que real;
ao passo que menos numerosos são talvez os que,
a exemplo de Cristo,
tomam para si as palavras do profeta:

`O Espírito do Senhor deu-me a unção,
e enviou-me a evangelizar os pobres,
a curar os que tem o coração partido,
a anunciar aos cativos a libertação,
e a luz aos cegos'.

Luc. 4, 18-19

E, no entanto, a ninguém escapa
que o principal meio de restituir as almas a Deus
é o ensino religioso.
Foi por isto que Cristo deu aos Apóstolos este preceito:

`Ide e ensinai todas as nações'".

"Muitas obras úteis e dignas de louvor
tem sido estabelecidas nas diversas dioceses,
mas antes de tudo o mais,
com toda a energia, todo o zelo
e toda a assiduidade possível
deve-se cuidar esmeradamente
de que o conhecimento da doutrina cristã
chegue e penetre em todas as almas".

E Supr. Apost., 1903
Acerbo Nimis, 1905

É dentro deste contexto que devem ser vistas as intervenções de Pio X em matéria eucarística; elas se seguiram às do ensino religioso e as completam, formando como que um só programa. Basta reexaminar atentamente os decretos eucarísticos de Pio X para ver como o ensino religioso de que ele fala é inseparável da piedade litúrgica; neles a piedade litúrgica é que fornece o próprio método do ensino religioso.

Pio X chamou primeiro a atenção da Igreja para o caráter central da Eucaristia na vida cristã, para o seu caráter de fonte primeira e indispensável do espírito cristão, afirmação sobre cujo sentido já discorremos longamente. Vimos como a Eucaristia, enquanto sacramento, foi instituída como refeição espiritual para alimento da caridade, efeito que tem sido constatado ao longo da história da Igreja por todos aqueles que se acercaram dignamente deste sacramento:

"Maravilhoso é este Sacramento
em que uma inefável eficácia inflama
os afetos com o fogo da caridade",

diz Tomás de Aquino no Sermão sobre o Corpo de Cristo.

"Confere o aumento da virtude,
faz a graça superabundar,
purga os vícios,
refresca a alma,
inspira a esperança
e aumenta a caridade.
A fé amadurece,
e a devoção e a caridade fraterna
são aqui saboreadas.
É a nascente da vida
e a fonte da graça.
Perdoa o pecado
e enfraquece a concupiscência.
Os fiéis encontram aqui
a sua refeição,
e as almas um alimento
que ilumina a inteligência,
inflama os afetos,
purga os defeitos,
eleva os desejos.
Ó cálice de doçura
para as almas devotas,
este sublime Sacramento,
ó Senhor Jesus,
declara para os que crêem
tuas maravilhosas obras".

Nada mais coerente, pois, do que desenvolver em torno da piedade eucarística o ensino religioso, porque, conforme diz S. Paulo, ensinar ou

"falar,
ainda que fosse na língua dos anjos,
sem possuir a caridade,
nada é".

1 Cor. 13

Vimos então como em consonância com isto os decretos eucarísticos de Pio X exortam os cristãos à comunhão freqüente e cotidiana, e o mesmo às criancinhas; como Pio X desejava que as criancinhas fossem iniciadas o quanto antes na recepção o mais freqüente possível da Eucaristia, assim que tivessem as condições mínimas de entendimento para fazê-lo; é, em seguida, em torno da vida da graça proporcionada por este banquete cotidiano da caridade que ele deseja que se vá instruindo a criança mais profundamente na doutrina cristã, já saboreando

"quão suave é o Senhor".

1 Pe. 2, 3

É evidente que Pio X quer mostrar como a Eucaristia, contendo a centralidade do Cristianismo, é capaz de fazer gravitar poderosamente em torno de si o ensino da mensagem cristã, segundo também as palavras de São Paulo:

"Minha pregação não consistiu
em palavras persuasivas de humana sabedoria,
mas na manifestação do espírito e da virtude de Deus,
para que a vossa fé não se baseie
sobre a sabedoria dos homens,
mas sobre o poder de Deus".

I Cor. 2, 4-5

A citação não é abusiva. Não há, na verdade, obra maior para manifestar o poder de Deus do que a santificação de uma alma pela caridade:

"Maior obra",

diz Agostinho,

"é a santificação de uma alma
do que criar o céu e a terra;
o céu e a terra passarão,
a caridade, porém,
permanecerá eternamente".

In Jo. tr.72
ML 35, 1823

Pio X mostrou assim para a Igreja não apenas a centralidade da Liturgia na vida cristã, mas também a indissolubilidade que deve existir entre o ensino e a liturgia para que aquele produza os seus mais belos frutos; fêz, entretanto, ainda algo mais ao mostrar como ambas estas coisas devem se iniciar o mais cedo possível nas crianças. Ao fazer isto, retomava estas impressionantes palavras de São João Crisóstomo que, pronunciadas no século quinto, não tiveram talvez em sua época o eco que mereciam:

"Hoje em dia estamos procedendo tal como o médico
que não dissesse uma só palavra ao enfermo
quando este começa a sentir o mal que irá invadí-lo
e nem lhe receitasse remédio de tipo algum;
em compensação,
quando o paciente estivesse já perdido
e sem esperança,
começasse a ditar leis de todos os modos possíveis.
É assim que os legisladores nos educam
quando nos encontramos já extraviados.
A pedagogia mais excelente não consiste
em permitir que primeiro nos domine a maldade
para então buscar a maneira de afastá-la de nós,
mas sim em por todo o nosso esforço
para nos tornarmos imunes a ela.

Se todos adotássemos este modo de pensar
e tratássemos antes de todas as coisas
de levar as crianças à virtude,
bem persuadidos de que isto é o importante
e tudo o mais é acessório,
seriam tantos os bens que daí resultariam que,
se os tentasse enumerar,
daria a impressão de estar louco.

Mas se alguém quiser conhecer pessoalmente estes bens,
poderá vê-los muito bem e realmente
não entre os homens que vivem nesta cidade,
mas entre aqueles que estão vivendo no deserto
por amor a Cristo.
Se fores visitar aqueles que presentemente
estão vivendo no deserto
e tiveres lido o que nos contam as Sagradas Escrituras
sobre alguns de seus mais ilustres personagens,
constatarás que nos monges de hoje
e antes deles nos apóstolos,
e antes dos apóstolos,
nos justos do Antigo Testamento,
resplandeceram estes bens
como em um exemplo acabado.
Dar-me-ás então muitas graças,
ou melhor dizendo, as darás a Deus
antes do que a nós,
ao contemplar como floresce de fato na terra
a vida do céu
e como por meio dela se torna verossímil
até aos olhos do infiel a doutrina dos bens eternos
e da ressurreição da carne.
A prova de que isto não é falar por falar está em que,
quando referimos aos infiéis a vida destes homens
que estão habitando no deserto,
nada nos tem a objetar;
apenas nos respondem que é muito pequeno
o número dos que alcançam esta perfeição.

Se, porém,
nas cidades semeássemos também esta semente,
se a disciplina do bem viver se convertesse em lei e costume
e fossemos ensinar às crianças a serem amigas de Deus
antes que se lhes ensinasse qualquer outra coisa,
e as instruíssemos nos ensinamentos do espírito
no lugar dos demais e antes do que todos os demais,
desde agora começaríamos a gozar todos nós
aquilo que Isaías diz da vida do céu, que

`dela fugiu a dor,
a tristeza e o gemido'

Is. 51, 11

e se assim fizéssemos,
o gênero humano tocaria
os próprios limites da natureza dos anjos".

S. João Crisóstomo
Adversus Impugnatores
Vitae Monasticae L. III

Não foi S. João Crisóstomo o primeiro a apontar a posição privilegiada das crianças para a frutificação do trabalho de evangelização; Cristo Jesus já o havia dito:

"Deixai vir a mim as criancinhas,
pois delas é o Reino dos Céus",

Mat. 19, 14

o que não é outra coisa senão dizer que nelas, por excelência, é onde o Reino dos Céus pode dar os seus frutos mais abundantes; o Reino dos Céus pertence àqueles que o fazem frutificar (Mat. 21,43). Cinco séculos depois, João Crisóstomo percebeu esta verdade como poucos; muito mais tarde, ao chamar a atenção da Igreja para a Eucaristia como foco da vida cristã, Pio X fêz emergir novamente estas verdades. O Concílio Vaticano II e a legislação pós conciliar, embora citando expressamente, através do documento da Sagrada Congregação para os Sacramentos e o Culto Divino de 20 de maio de 1977, o desejo de "restituir a Igreja ao espírito do decreto Quam Singulari", insistiu mais na Eucaristia como foco da vida cristã do que na questão das crianças, embora seja nosso parecer que a história da Igreja ainda trará novamente à tona este tema. Com o que, talvez mais admiravelmente ainda, vemos concretizar-se a profecia de Isaías sobre o modo com que se realizaria a obra de Cristo:

"Eis o meu servo, que eu amparo,
o meu eleito, a delícia do meu coração.
Coloquei sobre ele o meu espírito,
e ele levará o direito às nações.

Não gritará, nem levantará a voz,
nem se fará ouvir pelas praças;
não quebrará a cana rachada,
nem apagará a mecha que ainda fumega.

Mas com firmeza promoverá o direito,
sem ceder, nem deixar-se abater,
até que tenha implantado na terra o direito,
e a sua doutrina, que praias distantes esperam".

Is. 42, 1-4