Vimos nos capítulos anteriores a natureza da ação sacrificial, e como ela se desenvolveu no povo escolhido do Antigo Testamento. Vimos como Cristo ofereceu a Deus sua própria vida em sacrifício, e como, para que se cumprissem as Escrituras, instituíu um novo sacrifício que representasse perpetuamente entre os homens aquele único sacrifício com que Ele, oferecendo- se uma só vez a Deus, obteve o perdão dos pecados de todos os homens que crendo nEle, o tomam como Redentor.A Sagrada Escritura, na Epístola aos Hebreus, diz que sempre houve sacrifícios entre o povo eleito, mas que estes não eram capazes de perdoar os pecados. Cristo, entretanto, com
obteve a remissão dos pecados para todos os homens. Ela diz também que ao sacrifício que Cristo fêz de sua vida se aplica esta profecia de Jeremias:
Como pôde a morte de um homem, fato tão comum e banal na história dos povos, morto às pressas e sem pompa do lado de fora dos muros de uma cidade situada nos confins de um Império que já não mais existe, ser capaz de obter o perdão dos pecados para todos os homens, mesmo para os que ainda hoje vivem? Que há na morte de Cristo que não há na minha, ou na de qualquer outro homem, nem nos sacrifícios da Antiga Aliança, para conseguir um efeito desta envergadura? Para isto conseguir, havia nela, primeiro, ela própria, que por si só já era mais valiosa do que toda a Criação e, em segundo, o amor com que foi entregue. Não é difícil perceber que a morte de alguém que fosse ao mesmo tempo Deus e homem é algo maior do que tudo o que há ou pode haver no mundo. No início da Idade Média Santo Anselmo escreveu coisas belíssimas a este respeito. Considera, diz ele, que estivesses diante de alguém que fosse ao mesmo tempo Deus e homem, e que te dissessem:
Deverias, pergunta Anselmo, matar este homem para conservares todas as demais criaturas? Certamente que não o deverias fazer, e isto mesmo que te mostrassem um número infinito de criaturas. Considera, porém, que depois disso te dissessem pior:
Que deverias responder? Que mais preferirias que caíssem sobre a tua alma todos os pecados não só deste mundo, como de todos os que existiram e de todos os que existirão, do que matar a este homem que também é Deus. Mas por que é esta a resposta que deverias dar? Não é porque a vida deste homem, ou mesmo uma sua pequena lesão, vale mais do que todos os pecados do mundo? Devemos concluir pois que esta vida é mais amável do que são odiáveis todos os pecados de todo o mundo. Devemos concluir que um bem tão amável pode ser suficiente para pagar o que é devido pelos pecados do mundo inteiro, e o pode mais ao infinito. Esta vida, um bem tão grande assim, pode vencer todos os pecados, se por eles for entregue, e o pode muito mais ainda, porque em qualquer satisfação sempre Deus considera, ainda mais do que a quantidade da oblação, o afeto do oferente. Ainda mais devemos acrescentar que se o Filho de Deus der a sua vida a Deus, ou se oferecer à morte para a honra de Deus, estará fazendo algo que Deus não o exigiria dele como uma obrigação, porque a morte entrou no mundo pelo pecado, e o Deus homem, não tendo pecado, não seria obrigado a morrer. E temos ainda que Deus é soberanamente justo e infinitamente bom. Que faria Ele se visse seu Filho oferecer-lhe espontaneamente algo tão grande e tão precioso, algo maior do que tudo o que não é Deus, oferecido com um amor com que jamais tivesse sido amado? Poderia Deus não querer retribuir-lhe? Mas agora, ó perplexidade! O que Deus poderá dar a seu Filho em retribuição que ele já não tivesse? Antes que o Filho oferecesse sua vida ao Pai, tudo o que era do Pai também era seu. E o que se lhe poderá perdoar, se nada devia? Nunca deveu nada que pudesse ter que lhe ser perdoado! Vê-se, assim, por um lado, a necessidade de ser recompensado, e, por outro, a impossibilidade de se o fazer. Imagina agora que o Filho quisesse dar a outrem o que a si é devido. Poderia o Pai proibir-lho? Mas a quem mais convenientemente atribuiria o fruto e a retribuição de sua morte senão àquele por quem se fêz homem para os salvar, e aos quais morrendo deu o exemplo de morrer pela justiça? Inutilmente seriam seus imitadores, se não pudessem ser partícipes de seus méritos. Ou a quem mais justamente faria herdeiros de sua dívida, da qual ele não necessita, e da exuberância de sua plenitude, do que aos seus pais e irmãos? Nada mais racional, nada mais doce, nada mais desejável o mundo jamais pôde ouvir. É evidente que Deus jamais rejeitará a nenhum homem que dEle se aproxime sob a tutela de seu nome. Verdadeiramente quem sobre este fundamento edifica está alicerçado sobre uma rocha firme. Quem poderá conceber uma misericórdia maior do que o pecador, condenado ao eterno tormento, sem ter como redimir-se, ao qual Deus Pai se dirige e lhe diz:
E o próprio Filho:
Pois é de fato isto o que dizem, quando nos chamam à fé cristã e a ela nos trazem. Até aqui as palavras de Santo Anselmo, reproduzidas com pequenos retoques. Cumpre, porém, continuar o que ele vinha dizendo. Poderia e deveria algo tão grande e tão sublime ficar esquecido na noite da história, presenciado apenas por algumas poucas testemunhas? Não deveria a sua notícia chegar ao conhecimento de todos os homens, e de um modo que pudesse movê- los não só a tomarem Cristo consigo para sua redenção como também a amarem cada vez mais a Deus que tanta bondade demonstrou por nós? Mais ainda, se este é o fundamento de nossa esperança em que devemos crescer e perseverar, não deveria não só ser anunciado como também tornado vivo e presente na mente e no coração de cada um como uma lembrança entre todas particularmente querida? De que modo quis Cristo pois que este momento não se afastasse da lembrança dos homens? Disse-o um dia antes de sua morte, durante a última ceia:
Naquela noite os Evangelhos que relatariam sua vida e sua morte ainda não existiam; ele poderia ter dito, em vez do que disse, apenas isto:
como de fato, depois veio a se fazer. Naquela noite, porém, Cristo não o havia pedido. Em vez disso, ao querer que a Redenção ficasse para sempre na lembrança dos homens, em vez de uma leitura, sua preferência recaíu sobre uma cerimônia a ser celebrada com pão e vinho, e não sem motivo. Quis, com isso, que sua lembrança não ficasse apenas na memória dos homens, mas lhes fosse motivo e ocasião para acendê-los ao amor de Deus. Na última ceia ele havia dito:
Justamente por este motivo, ao escolher o pão e vinho para ser lembrado, sendo ele sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, quis que sua lembrança fosse também um sacrifício, não para nos merecer novamente a redenção que já tinha merecido de uma vez para sempre, mas para que dela participássemos em um ato que é por sua natureza uma das expressões visíveis mais puras do amor humano para com Deus. Ao dizer do pão:
e do vinho:
palavras que desde o início do Cristianismo nunca foram tomadas apenas simbolicamente, que quis Ele senão que este sacrifício fosse um sacrifício vivo, uma oblação pura, em que fosse oferecidos, segundo o seu próprio dizer,
isto é, sua própria paixão, num sacrifício em que ele próprio estivesse pessoalmente presente? Não se limitou, porém, a querer estar pessoalmente presente, pois acrescentou:
e
Que quis com isto senão que a Eucaristia fosse também uma refeição e Ele próprio nosso alimento? O alimento, porém, é para a vida, e a vida da alma é a caridade, conforme diz o Apóstolo:
Através da Eucaristia é fortalecida a vida espiritual do homem ao modo de uma comida espiritual e um remédio espiritual; a alma faz uma refeição espiritual por deleitar-se e inebriar-se pela doçura da bondade divina, segundo diz o Cântico dos Cânticos:
E porque uma refeição espiritual e a caridade não podem existir sem a graça, é manifesto que com esta refeição se confere a graça (S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, III, Q. 79). De outro modo, para que Cristo estaria nela presente, se é para isto que Ele veio ao mundo, segundo São João:
E também:
E também ainda:
Fica assim novamente claro que não há diferença entre dizer que o mandamento do amor é o centro do Cristianismo e dizer que a Eucaristia é o centro do Cristianismo. Pelas razões apontadas, a Eucaristia é, de um modo multiforme, a festa da caridade, o momento em que ela nos é comunicada do modo mais belo, aquilo que está contido por excelência neste sacrifício e nesta refeição. |