OS PRESSUPOSTOS DO
APRENDIZADO

- Segunda Parte -




23.

O princípio e o fim do aprendizado.

Será importante chamar a atenção de um modo especial para o fato de que, analisado sob a perspectiva de uma compilação de pontos de referência organizados pelo próprio Hugo, o Opúsculo sobre o Modo de Aprender é particularmente claro ao apontar quais sejam tanto o princípio como o fim do caminho do aprendizado.

A finalidade do aprendizado, aquilo em função do qual tudo se coordena e para o qual tudo se dirige, é a contemplação, apresentada como uma operação da inteligência, posterior a outras mais elementares, que se estende simultaneamente a uma multidão ou mesmo à totalidade de todas as coisas.

Devemos notar aqui a diferença desta explicação do que seja a contemplação em relação a outras que anteriormente já tivemos a oportunidade de comentar. Já havíamos exposto a contemplação como sendo aquilo a que se referia a expressão de Cristo ao ensinar que Deus deve ser "adorado em espírito e verdade"; já apresentamos a contemplação também como sendo um exercício intenso e simultâneo das virtudes da fé, esperança e caridade. Agora, porém, Hugo de São Vitor diz que a contemplação é uma operação da inteligência que,

"já possuindo todas as coisas,
as abarca em uma visão
plenamente manifesta".

A aparente diferença destas definições se deve ao fato de que elas são aspectos diversos da imensa riqueza de uma mesma realidade.

O princípio do aprendizado, por outro lado, aquilo sem o qual nada pode ser empreendido com esperança fundada de se poder chegar ao seu termo que é a contemplação, diz Hugo de São Vitor, é a humildade. A primeira afirmação do Opúsculo sobre o Modo de Aprender, de fato é que

"a humildade é o princípio
do aprendizado".

Esta afirmação tem uma relação evidente com outra do mesmo autor, contida em outro opúsculo intitulado "Os Frutos da Carne e do Espírito".

O opúsculo sobre "Os Frutos da Carne e do Espírito" vem acompanhado de dois desenhos que ilustram e resumem perfeitamente bem todo o seu conteúdo. Estes dois desenhos representam duas árvores, às quais Hugo denomina de a árvore dos vícios e a árvore das virtudes. Na primeira árvore, a dos vícios, vemos uma raíz na qual se encontra escrito:

"Orgulho,
raíz dos vícios".

Subindo pelo tronco, encontram-se ramos maiores e menores, com os seus respectivos frutos, que representam os diversos vícios que surgem todos da raíz do orgulho, e, por último, na copa da árvore toda, o fruto final da luxúria.

Na segunda árvore, a das virtudes, vemos também uma raíz na qual encontra-se escrito:

"Humildade,
raíz das virtudes".

Subindo pelo tronco, encontram-se também ramos maiores e menores, com seus respectivos frutos, que representam as diversas virtudes que surgem todas da raíz da humildade, e, por último, na copa da árvore toda, o fruto final da caridade.

O objetivo do Opúsculo sobre os Frutos da Carne e do Espírito é, de fato, mostrar claramente ao leitor o princípio de que a "humildade é a raíz de todas as virtudes", um objetivo que, no prólogo deste texto, Hugo de São Vitor diz que é também o das Sagradas Escrituras:

"Todos os discursos da Divina Página",

diz Hugo,

"pretendem persuadir o homem
do bem da humildade e afastá-lo
o mais atentamente possível
do mal do orgulho.

O principal motivo para isto é que
a humildade é o princípio
da salvação e da vida,
e o orgulho é o princípio da ruína.

Queremos, pois, mostrar ao homem
que se dedica ao cultivo das virtudes
o fruto e a eficácia
(não só) da humildade
(como também) do orgulho,
para que ele possa tê-los diante dos olhos
sob uma forma visível.
O imitador de ambas estas coisas
poderá assim conhecer,
pela qualidade dos seus frutos,
que recompensa alcançará
pela prática delas.

Consideradas as raízes,
os ramos e os frutos,
caberá a ti escolher
aquilo que quiseres".

Deve-se notar, entretanto, que no Opúsculo sobre o Modo de Aprender Hugo não diz que a humildade é o princípio de todas as virtudes, mas o princípio de todo o aprendizado. De ambas estas afirmações pode-se concluir a estreita relação que existe entre o aprendizado, no sentido em que o entende Hugo de São Vitor, e a vida das virtudes, pois de ambas estas coisas ele, em momentos diferentes, afirma que surgem e se desenvolvem a partir de uma mesma raíz comum. Uma multidão de passagens de toda a obra de Hugo de São Vitor nos mostram que ele efetivamente sempre ensinou existir uma estreita relação entre ambas estas realidades. Comentando, por exemplo, a luta de Jacó com um anjo, descrita em Gênesis 32, episódio em que o anjo trocou-lhe o nome para Israel, Hugo de São Vitor escreve:

"São Israel todos aqueles que vêem a Deus,
com a condição de que o vejam
com ambos os olhos,
isto é, com os olhos
do conhecimento e do amor.
Se queres, portanto,
ser guardado por Deus,
contempla-o com ambos estes olhos,
os olhos do conhecimento e do amor,
da fé e da obra,
da razão e da boa vontade,
da ciência e da sabedoria,
do julgamento e da justiça,
da inteligência e do afeto.
Aquelas primeiras coisas que mencionamos
dizem respeito ao que em nós é a verdade,
estas segundas ao que em nós é a bondade;
com aquelas somos luz,
com estas somos calor.
São também a estes dois olhos
que os salmos se referem
quando nos dizem:

`O Senhor se inclinou do céu
sobre os filhos dos homens,
para ver se havia alguém
que tivesse entendimento
e que buscasse a Deus' (Salmo 13,2)."

Sermo 48, PL 177

Deste modo, numa obra em que, ao que tudo indica, foi escrita para compilar pontos de referência fundamentais que não deveriam ser perdidos de vista pelos estudantes, a precisa determinação do primeiro princípio e da finalidade última de todo o trabalho pedagógico não poderia estar ausente. A humildade é claramente apontada por Hugo de São Vitor como sendo simultaneamente o princípio tanto do aprendizado como de todas as virtudes, as duas vertentes da vida espiritual pela qual o homem, pela verdade e pela bondade, pelo conhecimento e pelo amor, se dirige para o seu fim último que é a contemplação.

24.

Relação entre fé e humildade.

A noção segundo a qual a humildade é o primeiro princípio não só do aprendizado, mas também de toda a vida espiritual da qual o aprendizado é um aspecto, não é própria de Hugo de São Vitor, mas comum a toda a tradição cristã e particularmente muito clara em Santo Agostinho, de onde provavelmente Hugo de São Vitor a recebeu em toda a sua luz.

No entanto, há muitas afirmações igualmente claras tanto nas Escrituras como na tradição cristã de que é a fé, e com isto aparentemente não a humildade, o primeiro princípio da vida espiritual. Assim é que na Epístola aos Hebreus encontra-se escrito que

"Sem fé é impossível agradar a Deus,
porque é necessário
que o que se aproxima de Deus
creia que Ele existe
e que é remunerador
daqueles que o buscam",

Heb. 11, 6

colocando-se com isto, como é de fato, que a fé é o primeiro dos requisitos da vida espiritual. Nos Evangelhos Cristo repete constantemente àqueles aos quais concede um milagre que havia sido "a sua fé que os salvou", e ao longo das suas epístolas São Paulo repete incessantemente que é pela fé que o homem se justifica; ora, a justificação é o próprio início da vida espiritual. Ademais, sem a graça não se pode falar da vida espiritual, e é um dado que já foi várias vezes comentado entre nós que a fé é o primeiro dos efeitos que se manifestam na alma humana pelo trabalho da graça, num sentido análogo àquele em que diz o Gênesis, ao narrar a criação do mundo, que logo após Deus ter criado o céu e a terra, seu espírito pairou sobre a mesma; disse então Deus:

"Exista a luz",

e a "luz existiu" (Gen. 1,3).

E se tudo isto é realmente assim, deve-se então dizer que é a fé, e não a humildade, que é o primeiro princípio da vida espiritual. Como explicar, pois, diante disto, que Hugo de São Vitor, fazendo eco de Santo Agostinho e do conjunto da tradição cristã, diga que este princípio é a humildade?

Deve-se responder a isto dizendo que, ontologicamente falando, é efetivamente a fé, e não a humildade, o primeiro princípio da vida espiritual, porque a vida espiritual não se inicia sem o trabalho da graça e a primeira e mais elementar de todas as manifestações da atividade da graça no homem é aquilo a que chamamos de fé, e não a humildade. A humildade não necessariamente requer a atividade da graça para poder existir no homem, embora na prática seja muito auxiliada por ela e dificilmente encontra-se num grau elevado sem a sua presença. Mas em princípio o homem pode possuí-la apenas por sua própria natureza, apenas por ser homem, ao contrário da fé, a qual não pode se dar sem o auxílio sobrenatural da graça. A vida sobrenatural no homem principia, portanto, necessariamente pela fé e não pela humildade.

No entanto, a Sagrada Escritura ensina também constantemente que Deus se aproxima dos humildes e se afasta dos orgulhosos. Não se aproxima, neste sentido, fisicamente, pois Deus já está em toda a parte, por ter a tudo criado do nada e a tudo continuamente conservar em sua existência. Deus aproxima-se, porém, pela graça, com o que concede aos homens participarem de sua própria vida divina, graça cuja primeira manifestação é a luz da vida da fé. A humildade é assim, neste sentido, não o próprio início da vida espiritual, mas uma predisposição para recebê-la.

É neste sentido que no início do Opúsculo sobre os Frutos da Carne e do Espírito Hugo de São Vitor sequer chama a humildade de virtude, embora de fato seja uma virtude, mas apenas de o fundamento delas, enquanto que é à fé que ele chama de a primeira de todas as virtudes, embora efetivamente a fé seja a primeira das virtudes apenas se estas forem tomadas no plano propriamente sobrenatural:

"A humildade é o fundamento
de todas as virtudes",

diz Hugo de São Vitor,

"porque,
conforme diz o Evangelho
de São Lucas,

`Todo o que se humilha
será exaltado', e

Lucas 14

`aos pobres de espírito
se abrirá o Reino dos Céus'".

Mateus 5

"A fé", continua Hugo de S. Vitor,

"a primeira das virtudes,
se aproxima da humildade,
porque, conforme diz
a Epístola aos Hebreus,

`Sem fé é impossível
agradar a Deus',

e também

`o justo vive da fé'.

Hebreus 11".

25.

Importância prática dos princípios expostos.

Convém que agora se chame a atenção para a importância prática de que se revestem os princípios até aqui enunciados. Hugo de São Vitor quer conduzir o estudante ao aprendizado. Não se trata de qualquer forma de aprendizado, mas do aprendizado daquelas pessoas que buscam a Deus. Não se pode, porém, buscar a Deus senão pela graça, da qual a fé é a sua primeira manifestação. A fé e a graça, porém, se aproximam dos humildes, de onde que, para aqueles que possuem esta virtude, abre-se com uma certa conaturalidade o caminho daquele aprendizado que, segundo a expressão de Santo Tomás de Aquino, conduz, em sua plenitude,

"à profundidade dos mistérios da fé
e a perfeição da vida cristã".

Summa Theologiae
IIIª Pars Q.71 a.4 ad3

É difícil para as pessoas hoje conceberem uma escola organizada de tal maneira que tivesse que depender, pela própria essência do modo como tivesse sido organizada, da virtude da humildade como o primeiro e o mais fundamental de seus requisitos. A humildade não é o exame mais importante em nenhum concurso vestibular; nem é um exame importante; nem sequer é algo a ser examinado, nem haveria motivos para ser examinada, nem se concebe a própria possibilidade de um tal pensamento. Não se fala disto nas escolas, e, se se falasse, não poderia passar de retórica destituída de importância prática mais significativa.

Nós, no entanto, que estamos participando destas aulas, não estamos aqui em busca de uma alternativa de lazer, nem para adquirir cultura geral sobre religião, ou para estudar apenas por estudar. Estamos aqui, é de se presumir, para iniciarmos seriamente nossa busca de Deus. Ainda que esta busca se revista sob a forma de um aprendizado, ela não se realiza sem a graça e a graça não se aproxima senão dos humildes. Será necessário, pois, entender o que é a humildade, verificar se a possuímos e fazer o que for preciso para possuí-la, ou muito brevemente alcançaremos um patamar em que pararemos de entender o que a mensagem do Evangelho nos quer ensinar.

26.

Natureza da humildade.

Há muitas opiniões distorcidas na comum opinião dos homens sobre o que seja a humildade, as quais dificultam uma apreciação de sua verdadeira natureza. Para alguns a humildade seria uma forma mórbida de auto desprezo, para outros uma ingenuidade incapaz de reconhecer a maldade alheia, para outros ainda a submissão irracional a qualquer forma de violência, física ou psicológica, externamente imposta. Ao contrário destas e de muitas outras colocações, deve-se dizer que a humildade significa a consciência que o homem possui de ser apenas um ser humano ou uma criatura humana e de, conseqüentemente, não ser um deus ou um ser dotado de atributos divinos; significa também a consciência das implicações contidas nestas afirmações e a capacidade de agir coerentemente com elas. As pessoas que, em graus maiores e menores, não possuem a virtude da humildade são aquelas que, em seu agir, quer elas o entendam ou não, quer o admitam ou não, procedem de tal forma que suas atitudes só poderiam ser explicadas coerentemente na hipótese de que elas tivessem admitido como pressuposto de seu agir que elas não são homens, mas deuses, ou criaturas dotadas de atributos divinos ou, pelo menos, seres dotados de uma natureza mais do que humana. A conduta do homem orgulhoso é, assim, sob qualquer ponto de vista, uma conduta absurda. Para ser coerente com o seu procedimento, o homem orgulhoso teria que admitir com sinceridade um pressuposto absurdo; se se recusar a fazê-lo, então sua própria conduta, considerada em si mesma, torna-se absurda porque incoerente.

27.

Observação sobre a incoerência do agir humano.

Esta explicação pode parecer, à primeira vista, inacreditável. Pois a maioria dos homens, segundo comumente se pensa, é orgulhosa. Parece porém muito difícil admitir-se que, se de fato estas sejam a natureza da humildade e do orgulho, a maioria dos homens se comporte de uma maneira tão irracional. Devemos porém dizer que a incoerência é muito mais comum entre os homens do que estes estão dispostos a admitir em um primeiro exame. A maioria dos homens age, não apenas no que diz respeito à humildade, de uma forma a que só se poderia atribuir uma explicação lógica admitindo-se a existência de pressupostos absurdos ou contraditórios. Uma conduta espontaneamente baseada em uma perfeita coerência é algo somente próprio dos santos e algo profundamente desconcertante para a maioria dos homens que tem a oportunidade de se aproximarem pessoalmente deles.

28.

Os sinais pelos quais se manifesta a humildade.

A explicação apresentada do que seja a humildade é concordante com uma definição finamente precisa dada por Hugo de São Vitor no Opúsculo sobre os Frutos da Carne e do Espírito. Segundo ele a humildade é

"Uma disposição voluntária da mente
proveniente da intuição
de sua condição de criatura
e da condição do Criador".

"Humilitas est
ex intuito propriae conditionis,
vel Conditoris,
voluntaria mentis inclinatio".

Esta disposição da mente, conseqüente da consciência de ser apenas uma criatura e não um deus, manifesta-se no homem principalmente através de três sinais. Estes sinais podem servir- nos como auxílio para exemplificar mais claramente o que significa a virtude da humildade, na medida em que uma causa pode ser conhecida pelos seus efeitos. Eles podem servir-nos também para que, por meio deles, possamos avaliar o quanto possuímos efetivamente desta virtude. Os três sinais principais pelos quais se manifesta a humildade no homem são os seguintes:

  1. Uma reverência espontânea para com aquilo que é por natureza ou por referência superior ao homem, como o são Deus, as coisas sagradas ou mesmo a lei moral natural.

  2. Um respeito incondicional por qualquer ser humano.

  3. Um desejo profundo e constante de aprender, principalmente as coisas mais elevadas.

Todas estas manifestações são sinais de humildade por serem uma conseqüência imediata da consciência de nossa condição de criatura e da condição do Criador.

Aqueles que tem consciência de serem apenas uma criatura devem necessariamente com isto reconhecerem que eles não são os entes mais importantes do Universo, e que é ilegítima a pretensão de qualquer homem que quisesse governar segundo o seu capricho os demais homens e até toda a ordem cósmica, se isto lhes fosse possível. Apesar de fantástica, esta é uma pretensão muito comum nos homens orgulhosos, e se eles não a exercem ou não pensam nela diretamente nestes termos é apenas por uma questão de impossibilidade física ou social, e não porque não se julgam no direito de desempenharem tal papel, que de fato o exercem o tanto quanto lhes é concedido fazê-lo em suas famílias, em seu trabalho, nos meios, enfim, em que vivem. O homem humilde, porém, reconhece que o seu capricho não pode ser a lei pela qual deve ordenar-se o Universo à sua volta; daí a facilidade com que eles reconhecem a existência de uma lei moral natural que lhes é superior, e a reverência que tem por Deus, que associam espontaneamente com a fonte de onde surge a ordem cósmica e moral, e pelas coisas que se apresentam diante deles como sagradas, por terem percebido nelas alguma associação com o divino.

O respeito incondicional por todos os seres humanos é uma exigência da humildade porque aqueles que têm a consciência de serem apenas uma criatura humana e não um deus são levados a reconhecer que a dignidade humana que eles possuem é essencialmente a mesma que a presente em todos os demais homens independentemente de quaisquer condições circunstanciais. O homem rico que não trata o homem pobre com o mesmo respeito com que trataria outro homem rico deverá admitir, se quiser explicar de uma forma coerente o seu comportamento, que está agindo como se estivesse pressupondo considerar-se uma criatura superior, ou um deus, por ser rico; o homem erudito que não trata o analfabeto com o mesmo respeito com que trataria outro erudito está também agindo como se tivesse admitido o pressuposto de possuir atributos divinos, que o tornam superior à comum natureza humana, por se tratar de um erudito. O homem honesto que nutre vingança ou mesmo sentimentos de desrespeito pelo criminoso está se colocando em um plano superior ao da natureza que o homem criminoso também possui; ele não se julga apenas no dever de fazer cumprir a justiça tendo em vista ao bem comum da sociedade, mas também no direito de desprezar um ser que possui a mesma natureza que ele; só poderia fazer isto coerentemente se admitisse agir tendo como pressuposto ter-se atribuído uma natureza superior à do criminoso, a qual, todavia, objetivamente falando, é essencialmente a mesma natureza humana para ambas estas pessoas. O homem que desrespeita aquele que o desrespeitou primeiro está agindo como quem é tomado de uma indignada surpresa por ter sido ultrajado em sua natureza superior que ele cultua como a nenhuma outra, como se nele houvesse algo de essencialmente superior a toda a natureza humana; ele se julga no direito indiscutível de desprezar outra natureza humana de um modo como se tratam as coisas dotadas de uma dignidade inferior; age, portanto, tal como agiria se tivesse explicitamente admitido o pressuposto de ser superior à natureza humana que ele não pode objetivamente negar ao seu adversário. Em todos estes exemplos o homem orgulhoso está agindo de um modo que só poderia ter alguma explicação lógica na hipótese dele estar admitindo ser dotado de atributos divinos, se é que um deus nestas circunstâncias escolheria agir desta forma. O homem humilde, porém, diante de uma ofensa ou de uma injustiça não nega a realidade da ofensa ou da injustiça, se ela de fato existe; não se crê no direito, entretanto, de desrespeitar o agressor como se o faria com um ser inferior, nem sequer no íntimo de sua alma. Limita-se, se necessário, a tomar as providências tecnicamente cabíveis para que os seus direitos não sejam lesados, sem colocar-se, porém, em uma situação de superior desprezo diante do autor da ofensa. No caso de ser um pai, um educador ou alguém legitimamente atribuído de um ofício que exija como um dever que em certas circunstâncias, para o bem do outro, e não para colocar-se em um pedestal, seja utilizada alguma repreensão mais forte, o fará apenas por motivos técnicos e não por sentir-se desrespeitado, e o fará num contexto em que poderá notar-se bem a racionalidade e a ponderação da repreensão empregada em vista do objetivo de promover o bem do repreendido, uma autêntica ausência do desejo de ofender ou desprezar o outro e uma verdadeira motivação de fazer o bem. O homem humilde não desrespeita sua esposa, seu pai ou sua mãe, seu empregado, seu patrão, seu irmão, ou qualquer outro ser humano, mesmo se desrespeitado de fato ou presumidamente por eles. Limita-se, se necessário, a explicar suas razões ou a providenciar a garantia de seus direitos por canais racionais, sem atribuir-se o direito de poder ofender ou agredir alguém a ser tratado como inferior por ter sido por ele ofendido. O homem humilde, enfim, consciente da dignidade humana que tanto ele como os demais homens condividem, respeita-a incondicional e integralmente segundo o mandamento de Cristo que diz:

"Ouvistes o que foi dito
aos antigos:

`Não matarás',

pois quem matar responderá em juízo.

Eu, porém, vos digo
que quem se irar contra seu irmão
será levado a juízo;
quem lhe disser:

`Estúpido',

será levado à barra do tribunal;
e quem lhe disser:

`Desgraçado'

será réu do fogo do inferno.

Se estiveres, pois,
para apresentar a tua oferta ao pé do altar
e ali te recordares de que teu irmão
tem qualquer coisa contra ti,
deixa a tua oferta diante do altar
e vai primeiro reconciliar-te
com teu irmão;
voltarás, então,
para apresentares a tua oferta".

Mat. 5, 21-24

O respeito incondicional ao semelhante, proveniente da consciência que o homem tem de ser portador apenas da dignidade humana que qualquer outro homem incondicionalmente também possui, é, assim, o segundo sinal pelo qual se manifesta a humildade.

O desejo de aprender provém, no homem humilde, da consciência de que, como criatura, não só não possui a onisciência divina, como também não possui a perfeição da bondade divina. Em princípio deveria ser muito claro para todos que ninguém é portador da onisciência divina. Todos os homens, de fato, sabem que ignoram praticamente a totalidade de tudo aquilo que pode ser conhecido. O problema surge quando, na prática, a maioria dos homens age como se o que eles desconhecessem fossem apenas os detalhes do conjunto da realidade cognoscível, tendo porém uma perfeita ciência da ordenação essencial do Universo e do homem dentro dela. Embora estas pessoas admitam desconhecer os detalhes, e admitam inclusive desconhecer a maior parte dos detalhes, agem, porém, como se a sua mente fosse um perfeito espelho do que há de essencial na ordem cósmica, nada necessitando aprender ou ser-lhe acrescentado a este entendimento. Nada, pelo menos, que fosse verdadeiramente capaz de produzir alguma diferença essencial. Neste sentido, possuem a onisciência divina no que ela tem de mais importante; Deus os supera apenas no conhecimento enciclopédico dos detalhes da criação, não porém no conhecimento das linhas mestras do seu plano criador. É evidente, porém, que quem pensa ou age com a coerência de quem estivesse partindo de pressupostos de tal natureza terá muito pouco interesse em aprender. Sua motivação para aprender será apenas circunstancial; ela dirá respeito apenas a alguns detalhes eventuais, dos quais ele admite não ter a obrigação de conhecê-los a todos. Ele procurará aprender estes detalhes que reconhece ignorar quando o conhecimento dos mesmos, pelas contingências da vida, se tornar necessário para o êxito de seus empreendimentos pessoais. Costuma ocorre também que um homem como este julgue ser alguém essencialmente honesto e justo, não necessitando de progredir na vida das virtudes, a não ser, talvez, em um ou outro pequeno detalhe, já que ninguém pode ser inteiramente perfeito. Deste modo, vemos tratar-se de alguém que se julga suficientemente rico de conhecimento e de virtude e que, se ouve falar da graça, fonte tanto da virtude como da verdadeira sabedoria, não saberia dizer no que ela poderia vir a ser-lhe verdadeiramente útil. Julgando-se assim tão bem dotado em bens da alma, não pode evidentemente possuir grandes motivações para buscar qualquer aprendizado mais profundo. Às vezes, mas não necessariamente, sua verdadeira motivação vital é a busca da riqueza material, de que pode considerar-se injustamente pobre e carente. O homem humilde, ao contrário, tendo consciência de suas verdadeiras condições, reconhece ser um indigente de graça, virtude e conhecimento e busca, por uma necessidade intrínseca e constante, estes bens com avidez e interesse. O homem humilde, por este motivo, busca avidamente aprender quer se lhe ofereça ou não a oportunidade de fazê-lo; a consciência de sua indigência é tão clara que se o conhecimento não se lhe apresenta ele irá buscá-lo onde quer que seja possível encontrá-lo. Ele não depende da escola ou do professor para aprender, mas para facilitar o seu trabalho, que ele irá empreendê-lo de qualquer modo. Estas são, efetivamente, as características que Santo Atanásio descreve na biografia de Santo Antão, ao narrar seu procedimento logo após a sua conversão:

"Ele soube",

diz Atanásio escrevendo sobre Santo Antão,

"ainda quando jovem,
que havia na aldeia um ancião
que desde a sua juventude
levava na solidão uma vida de oração.

Quando Antão o viu,
`teve zelo do bem',
e se estabeleceu imediatamente
na vizinhança da cidade.

Desde então,
quando havia em alguma parte
uma alma esforçada,
ia, como sábia abelha,
buscá-la,
e não voltava sem havê-la visto.
Só depois de haver recebido,
por assim dizer,
provisão para a sua jornada de virtude,
regressava.

Assim vivia Antão
e era amado por todos.

Submetia-se com toda a sinceridade
aos homens piedosos que visitava,
e se esforçava por aprender
aquilo que em cada um avantajava em zelo
e prática religiosa.
Observava a bondade de um,
a seriedade de outro na oração;
estudava a aprazível quietude de um
e a afabilidade de outro;
fixava sua atenção nas vigílias observadas por um
e nos estudos de outro;
admirava um por sua paciência,
e outro pelo jejuar e dormir no chão;
considerava atentamente a humildade de um
e a paciência e a abstinência de outro,
e em uns e outros notava especialmente
a devoção a Cristo e o amor que mutuamente se davam.

Então se apropriava
do que havia obtido de cada um
e dedicava todas as suas energias
a realizar em si as virtudes dos outros.

Não tinha disputas com ninguém de sua idade,
nem tampouco queria ser inferior a eles no melhor;
e ainda isto fazia de tal modo
que ninguém se sentia ofendido,
mas todos se alegravam com ele.

E assim todos os aldeões
e os monges com os quais estava unido
viram que classe de homem era ele
e o chamavam de amigo de Deus,
estimando-o como a um filho ou irmão".

Santo Atanásio
Vida de S. Antão, C. 3-4

Esta é a atitude naturalmente espontânea daqueles que fazem uma justa estimação de si mesmos como criaturas. Em oposição a eles, já tivemos a oportunidade de conhecer pessoas que não só não se interessam por aprender como inclusive recusam-se de modo deliberado e sistemático a dedicar-se a qualquer forma de aprendizado para com isto não inibirem suas potencialidades criativas a que dão um incalculável valor. Com isto eles próprios reconhecem, como deuses que se supõem, que não estão no mundo para aprender, mas para criar, o que é o mesmo que se auto atribuírem uma psicologia própria dos deuses.

29.

A humildade como virtude cosmológica.

Vemos, ademais, por meio desta explicação, que a humildade é uma virtude essencialmente cosmológica, entendendo esta palavra no seu sentido original, pela qual os gregos, derivando-a de um verbo que significa ordenar com estética, chamaram ao próprio Universo de Cosmos, por perceberem ser nele a beleza da ordem o seu mais manifesto atributo. A humildade, através da reverência para com o divino, o respeito incondicional para com o semelhante e o desejo profundo de aprender, ordena o homem em sua consciência e em seu agir em relação a Deus, aos demais homens e a si mesmo segundo a própria ordem que se manifesta no Universo.

30.

Os três sinais da humildade e suas outras possíveis manifestações.

Dependendo da cultura, do modo de vida e do meio em que vive ou exerce as suas atividades, a humildade pode ainda manifestar-se no homem de muitas outras maneiras. Qualquer que seja, porém, a situação do homem no tempo e no espaço, ela deverá manifestar-se necessariamente pelo menos segundo os três sinais fundamentais acima enumerados, pois em qualquer situação em que se encontre o homem, necessariamente ele terá que ter alguma consciência de estar inserido em um cosmos que lhe manifesta, se não um poder, pelo menos uma ordem que lhe é superior; sendo animal social, não pode desenvolver-se como humano fora de uma comunidade de homens; ademais, não poderá deixar de possuir alguma consciência de sua própria existência e condição. Obrigatoriamente, portanto, deverá ordenar-se de alguma maneira para com uma ordem ou um poder superior, para com os seus semelhantes e para consigo mesmo. Se o fizer segundo uma consciência a que podemos chamar de objetiva, será verdadeiramente um homem humilde.

31.

Necessidade da simultaneidade das manifestações da humildade.

A explicação que demos a respeito dos sinais fundamentais segundo os quais se manifesta a humildade permite- nos fazer notar que estes somente podem ser considerados sinais da virtude da humildade se se manifestarem simultaneamente. A manifestação isolada de um ou mesmo de dois dos sinais enumerados pode significar a presença de outras qualidades humanas, não porém a da humildade. Pois a humildade não consiste nestes sinais, mas na consciência da própria condição de criatura, consciência esta cuja manifestação são estes sinais. Não é possível que alguém tenha verdadeira consciência de sua condição de criatura se diante de Deus age como criatura mas diante de seu semelhante ou de si mesmo age como se fosse Deus. Assim, a manifestação isolada do respeito para com o semelhante pode ser sinal de um temperamento calmo ou mesmo de um inteligente autodomínio ou até da virtude da paciência, não porém da humildade; a manifestação isolada do desejo de aprender pode ser sinal de curiosidade ou mesmo de uma superdotação intelectual, não porém da humildade.