OS PRESSUPOSTOS DO APRENDIZADO

Comentário ao Opúsculo de Hugo de São Vitor
Sobre o Modo de Aprender

- Primeira Parte -




1.

Situação histórica de Hugo de São Vitor.

Hugo de São Vitor nasceu provavelmente no ano 1096 na região da Saxônia, território que na época fazia parte do Sacro Império Romano Germânico. Ainda jovem, ouvindo falar, através de um tio bispo, a respeito da boa fama de um mosteiro recém fundado junto a uma antiga capelinha dedicada ao mártir São Vitor nos arredores de Paris, abandonou sua terra natal e pediu para ser admitido entre os clérigos de que tão boas referências lhe haviam chegado. O mosteiro de São Vitor de Paris, fundado há tão pouco tempo, iria ser o berço de uma congregação religiosa que se espalhou pela Europa, atravessou a Idade Média mas acabou por extinguir-se no início da época moderna. Os Cônegos Regulares de São Vitor, embora não existam mais, deixaram porém para os cristãos e os homens de todos os tempos, entre outros valores, o legado das obras de dois dos principais teólogos que houve na história da Igreja, Hugo de São Vitor e seu discípulo Ricardo de São Vitor, este último que continuou e completou com tanta fidelidade a obra iniciada por Hugo que os escritos de ambos estes homens formam, na realidade, um só conjunto, como se duas pessoas se tivessem unido e continuado por uma só alma.

2.

Características da obra teológica de Hugo de S. Vitor.

A obra teológica de Hugo de São Vitor se distingue de modo particular entre todas as outras que marcaram com uma forte presença a história da Igreja pelo fato de que seu autor foi chamado não apenas a lecionar Teologia, mas também a organizar a primeira escola desta disciplina em sua nascente congregação. Naquela época não existiam ainda na Igreja os seminários para a formação dos clérigos, que só surgiram com uma disciplina organizada através dos decretos do Concílio de Trento no século XVI. No tempo de Hugo de São Vitor não existiam ainda também as instituições a que hoje denominamos Universidades, da qual a primeira foi a Universidade de Paris que surgiria cerca de um século depois de Hugo de São Vitor, em grande parte como resultado do trabalho que ele próprio desenvolveu na escola anexa ao Mosteiro de São Vitor de Paris.

Devido ao fato de Hugo de São Vitor ter-se visto investido da obrigação de organizar esta escola de estudos teológicos, a primeira e principal de uma organização que surgia na Igreja com a devoção característica das obras que estão ainda em seus primórdios, uma parte de seus escritos acabaram sendo dedicados à Pedagogia da Teologia e da vida espiritual. Hugo de São Vitor se viu explicando aos alunos como se deveria estudar, aos professores como se deveria ensinar e à escola como se deveria organizar, não para obter algum diploma. que naquela época ainda de nada valiam, mas para, a partir de um sólido conhecimento das Sagradas Escrituras e das obras dos Santos Padres, empreenderem a busca da santidade. Muitas ou talvez mesmo quase todas as demais obras de Hugo de São Vitor que não tratam diretamente de Pedagogia, entendido este termo no sentido que acabamos de explicar, ademais, só podem ser verdadeiramente compreendidas quando inseridas dentro da perspectiva desta que foi uma das mais notáveis das pedagogias, talvez mesmo a Pedagogia por excelência. Efetivamente, a maioria destas obras foram sendo redigidas à medida em que Hugo, percebendo que não havia ainda, na Tradição Cristã, textos que pudessem preencher tais ou quais necessidades de seu modo de entender a Educação, as foi compondo e escrevendo ele próprio. Foi assim, por exemplo, que surgiu a primeira Summa Theologiae da história, ou o primeiro texto que tinha a estrutura e as características essenciais de uma Summa Theologiae do modo como viria a ser composta quase dois séculos mais tarde por Santo Tomás de Aquino. Àquela que foi a primeira Summa Theologiae da história, Hugo de São Vitor deu o nome de Os Mistérios da Fé Cristã, ou, no original latino, De Sacramentis Christianae Fidei. Porém, anos antes de escrevê-la, em uma outra obra, os seis livros do Didascalicon, obra dedicada apenas a questões de pedagogia, Hugo de São Vitor havia demonstrado a necessidade de se redigir um texto que tivesse as características que viriam a se encontrar em seu Os Mistérios da Fé Cristã e posteriormente na Summa Theologiae de Santo Tomás, e que pudesse ser utilizado como subsídio para uma das etapas de seu programa pedagógico.

3.

Opúsculos de Hugo de São Vitor.

Entre as obras de Hugo de São Vitor há uma série de opúsculos caraterísticos de um ambiente de ensino de uma escola em processo de formação. São coleções de notas redigidas por Hugo de São Vitor sobre assuntos os mais diversos. Nestes opúsculos, embora seja freqüente que o pensamento do autor seja muito claro, que suas afirmações sejam mesmo de uma precisão lapidar, nota-se, entretanto, que ao mesmo tempo estas observações não se acham desenvolvidas para que se perceba de modo imediato todo o seu alcance e as suas implicações mais profundas ali inegavelmente contidas. São anotações para as quais Hugo não tinha tido tempo de dar-lhes a forma de livro. Ele tinha outros assuntos a ensinar ou com que ocupar-se e, antes que tivesse podido acabar o livro necessário para expor de modo explícito as reais implicações daqueles princípios, já teria que ter escrito outros mais urgentes. Para não deixar, porém, os alunos sem apontamento algum, redigia ou ditava estes pequenos opúsculos nos quais apontava apenas para algumas idéias principais. O Opúsculo sobre o Modo de Aprender, de que estamos tratando nestas notas, e o Opúsculo sobre os Frutos da Carne e do Espírito, que trata do papel central da humildade na vida das virtudes e de que faremos um uso especial mais adiante, são dois exemplos deste gênero de trabalho. Além destes Hugo nos deixou muitos outros. Pode-se citar, entre eles, um livro razoavelmente grande contado entre as suas obras, denominado de Miscelâneas, que não contém a totalidade de seus opúsculos, -não contém, por exemplo, estes dois que acabamos de citar-, mas no qual estão reunidos mais de novecentos títulos entre opúsculos menores, comentários, fragmentos de aulas ou mesmo pequenas observações sobre assuntos os mais diversos.

4.

Alguns temas centrais do Opúsculo sobre o Modo de Aprender.

Uma das idéias fundamentais em torno da qual construíu-se a pedagogia vitorina está contida no Opúsculo sobre o Modo de Aprender. Nele Hugo afirma que há três operações básicas da alma racional, as quais constituem entre si uma hierarquia, e que, em conseqüência, se desenvolvem uma pressupondo a outra, o exercício da anterior constituindo-se em um aprendizado para o exercício da posterior. Estas três operações são as seguintes:

  • O pensamento,
  • a meditação
  • a contemplação.

A operação básica da alma racional, o pensamento, é definida por Hugo de S. Vitor como ocorrendo

"quando a mente é tocada transitoriamente
pela noção das coisas,
ao se apresentar a própria coisa,
pela sua imagem,
subitamente à alma,
seja entrando pelo sentido,
seja surgindo na memória".

Entre os ensinamentos de Hugo está a relação que existe entre o pensamento e a leitura ou o estudo. Na maioria das vezes em que Hugo se refere à leitura, ele está se referindo na realidade àquilo que hoje denominaríamos de "assistir uma aula" ou "estudar um livro". A importância do estudo, diz Hugo de S. Vitor, está no fato de que ele é, na realidade, um modo de estimular a primeira operação da inteligência que é o pensamento. A afirmação pode parecer evidente, mas deixa de sê-lo quando consideramos, em primeiro lugar, que a maioria das pessoas que estudam hoje em dia não o fazem com esta finalidade, mas com a intenção de, através dele, adquirirem algum tipo de informação. Não estudam para estimular com isto o pensamento, e muito menos se dão conta pensam que estimular o pensamento pode ser uma via para o acesso a formas superiores de utilização da inteligência. Ademais, dizer, segundo Hugo de S. Vitor, que o estudo é um modo de estimular a primeira operação da inteligência é uma afirmação que carrega implicitamente uma outra segundo a qual, por outro lado, o estudo não é mais, pelo menos diretamente, o modo adequado de estimular as operações seguintes da inteligência, que são a meditação ou reflexão e a contemplação. Percebe-se, nesta concepção, que o estudo é considerado como algo importante, mas ao mesmo tempo limitado, porque ele não pode estimular as operações seguintes da inteligência, que são a meditação e a contemplação, a não ser indiretamente, na medida em que o estudo estimula o pensamento, que é o primeiro estágio pressuposto pelos demais. Isto significa que, na pedagogia vitorina, requer-se uma teoria do estudo em que o mestre saiba utilizar-se dele para produzir o pensamento, mas em que ao mesmo tempo compreenda também que existem outros processos mentais mais elevados que devem igualmente ser desenvolvidos e que podem vir a ser impedidos por uma concepção errônea por parte do mestre que não conseguisse compreender que estes não dependem mais diretamente apenas do estudo.

A segunda operação da inteligência, continua Hugo de São Vitor, é a meditação. Poderia-se, para traduzir a palavra utilizando a linguagem moderna, fazer-se uso também do termo reflexão. A meditação, ou reflexão profunda, é uma operação da inteligência que se baseia no pensamento e é

"um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento,
esforçando-se para explicar algo obscuro,
ou procurando penetrar no que nos é oculto".

Segundo as palavras de Hugo no Opúsculo sobre o Modo de Aprender,

"No estudo, mediante regras e preceitos,
somos instruídos a partir das coisas que estão escritas.
O estudo também é uma investigação do sentido
por uma alma disciplinada.
A reflexão toma, depois,
por sua vez,
seu princípio do estudo,
embora não se realize por nenhuma
das regras ou preceitos do estudo.
A reflexão é uma cogitação freqüente com conselho,
que investiga prudentemente a causa e a origem,
o modo e a utilidade de cada coisa".

Mas, acima da reflexão ou meditação, e baseando-se nela, existe ainda o que Hugo chama de contemplação. Ele explica o que é contemplação e no que difere da meditação do seguinte modo:

"A contemplação é uma visão
livre e perspicaz da alma de coisas
que existem entre si de modo amplamente disperso.

Entre a meditação e a contemplação
o que parece ser relevante é que
a meditação é sempre de coisas ocultas
à nossa inteligência;
a contemplação, porém,
é de coisas que, segundo a sua natureza,
ou segundo a nossa capacidade,
são manifestas;
e que a meditação sempre se ocupa
em buscar alguma coisa única,
enquanto que a contemplação se estende
à compreensão de muitas,
ou também de todas as coisas.

A meditação é, portanto,
um certo vagar curioso da mente,
um investigar sagaz do obscuro,
um desatar o que é intrincado.

A contemplação é aquela vivacidade da inteligência,
a qual, já possuindo todas as coisas,
as abarca em uma visão plenamente manifesta,
e isto de tal maneira
que aquilo que a meditação busca,
a contemplação possui".

Estas passagens do Opúsculo sobre o Modo de Aprender nos mostram uma das mais fundamentais preocupações da pedagogia de Hugo de S. Vitor, a de levar o discípulo do pensamento à contemplação.

Vários outros temas são mencionados ou tratados no Opúsculo sobre o Modo de Aprender. Dentre eles merece uma referência especial nestas notas aquele que é precisamente o primeiro de todos. Hugo, efetivamente, inicia o texto deste opúsculo com alguns curtos parágrafos que tratam da humildade, aplicados à situação específica em que se encontra o aluno. Ele afirma primeiramente que

"A humildade é o princípio do aprendizado".

Sobre a humildade, continua Hugo, escreveu-se já muita coisa. Neste opúsculo ele não nos quer relembrar de todas, mas apenas de alguns pontos que dizem respeito especificamente a um estudante. Entre as coisas para que então ele nos chama a atenção estão os seguintes três conselhos:

  1. Não ter como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura.

  2. Não se envergonhar de aprender de ninguém.

  3. Quando tiver alcançado a ciência, não desprezar aos demais.

O Opúsculo sobre o Modo de Aprender, não obstante o seu reduzido tamanho, abarca mais assuntos do que estes poucos que acabamos de mencionar. Quisemos iniciar estas notas reportando a estes em vez de a outros por se tratarem dos seus aspectos que mais serão comentados a seguir.

5.

Os vitorinos enquanto escola de espiritualidade.

Nós viemos aqui reunir-nos porque queremos aprender. Precisamente por este motivo estamos nos deparando com algo que nos foi deixado por escrito através de alguém que, apesar dos nove séculos de distância que nos separam, quis nos deixar um ensinamento sobre este assunto porque sabia de sua importância. Para entender, porém, o conteúdo do Opúsculo sobre o Modo de Aprender e a importância da mensagem que nele nos foi transmitida é preciso entender algo do contexto histórico dentro do qual se encontra Hugo de S. Vitor.

Podemos iniciar um melhor entendimento deste contexto se abrirmos as primeiras páginas da obra de A. Royo Marín intitulada de Teologia da Perfeição Cristã. Aí encontraremos, logo em seu início, uma extensa bibliografia contendo praticamente todos os principais autores que houve ao longo da História da Igreja que trataram sobre algum tema de espiritualidade cristã. Estes autores não estão somente elencados em ordem cronológica, mas também agrupados por escolas ou correntes de espiritualidade. Desta extensa bibliografia pode-se extrair um quadro cronológico esquemático em que foram situados alguns nomes e datas importantes como pontos de referência na história da espiritualidade cristã.

Referências na História da Espiritualidade Cristã

Primeiros
Séculos

Padres Gregos:

S. João Crisóstomo
S. João Clímaco: A Escada do Paraíso
 

Padres Latinos:

Santo Agostinho
João Cassiano: As 24 Conferências
~550 DC

Beneditinos
 
  
~1100 DC Cartuxos
 
Vitorinos:
Hugo de S. Vitor / Ricardo de S. Vitor
 
~1200 DC Franciscanos
  
Dominicanos:
S. Tomás de Aquino
~1550 DC

Carmelitas:
Sta. Teresa / S. João da Cruz
  
Jesuítas
~1650 DC
 
S. Francisco de Sales
    
  
~1750 DC
 

Redentoristas:
S. Afonso Liguori
  
~1850 DC

Salesianos de Dom Bosco
  


Examinando este quadro, vemos que nos primeiros séculos da História da Igreja não houve propriamente correntes ou escolas de espiritualidade. Os autores estão divididos em dois grandes grupos aos quais denominamos de Padres Latinos e Padres Gregos, grupos que correspondem aos autores que viviam no Ocidente ou no Oriente do antigo Império Romano, cujas línguas em que costumavam escrever eram, respectivamente, o Latim e o Grego.

Dentre as obras mencionadas entre os primeiros padres Gregos e Latinos podemos destacar, pela profundidade e pela extensão, a de Santo Agostinho no Ocidente e a de São João Crisóstomo no Oriente. Santo Agostinho e São João Crisóstomo tiveram, no mundo latino e no mundo grego, papéis razoavelmente semelhantes.

Entre as obras mencionadas entre as dos primeiros Santos Padres destacam-se também duas outras que desempenharam o papel de uma síntese do pensamento cristão não no que diz respeito a toda a Teologia, mas mais especificamente à vida espiritual. No Ocidente João Cassiano, um cristão que passou muitos anos de sua vida entre os monges da Palestina e dos desertos do Egito para depois dirigir-se à Gália, hoje sul da França, e fundar um mosteiro em Marselha, escreveu as Instituições dos Cenobitas e As 24 Conferências. No Oriente, São João Clímaco, monge no mosteiro de Santa Catarina aos pés do Monte Sinai, onde um milênio e meio antes Moisés havia recebido as tábuas dos 10 mandamentos, após passar muitos anos como eremita no alto deste mesmo monte, eleito abade e trazido de volta ao mosteiro, escreveu A Escada do Paraíso.

Por volta do ano 550, com base na experiência acumulada da tradição monástica iniciada com Santo Antão em torno do ano 300, e com especial referência a São Basílio e João Cassiano, São Bento redigiu uma regra monástica tão perfeita que aos poucos começaram a cessar em sua maior parte as iniciativas de se redigirem novas regras para adotar-se mais simplesmente aquela já escrita por São Bento. A Europa Ocidental tornou-se quase que inteiramente beneditina e surgiu a primeira das escolas de espiritualidade apontadas na obra de Royo Marin, a escola beneditina, inspirada nos princípios da Regra de São Bento.

Somente no apogeu da Idade Média iriam surgir novas escolas de espiritualidade revestidas de importância histórica. Uma das primeiras a surgirem é precisamente a dos vitorinos, entre cujos principais autores contam-se Hugo e Ricardo de São Vitor. Neste sentido, Hugo e Ricardo de São Vitor não são apenas dois autores importantes que trataram de temas ligados à espiritualidade cristã; mais do que isto, eles representam um modo especial com que este tema pode ser abordado.

Um século após o surgimento dos vitorinos, com o advento das ordens franciscana e dominicana, esta última à qual pertenceu Santo Tomás de Aquino, surgiram também aquelas a que R. Marin denomina de escolas franciscana e dominicana de espiritualidade.

Durante a Renascença os Jesuítas e os Carmelitas vieram dar a sua contribuição ao tema. Formando o que R. Marin chama de escolas, não apenas trataram do assunto, mas o abordaram como que segundo uma nova perspectiva. Entre os carmelitas dois dos principais autores que trataram da vida espiritual em todos os tempos, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila.

São Francisco de Sales, segundo Royo Marin, é, ele sozinho, uma inteira escola de espiritualidade, tal a novidade da perspectiva com que ele se debruçou sobre o assunto. Embora São Francisco de Sales se baseasse, em seus escritos, em toda a tradição cristã, pode-se perceber nele uma influência medular de Santa Teresa de Ávila. Não obstante o muito que ele deve a São Francisco de Assis e também a Santo Inácio de Loyola, na realidade a sua obra é a de alguém que essencialmente parece ter querido tornar verdadeiramente acessível às pessoas mais simples a tão profunda riqueza espiritual contida nos escritos de Santa Teresa de Ávila. Fê-lo porém de um modo tão impregnado com a sua própria experiência e seu vasto conhecimento que acabou por tornar-se, ele quase que sozinho, uma nova escola de espiritualidade.

Em meados do século 19 São João Bosco, ao ver-se obrigado pelas circunstâncias e pela sua vocação a iniciar uma congregação dedicada à educação da juventude, encantado pela simplicidade dos escritos e das orientações deixadas por São Francisco de Sales, quis que em seu instituto nascente a vida espiritual tivesse uma orientação salesiana. Embora São Francisco de Sales já houvesse morrido há cerca de dois séculos, S. João Bosco deu por este motivo à família espiritual que iniciava o nome de Congregação de São Francisco de Sales ou de Salesianos, como são até hoje mais conhecidos.

Neste interim, no século dezoito, Santo Afonso de Liguori, às voltas com a fundação de um instituto missionário que veio a chamar-se de Congregação do Santíssimo Redentor, cujos membros são também conhecidos como Redentoristas, não obstante sua dívida profunda com Santo Tomás de Aquino, em matéria de espiritualidade depende fundamentalmente das concepções básicas de Santa Teresa de Ávila. A escola salesiana e a redentorista são, assim, na realidade, em seus traços essenciais, derivações do legado de Santa Teresa de Ávila.

Situado neste contexto, pode-se perceber que Hugo e Ricardo de São Vitor, como já mencionamos, não são apenas teólogos importantes, ainda que situados entre os mais importantes que houve na Igreja, mas também representam um modo especial de se considerar a vida espiritual. O pequeno comentário que Royo Marin tece a cada escola de espiritualidade à medida em que ela no-las vai apresentando é, em relação aos vitorinos, enquanto escola distinta, muito preciso e correto:

"Herdeira do espírito de Santo Agostinho",

diz Royo Marín,

"a escola de São Vitor representa
um termo médio entre a escola beneditina,
de orientação predominantemente afetiva,
e a dominicana,
que nascerá em seguida,
com tendência mais intelectualista".

6.

O significado das diversas escolas de espiritualidade.

Antes de prosseguirmos no nosso assunto, será necessário explicar qual a razão para a existência destas e de outras escolas de espiritualidade. O nome de correntes ou escolas não são os termos ideais para expressar a realidade que se quer designar com eles. Infelizmente, porém, parece não haver outros. Não se tratam de correntes divergentes, nem de escolas que defendem princípios fundamentais opostos. Na verdade, os princípios fundamentais que todas elas supõem não apenas não são opostos como nem sequer são diversos. Todas elas partem, de fato, não apenas dos mesmos princípios fundamentais, como todas também concordam na mesma doutrina cristã e cada uma almeja alcançar os mesmos e idênticos objetivos que todas as demais.

As diversas linhas de espiritualidade podem ser consideradas como modos diversos de conduzir a vida humana, com o auxílio da graça, àquela realidade a que se chama de contemplação. Pode-se dizer que o objetivo de todas as escolas de espiritualidade, assim como o de todos os homens santos, foi o de alcançar a contemplação. E pode-se dizer também que a contemplação, em sua forma mais plena, não difere em sua natureza de uma escola para outra. A contemplação é não apenas um objetivo final comum para todas, como também é uma mesma, única e precisa realidade para qualquer uma destas escolas de espiritualidade. Cada um destes modos diversos de se dispor a vida espiritual difere dos demais apenas pelo modo como se realiza em cada um a aproximação gradual desta realidade a que chamamos de contemplação; uma vez, porém, alcançada esta realidade em toda a sua plenitude, cessam quaisquer aparentes diferenças entre os diversos modos como pôde ter-se iniciado a vida espiritual.

7.

Comparação com a escalada de uma montanha.

As diversas escolas de espiritualidade podem ser comparadas aos diversos modos como é possível escalar uma montanha.

Alguns sobem pelo flanco norte, outros pelo leste, outros pelo oeste, outros pelo sul, e outros ainda pelos meios destes. As características de cada flanco podem ser tão diversas que se tornará necessário utilizar recursos também diversos para a escalada. Alguém que teria uma aptidão especial, uma história, uma facilidade ou um motivo especial para subir por um lado, poderia não tê-lo para fazê-lo ou para fazê-lo com a mesma facilidade por outro lado e vice versa.

Existe ainda o problema de que os que sobem por flancos aparentemente opostos podem não se enxergarem quando estão ainda nos inícios da escalada; figurativamente, significa isto que um parece não ser capaz de entender o proceder do outro. Todos estão, porém, escalando a mesma montanha e, quando chegarem ao seu topo, acabarão por se encontrarem precisamente no mesmo local.

8.

A contemplação descritível de várias formas.

Do fato de se dizer que a plenitude da realidade a que se chama de contemplação é um objetivo comum para todas as escolas de vida espiritual, e que é uma mesma e idêntica realidade para todas, não se segue que todas elas expliquem o que seja a contemplação de uma mesma maneira. Isto ocorre porque aquilo a que se chama de contemplação, embora seja uma única e mesma realidade, possui uma tamanha riqueza de conteúdo que pode ser abordada segundo uma multiplicidade inesgotável de perspectivas e que, cada pessoa, ao longo de toda a história humana, que se aproximar desta realidade, ao tentar descrevê-la, sempre o fará de um modo novo e diverso do que o fizeram todos aqueles que se tinham anteriormente já aproximado dela, embora estejam todos descrevendo uma única e mesma realidade.

Nas aulas de que estas notas são uma pequena parte já se teve um exemplo deste fato. Inicialmente dissemos que a contemplação era a operação da inteligência cujo objeto era a sabedoria, a qual seria, por sua vez, a mais elevada forma de conhecimento possível ao homem. Depois, seguindo os comentários de Santo Tomás de Aquino a Aristóteles, procurou-se definir o que, segundo Aristóteles, seria mais precisamente aquilo a que se chama de sabedoria. Porém, o próprio Santo Tomás de Aquino, quando não está escrevendo seus comentários a Aristóteles, mas trata do assunto em seus livros de Teologia onde ele tem por isso mesmo uma liberdade maior de expressão, se utiliza de uma perspectiva mais ampla para explicar o que é a contemplação. Se nos referirmos ao conjunto dos autores situados ao longo de toda a tradição cristã, estes autores, acrescidos à obra de Santo Tomás de Aquino, oferecem uma perspectiva de horizontes extraordinariamente ainda mais amplos. Mas, por mais que se tenha falado sobre o assunto ao longo de todos os séculos, esta perspectiva se dilata ainda de um modo surpreendentemente novo à medida em que os que estudam o assunto, em vez de se limitarem apenas à leitura do que os sábios dizem a este respeito, eles próprios se aproximam da mesma pela prática das virtudes, do estudo e da própria contemplação. De fato, lemos no Apocalipse a seguinte promessa de Jesus:

"Ao vencedor darei um nome novo,
o qual ninguém conhece,
senão quem o recebe".

Apoc. 2, 17

Ora, na interpretação de Ricardo de S. Vitor, este "nome novo, que ninguém conhece, senão quem o recebe", nada mais é do que o conhecimento divino (Comm. in Apoc.; PL 196, 724), que, de fato, por mais ampla que seja a perspectiva pela qual o conhecemos por meio de outros, se não o recebemos nós mesmos é como se ainda não o conhecêssemos, sendo este o motivo pelo qual, por mais que se tenha falado a respeito deste assunto, quando uma nova pessoa se acrescenta ao número dos que já falaram, parece, como de fato é, que novas coisas se estão falando que nunca antes haviam se falado.

9.

Legitimidade de uma espiritualidade.

Do que foi dito pode-se deduzir que não é qualquer regra ou modo de vida que pode legitimamente denominar-se de espiritualidade, ainda que aparentemente verse sobre assuntos relacionados com a vida do espírito. Uma espiritualidade somente pode ser julgada como autêntica se, de fato, ela conduz à contemplação. Todas elas surgiram da experiência de pessoas que haviam alcançado esta realidade e sabiam como ensinar aos outros o modo ou um modo de alcançá-la. Como todas, se legítimas, efetivamente conduzem a este mesmo fim, não se pode também dizer que uma seja melhor do que a outra. Ao contrário, dada a extrema dificuldade do comum dos homens em discernir corretamente sobre estes assuntos, deve-se considerar feliz aquele que, de alguma forma, tiver encontrado verdadeiramente qualquer uma delas. A grande dificuldade no discernimento sobre estes assuntos reside no próprio homem, imerso como está no pecado e encantado pelos baixos objetivos que lhe são apresentados pela vida material, em entender com clareza o que seja o próprio objetivo a que se propõe uma autêntica vida espiritual. A maioria dos homens sequer faz idéia do que se trata e inclusive não quer mesmo saber de nada a este respeito; da minoria restante, a maior parte tem uma idéia inteiramente fantasiosa e irreal do que seja aquilo a que se chama de contemplação.

10.

Uma primeira explicação sobre a natureza da contemplação.

Se tivéssemos que dizer em poucas palavras o que se quer significar com aquilo a que se chama de contemplação, possivelmente a mais perfeita de todas as explicações que já foram dadas até hoje, mas que, ainda assim, é insuficiente para dar ao leitor uma idéia do tamanho da riqueza da realidade que com isto se descreve, é aquela que nos foi deixada por Jesus no quarto capítulo do Evangelho de São João. Neste capítulo São João nos conta que Jesus, sentado à beira de um poço, viu aproximar-se dele uma samaritana que lhe dirigiu a seguinte pergunta:

"Senhor, vejo que és profeta.
Responde, então, à minha pergunta:
os samaritanos adoram sobre este monte,
mas os judeus dizem que é em Jerusalém
o lugar onde se deve adorar a Deus.
Quem está certo?"

Jesus responde-lhe:

"Mulher, crê-me que é chegada a hora
em que não adorareis o Pai
nem neste monte,
nem em Jerusalém.
A salvação vem dos judeus,
mas vem a hora,
e já chegou,
em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e verdade,
porque é destes adoradores que o Pai deseja".

A adoração em espírito e verdade de que fala Jesus é uma expressão felicíssima para designar aquilo que na tradição cristã tem sido chamado também de contemplação. Por espírito entende-se a atuação dos dons do Espírito Santo, que é a causa da contemplação nas almas que, pela fé em Cristo, vivem em estado de graça e se purificaram através da vida das virtudes; pela verdade entende-se o próprio objeto da contemplação. Neste sentido, a contemplação é algo que se manifesta no homem quando, pelo auxílio da graça que nos chega através de Cristo, pela perfeita renúncia a si mesmo, por uma profunda e contínua prática das virtudes, pelo estudo, pela reflexão e pela oração, é concedida ao homem a possibilidade de um exercício intenso e simultâneo das virtudes teologais da fé, esperança e caridade, que é aquilo que se chama de contemplação.

Pode-se perceber, através desta explicação suscinta, que a contemplação é algo que se torna possível ao homem após uma profunda e prolongada prática da vida espiritual, resumidamente abarcada pelas expressões de renúncia a si mesmo, prática das virtudes, estudo, reflexão e oração. Os diversos modos como estas coisas podem ser exercidas e combinadas de forma coerente entre si constituem aquilo a que se chama de espiritualidade; o objetivo delas, o exercício intenso e simultâneo das virtudes teologais da fé, esperança e caridade, que é a contemplação, é um mesmo objetivo para todas.

Pode-se perceber, também, pelo que foi dito, que o desenvolvimento da vida espiritual pode dividir-se, em linhas gerais, em duas partes. A primeira, que difere segundo cada escola de espiritualidade, é aquela cuja descrição genérica foi abarcada pelas expressões de renúncia, virtude, estudo, reflexão e oração; a isto chama-se de ascese. A segunda é aquela em que a principal característica é a manifestação predominante da realidade a que se chama de contemplação. Na vida espiritual corretamente ordenada a primeira parte se orienta para a segunda.

11.

Exemplo da Regra de São Bento.

Temos na Regra de São Bento um exemplo bastante claro de uma forma de ascese que reconhece ela própria ordenar-se a algo que lhe é posterior, ao qual estamos chamando nestas notas de contemplação. No início de sua regra São Bento nos afirma que teve a intenção de, com ela, constituir

"uma escola do serviço do Senhor".

Ele afirma que há algumas coisas nela que podem parecer para alguns um pouco rigorosas, mas recomenda para o monge que assim isto lhe parecer que não se assuste e não julgue segundo as aparências. Na realidade a intenção de São Bento, conforme ele mesmo no-lo diz, não foi a de estabelecer

"coisas ásperas ou pesadas",

mas a de dispor tudo com eqüidade. O que haja que possa parecer áspero na regra se deve ao fato de que ela foi concebida para produzir a "emenda dos vícios" e "a conservação da caridade". Estas expressões significam que a regra de São Bento, segundo as suas próprias palavras, corresponde àquilo a que chamamos de ascese, cujo objetivo é o cultivo das virtudes; de fato, dizer que uma regra foi concebida para produzir a emenda dos vícios e dizer que ela foi concebida para o florescimento da vida das virtudes é a mesma coisa, pois o único modo alguém pode ter para se emendar dos vícios é o cultivo das virtudes que lhes são opostas. A expressão "conservação da caridade" deve ser entendida como enquadrada neste mesmo contexto, pois na vida da graça a caridade é o vínculo que une entre si todas as demais virtudes.

Porém, logo a seguir, o próprio São Bento nos diz que todo o aparente rigor de sua regra é provisório, pois ele se ordena a uma vivência mais profunda da vida da fé, à qual porém ele acena em termos genéricos e que corresponde, no que vimos descrevendo nestas notas, à vida em que a realidade a que chamamos de contemplação cai se tornando sempre mais dominante:

"Devemos, pois",

diz São Bento,

"constituir uma escola
de serviço do Senhor.
Nesta instituição esperamos
nada estabelecer de áspero ou de pesado.
Mas se aparecer alguma coisa
um pouco mais rigorosa,
ditada por motivo de eqüidade,
para emenda dos vícios
ou conservação da caridade,
não fujas logo,
tomado de pavor,
do caminho da salvação,
que nunca se abre
senão por um estreito início.
Mas, com o progresso da vida monástica e da fé,
dilata-se o coração
e com inenarrável doçura de amor
é percorrido o caminho dos mandamentos de Deus".

Prólogo da Regra 45-49

Da mesma forma, no último capítulo de sua regra, São Bento nos avisa de novo que através dela ele se preocupou principalmente em legislar sobre o princípio da vida monástica, isto é, sobre o início da própria vida cristã vivida no contexto de um mosteiro. Porém, ao mesmo tempo ele nos dá muitas vezes a entender que o fêz de tal modo que aquele que a tiver realizado acabará por encontrar, através dela mesma, alguma coisa de maior sobre o que São Bento não quis legislar mas para o qual ele quis ordenar a sua legislação e que ele tinha em vista quando escreveu a sua regra. Neste último capítulo ele fornece algumas indicações sobre onde o monge que estiver se aproximando disto a que se ordena a sua regra poderá encontrar uma orientação mais explícita; inútil dizer que esta orientação lhe será de pouca utilidade prática se antes ele não tivesse se conformado ao modo de vida prescrito pela regra, pois se assim não o fosse, São Bento certamente já teria orientado seus monges a procuraram estas outras fontes em vez de convidá-los primeiramente à observância de sua regra. Mas àqueles que já observam a sua regra e

"se apressam para a pátria celeste",

ele recomenda em especial as Conferências de João Cassiano e as Vidas dos Padres do deserto; ora, as Conferências de Cassiano são um texto que se abre, em sua primeira conferência, com uma dissertação explícita sobre a contemplação como fim do monge.

"Escrevemos esta regra",

diz São Bento,

"para demonstrar que os que
a observamos nos mosteiros
temos alguma honestidade de costumes
ou algum início de vida monástica.
Além disso, para aquele que se apressa
para a perfeição da vida monástica,
há as doutrinas dos Santos Padres,
cuja observância conduz o homem
ao cume da perfeição.
Que página, com efeito,
ou que palavra de autoridade divina
no Antigo e Novo Testamento
não é uma norma retíssima de vida humana?
Ou que livros dos Santos Padres católicos
ressoam outra coisa senão
o que nos faça chegar,
por caminho direito,
ao nosso Criador?
E também as Conferências dos Padres,
(escritas por Cassiano),
as Instituições (dos Cenobitas,
também escritas por ele),
as suas vidas
(as vidas dos Padres do deserto),
e também a regra de nosso santo pai Basílio,
que outra coisa são senão
instrumentos das virtudes dos monges
que vivem bem e são obedientes?
Tu, pois, quem quer que sejas,
que te apressas para a pátria celeste,
realiza com o auxílio de Cristo
esta mínima regra de iniciação
aqui escrita e então, por fim,
chegarás, com a proteção de Deus,
aos maiores cumes da doutrina
e das virtudes de que falamos acima".

Regra, c. 73

12.

Exemplo da Encíclica Mediator Dei.

Pode-se ainda ilustrar o assunto de que estamos tratando através de uma passagem da encíclica Mediator Dei de Pio XII sobre a Liturgia. Esta encíclica, juntamente com a Mistici Corpori Christi sobre o mistério da Igreja, escrita também por Pio XII quase à mesma época, são dois dos mais importantes documentos pontifícios de todos os tempos, e que praticamente assinalaram com uma década de antecedência o caminho que seria seguido pelo Concílio Vaticano II.

Na Mediator Dei Pio XII nos fala da natureza e da profundidade do sacrifício da Missa e exorta todos os fiéis a uma mais freqüente e íntima participação da mesma:

"Oxalá todos correspondam,
livre e espontaneamente,
a estes solícitos convites da Igreja",

diz Pio XII.

"Oxalá que os fiéis,
até diariamente, se lhes é possível,
participem do divino sacrifício,
não só espiritualmente,
mas também pela comunhão
do Augusto Sacramento,
recebendo o corpo de Jesus Cristo,
oferecido por todos ao eterno Pai.
Estimulai, pois,
veneráveis irmãos no episcopado,
nas almas confiadas aos vossos cuidados,
a fome apaixonada e insaciável de Jesus Cristo;
que por vossos ensinamentos,
adensem-se à roda dos altares
turmas de crianças e jovens
que vão consagrar ao divino Redentor
as suas pessoas, a sua inocência,
a sua entusiástica atividade;
aproximem-se numerosos os esposos,
para que, nutridos da sagrada mesa
e graças a ela,
possam educar seus filhos no sentido
e na caridade de Jesus Cristo;
em suma,

`Convidai e obrigai a entrar',

como diz o Evangelho,
todos os homens,
de qualquer classe que sejam,
porque este é o pão da vida,
de que todos têm precisão".

Mediator Dei, n. 115

Feitas estas exortações, o pontífice passa a dar aos bispos algumas orientações sobre como favorecer a ascese cristã entre os fiéis, pois sem o cultivo da vida espiritual, diz Pio XII, não lhes será possível participarem do sacrifício eucarístico "sem que as preces litúrgicas se reduzam a um vão ritualismo" (n. 170). A ascese cristã, diz Pio XII, "aquela que dispõe o homem a tomar parte mais frutuosa nas sagradas funções" do sacrifício eucarístico, embora se possa realizar sob múltiplas formas,

"Tendem todas,
embora de modo diverso,
à conversão e à orientação para Deus de nossa alma,

à expiação dos pecados
e à prossecução das virtudes,
habituando-nos à meditação das verdades e tornando-nos o espírito mais pronto
para a contemplação dos mistérios

da natureza humana e divina de Cristo".

Mediator Dei, n. 170

Deste modo, Pio XII exorta aos bispos que, "no seu zelo pastoral, recomendem e encorajem o povo que lhes é confiado" à ascese cristã, "da qual brotarão sem dúvida frutos salutares". Que neste exercício da vida espiritual "tome parte o maior número possível não só do clero como também dos leigos" (n. 173).

Porém o que mais nos interessa, aquilo que é o próprio motivo pelo qual estamos trazendo o texto desta encíclica para ilustrar como exemplo o comentário destas notas, é a observação que Pio XII faz logo em seguida a respeito da natureza do que se denomina ascese:

"Relativamente aos vários modos
como se costumam praticar estes exercícios,
seja a todos bem sabido e claro
que na Igreja terrestre,
tal como na celeste,
há muitas moradas,
e que a ascética não pode ser
monopólio de ninguém".

Mediator Dei, n. 174

Na Igreja terrestre, diz Pio XII, tal como na celeste, há muitas moradas, "e a ascética não pode ser monopólio de ninguém". Pio XII volta a estabelecer um princípio da vida espiritual já bem conhecido há muitos séculos na tradição cristã. A ascética, aquela parte da vida espiritual que nos prepara para a contemplação, não é um caminho único, e por isso não só não pode ser monopólio de ninguém, como inclusive este fato deve ser levado em conta, diz a Encíclica, pelos bispos que governam a Igreja aos quais cabe o dever de favorecê-la e fomentá-la na vida dos fiéis. Assim como houve diversas escolas de espiritualidade, ainda muitas haverá, e tantas até poderia haver quantos cristãos houvessem, e muitas das possíveis jamais chegarão a se realizarem concretamente. Deve-se notar também que isto mesmo que a encíclica diz da ascese ela não o diz, e não o diz não porque não se lembrou, mas porque o mesmo já não se pode dizer, da realidade plena da contemplação, pois ela é a mesma para a qual tendem todas estas diversas formas de ascese.

Isto não significa, porém, que qualquer que seja a forma com que se organize a vida espiritual esta seja correta. Ela deve, em primeiro lugar, como o declara também a Encíclica, ordenar seus meios coerentemente de modo a conduzir efetivamente ao seu objetivo:

"Disto será índice",

continua Pio XII,

"a eficácia com que tais exercícios

  • conduzam as almas
    a amar sempre mais
    e promover o culto divino;
  • levem os fiéis a participar nos sacramentos com maior fervor;
  • e a ter as coisas santas na devida veneração e respeito".

Mediator Dei, n. 175

Ademais, ainda que legítima, a escolha de uma determinada via de ascese não é algo que pode ser decidido com base em uma questão de gosto ou de capricho pessoal:

"É absolutamente necessário
que a inspiração com que alguém é levado
a professar certos e determinados exercícios
provenha do Pai das luzes,
origem de tudo o que é bom,
de todo dom perfeito",

Mediator Dei, n. 175

conclui Pio XII.

De fato, foi assim que surgiram na Igreja todas as correntes de espiritualidade mais conhecidas e muitas outras que foram sendo seguidas por um número mais restrito de pessoas sem terem se formalizado através de algum instituto ou em escritores de maior vulto. Nenhuma delas jamais surgiu pelo simples capricho de se inventar um novo caminho, mas foi o próprio Deus, o qual, dizem as Escrituras, deseja que "todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade" (1 Tim 2,4), quer diante das dificuldades especiais em que os homens se encontravam, sugeriu-lhes, pela própria luz da graça do Espírito Santo, a necessidade ou a conveniência de se abrir uma outra via.

13.

Exemplo de Santa Clara e São Bernardo diante da natureza.

Aqueles que participam da vida da Igreja já terão ouvido comentar alguma coisa a respeito das características que distinguem pelo menos algumas das escolas de espiritualidade que foram mencionadas. É conhecido o amor à pobreza que é característica dos franciscanos, a dedicação à liturgia dos beneditinos, o empenho no estudo e na pregação dos dominicanos, a importância da obediência entre os jesuítas, a vida de oração como carisma especial dos carmelitas. Vamos dar um exemplo, baseado em fatos históricos, que ilustra como um mesmo evento pode ser abordado por diversas formas de ascese sob ângulos aparentemente diversos e, no entanto, isto estar sendo feito para se alcançar precisamente um mesmo objetivo. Vamos contrastar como reagiriam, diante de uma mesma situação, um santo franciscano, um beneditino e os vitorinos.

Quando jovem, São Francisco era uma pessoa alegre e cheia de vida, apreciava a poesia e gostava muito de cantar. Após sua conversão ele não perdeu estas qualidades, mas, ao contrário, julgando que por meio delas poderia aproximar-se de Deus, censurou aqueles que o repreendiam quando o viam cantando. São Francisco, até o fim de sua vida, reproduziu em sua vida aquilo mesmo que já se lia há muito tempo em vários salmos do Antigo Testamento, louvando habitualmente a Deus pelas suas criaturas, e ensinando os seus companheiros a fazerem o mesmo. Entre seus escritos deixou-nos um Cântico ao Sol, uma das mais belas poesias de todos os tempos, na qual Deus é louvado pelo Sol e por todas as suas obras, às quais São Francisco chama de irmãos e de irmãs. Esta atitude, embora surja espontaneamente em todo autêntico cristão, pois é uma expressão daquela radiante felicidade que toma conta daqueles que vivem uma esperança já muito próxima do Céu que lhes faz ver toda a obra da criação e da graça sob o prisma de uma aprovação entusiástica, é também uma característica bastante marcante da ascese franciscana, tanto quanto também o é o espírito de pobreza. Sendo assim, é muito natural saber que encontra-se nas atas de canonização de Santa Clara, o depoimento de uma das primeiras irmãs franciscanas segundo o qual, todas as vezes que algumas irmãs tinham que ausentar-se do mosteiro, Santa Clara, como superiora, sempre lhes dirigia algumas admoestações. Nelas, porém, Santa Clara não as exortava no sentido de que tomassem cuidado com os ladrões e os salteadores, muito comuns naquela época, nem para que não se esquecessem de procurarem em tempo um abrigo quando já percebiam que se aproximava a noite. Antes, muito ao contrário, suas recomendações eram inteiramente de outra ordem. O que era verdadeiramente importante aos seus olhos, o objeto de suas verdadeiras preocupações, diz-nos este testemunho, era que as irmãs se afligissem pelo caminho com outros problemas e, por causa disso, deixassem de reparar nas árvores lindas que pudessem surgir durante o percurso:

"Quando ela nos mandava realizar
algum serviço fora do mosteiro",

diz este depoimento,

"sempre nos advertia no sentido de que
quando víssemos árvores lindas,
cheias de flores e frondosas pelas sua folhagens,
nunca nos esquecêssemos de louvar a Deus".

Certamente esta é a atitude de uma alma muito pura quando se vê colocada diante do espetáculo da natureza. O que nem sempre é evidente, porém, é que, mesmo sem sair de dentro da perspectiva cristã, esta atitude não é a única logicamente possível. Vejamos, por exemplo, como São Bernardo, um beneditino quase contemporâneo de São Francisco, reagiu diante dos mesmos espetáculos da natureza.

A regra de São Bento estabeleceu, para propiciar um ambiente de oração nos mosteiros, uma prática habitual do silêncio. Algumas das disposições contidas na regra a este respeito podem hoje a alguns parecer algo fora de propósito, mas deve-se lembrar aos que assim lhes possa parecer que estas disposições sobre o silêncio não são leis colocadas como preceitos de validade absoluta, como algo que devesse ser observado por toda a sociedade, sempre e em qualquer circunstância, como os preceitos do decálogo de Moisés. O silêncio tal como é prescrito pela regra beneditina não é algo que poderia ter este alcance universal sequer na próprio época de São Bento; ele foi concebido para ser observado apenas dentro do ambiente dos mosteiros de São Bento, onde também foram criadas uma série de outras disposições que não existiam, e não existem ainda hoje, no mundo secular, as quais, em conjunto com a importância que foi atribuída ao silêncio, acabam por tornar estes mosteiros locais onde pode-se encontrar uma paz profunda e um ambiente propício à oração que o mais das vezes é em vão que se os procuram fora deles. No sexto capítulo de sua regra é assim que São Bento se refere ao silêncio:

"Façamos o que diz o profeta:

`Eu disse,
julgarei os meus caminhos
para que não peque pela língua.
Pus uma guarda à minha boca,
emudeci, humilhei-me
e calei as coisas boas'.

Salmo 38, 2-3

Aqui mostra o profeta que,
se às vezes se devem calar mesmo
as boas conversas,
por causa do silêncio,
quanto mais não deverão ser suprimidas
as más palavras?
Por isso, ainda que se trate
de conversas boas,
santas e próprias a edificar,
raramente seja concedido
aos discípulos perfeitos
licença de falar,
por causa da gravidade do silêncio.
Se é preciso pedir alguma coisa ao superior,
que se peça com toda a humildade
e submissão da reverência.
Já quanto às brincadeiras,
palavras ociosas e que provocam riso,
condenamo-las em todos os lugares
a uma eterna clausura;
para tais palavras não permitimos
ao discípulo abrir a boca".

Embora tanto São Francisco como São Bento, cada um ao seu modo, procurassem através de determinadas disposições cultivar um mesmo espírito de oração e de louvor a Deus, São Bento parte, aqui, de uma posição diversa daquela de que partia São Francisco com suas canções e sua alegria efusivamente manifestada. Como resultado destas diversas disposições iniciais temos que São Bernardo, monge beneditino, ao contrário de Santa Clara, tivesse o hábito de não reparar na natureza para que isto não o distraísse de seu recolhimento interior e do louvor de Deus. Em sua biografia encontramos escrito que certa vez, obrigado a fazer uma viagem em que era necessário fazer uma caminhada de um dia inteiro bordejando as margens do lago de Lausanne onde hoje é a Suíça, sobrevindo a noite, ao comentarem seus colegas de jornada a respeito daquele lago, um dos mais belos espetáculos do planeta, ficaram estupefatos em perceber que Bernardo não havia visto nem sabia de que lago se tratasse. Após seu primeiro ano como monge São Bernardo também não soube dizer se o teto do local onde se recolhia para dormir durante aqueles doze meses era de pedra ou de madeira, e também julgava que havia apenas uma janela na igreja onde entrava para celebrar o ofício divino diversas vezes por dia todos os dias, quando na verdade havia muitas.

14.

Exemplo de Hugo de S. Vitor diante da natureza.

Vimos a atitude de Santa Clara diante da beleza de uma árvore, inspirada no exemplo de São Francisco. Examinamos a de São Bernardo, diante de um dos lagos mais belos da Terra. Com Hugo de São Vitor nos deparamos com uma terceira atitude diante da mesma situação. Embora haja pouquíssimos dados biográficos sobre Hugo de São Vitor, muitíssimo menos do que os que existem sobre Santa Clara e São Bernardo, suas obras, entretanto, por trás de uma aparente impessoalidade, são um perfeito espelho de sua alma, mais até do que o seria uma sua possível biografia. Através destes escritos podemos reconstituir, com razoável probabilidade, como Hugo se comportaria, na condição de um cristão que busca a Deus, se se visse diante de uma linda árvore ou de um belíssimo lago.

Se se encontrasse diante de um belíssimo lago, Hugo de S. Vítor provavelmente nem louvaria imediatamente a Deus, nem, porém, se negaria a contemplar o lago. Começaria provavelmente a refletir. Como é grande este lago, pensaria. Quantas gotas de água haverá nele? Pensaria em um número pelo qual poderia enumerá-las, para reconhecer em seguida tratar-se de uma tarefa humanamente impossível. No entanto, continuaria Hugo, Deus certamente conhece, em sua sabedoria, o número exato, tão claramente como o faria um homem diante de duas ou três frutas. É uma sabedoria admirável, tão mais admirável quanto mais se considera a impossibilidade humana de alcançá-la. E, no entanto, Deus não conhece apenas quantas gotas há neste lago, como também, à diferença do homem diante das três frutas, criou-as a todas, tirando-as do nada:

"Que potência não seria necessária,
quando nada existia,
para fazer com que do nada algo existisse?
Que sentido poderá compreender",

escreve Hugo,

"quanta virtude não haverá
no se fazer do nada uma única coisa,
ainda que seja a mínima de todas?
Se, portanto, há tanta potência
no se fazer do nada uma só coisa,
ainda que pequena,
como não se poderá compreender
quão grande deveremos estimar a potência
que criou tamanha multidão de seres?
De que tamanho é esta multidão?
Quantos são?
O número das estrelas do céu,
a areia do mar, o pó da terra,
as gotas da chuva, as penas das aves,
as escamas dos peixes, os pelos dos animais,
a grama dos campos,
as folhas e os frutos das árvores,
e os números inumeráveis dos demais inumeráveis,
qual é a magnitude desta grandeza?
Mede a corpulência das montanhas,
o curso dos rios, o espaço dos campos,
a altura do céu, a profundidade do abismo.
Admira, pois não o és capaz;
mas justamente não o sendo capaz
é que melhor te admirarás".

Tratado dos Três Dias

Este lago, pois, consideraria Hugo de S. Vitor, é na realidade um caminho que Deus colocou diante dos homens para que eles pudessem alcançar um vislumbre da sabedoria divina. O lago é belo, diria Hugo; mais bela ainda é, porém, a sabedoria que se revela através dele. Os profetas do Velho Testamento dizem também a mesma coisa; eles haviam-se dado conta de que a natureza havia sido oferecida aos homens precisamente para isto, para abrir-lhes um caminho para a contemplação da sabedoria divina. De fato, eles nos deixaram escrito:

"Quão magníficas são as tuas obras,
ó Senhor;
mais profundos, porém,
são os teus pensamentos".

Salmo 91

De onde que os salmos nos ensinam a nos utilizarmos da magnificência das obras de Deus para termos um vislumbre da maior profundidade de seus pensamentos.

"Todo o mundo sensível",

diz Hugo,

"é como um livro escrito
pelo dedo de Deus,
e cada uma de suas criaturas
são como figuras,
não imaginadas pela opinião humana,
mas instituídas pelo arbítrio divino,
para a manifestação da sabedoria
do Deus invisível.
Não há ninguém para quem
as obras de Deus não sejam admiráveis",

Tratado dos Três Dias

mas devemos saber ultrapassar nelas a beleza de suas aparências para nos remontarmos ao conhecimento da perfeição de seu Criador. Como nos será possível, de fato, amar a Deus como nos foi prescrito, com toda o nosso coração, com toda a nossa alma, com todo o nosso entendimento, com todas as nossas forças, se dEle só lhe conhecemos um nome?

"Deus, em si mesmo,
não pode ser visto;
fêz, porém, com que pudesse ser visto
pelas coisas que fêz,
pois, como diz o Apóstolo,

`as coisas invisíveis de Deus
podem ser vistas pela criatura,
pelo entendimento das coisas
que foram criadas'.

Rom. 1

Se quisermos, pois,
que Deus habite em nós
permanentemente pelo amor,
devemos construir em nós
uma casa para a sabedoria".

Tr. Três Dias/De Arca Noe

Venham, pois, ver este lago, mas não prestem demasiada atenção àquilo que apenas os olhos enxergam, pois há nele uma beleza maior que se nos revela, invisível aos olhos da carne. A figura do lago é apenas uma aparência; Deus, porém, colocou aqui toda esta água para que, através dela, os homens pudessem ter um vislumbre de Sua própria mente. Devemos, pois, saber nos aproveitar dele, pois o lago nos oferece um modo de conhecer a Deus, e só podemos amar aquilo que, de alguma forma, o conhecermos.

"Gostaria de discernir estas coisas
com tanta delicadeza
para poder narrá-las"
a todos os homens,

diz ainda Hugo no Tratado dos Três Dias; infelizmente, porém, aqueles que passam por aqui olham para o lago e não vêem mais do que água. É possível que amem a Deus desta maneira? Pois, agindo deste modo, parece que, efetivamente, não o conhecem.

15.

Comparação entre as diversas formas de espiritualidade.

Acabamos de examinar um exemplo sobre a diversidade das atitudes que diferentes formas de se ordenar a ascese cristã podem manifestar diante de uma mesma situação. Deparando-se com a beleza da criação, Santa Clara, São Bernardo e Hugo de São Vítor tomam posições diversas que dependem, em última análise, do modo como foi concebida a orientação de sua ascese em direção à contemplação, pela qual o homem, através do exercício das virtudes teologais, se une, tanto quanto lhe é possível neste mundo, a Deus Criador e Redentor. Os exemplos poderiam multiplicar-se tanto nos fatos como nas possibilidades, pois, conforme afirma Pio XII,

"assim como na Igreja celeste
há muitas moradas,
assim também na Igreja terrestre
a ascética não é monopólio de ninguém".

No entanto, mesmo diante desta sentença de Pio XII, a consideração dos três exemplos que foram apresentados levará alguns a se perguntarem se, examinados mais atentamente, não seria um deles, ou algum outro, um caminho mais correto e por isto talvez mais preferível do que os demais.

Supomos que a resposta a esta pergunta só poderia ser dada com honestidade subdividindo-a em dois aspectos. Do ponto de vista especulativo, quer nos parecer que a posição de Hugo de São Vitor é mais correta, por se aproximar mais do conjunto dos ensinamentos do Novo Testamento. De fato, o Novo Testamento, e nele, principalmente Jesus e São Paulo, apontam de modo indiscutível que a caridade, o amor sobrenatural por Deus acima de todas as coisas, uma virtude cuja sede é a vontade, não só é a maior de todas as virtudes como também é aquela sem a qual a posse de todas as outras, inclusive a fé, seria inútil. No entanto, apesar de afirmações tão claras neste sentido, o Novo Testamento fala e exorta com muito mais freqüência à virtude da fé, cuja sede é a inteligência, do que ao amor, como se quisesse, pelo número de referências, contrabalançar a atenção que deve ser dada efetivamente a ambas estas virtudes. Neste sentido, do ponto de vista especulativo, por se aproximar mais da própria posição do texto sagrado, Hugo de São Vítor parece situar-se mais corretamente.

Do ponto de vista prático, porém, a situação é inteiramente diversa, como pode reconhecer-se através dos próprios textos de Hugo de São Vitor, pois ele mesmo diz que possuímos a Deus pelo amor, e que, portanto, do ponto de vista prático não importa o caminho trilhado desde que, através dele, o homem efetivamente alcance o amor de Deus. Diz, de fato, Hugo de São Vitor no segundo livro dos Mistérios da Fé Cristã:

"A Escritura nos manifesta
o quanto devemos amar
o nosso bem que é Deus.

Não preceituou apenas que o amássemos,
ou que amássemos apenas a Deus,
mas que o amássemos o quanto pudéssemos.

A tua possibilidade será a tua medida;
quanto mais o amares, mais o terás".

Toda forma de ascese legítima conduz, efetivamente, a uma profunda vivência do primeiro e maior de todos os mandamentos, caso contrário não seria uma forma autêntica de espiritualidade, e o grau de perfeição com que ela o faz não depende somente, e muitas vezes depende apenas secundariamente, de sua maior ou menor correção examinada do ponto de vista especulativo. Além da própria soberana liberdade de que Deus se utiliza ao conceder-nos a sua graça, muitos outros fatores, psicológicos, culturais, circunstanciais e inclusive espirituais, não apenas do indivíduo como também do meio onde ele vive, podem estar envolvidos em cada caso individual. De onde que deve considerar-se bem aventurado o homem que tiver podido encontrar aberta para si qualquer via concreta pela qual ele pode deparar-se com uma possibilidade real de alcançar uma vivência profunda do mandamento da caridade, pois virá a possuir a Deus apenas pelo amor que efetivamente tiver vivido, independentemente do grau de perfeição especulativa do caminho que o tiver conduzido até aí.

16.

Motivação para uma determinada forma de ascese.

Deve-se dizer também que o fato de que todas as formas legítimas de ascese conduzem a um mesmo fim não significa que a escolha entre elas possa ser reduzida a uma questão de simples preferência pessoal. Ao contrário, razões de caráter mais elevado, motivadas pela própria virtude da caridade, deveriam orientar a escolha. Todas as formas de ascese, efetivamente, possuem, por si mesmas ou pelo contexto em que se encontram inseridas, peculiaridades secundárias mas importantes que as fazem diferir entre si e que, conforme as circunstâncias, podem ser avaliadas de modo diverso por aqueles que são movidos, em suas decisões, pela caridade.

No caso que é o objeto de consideração particular destas notas, aquela forma de vida espiritual delineada principalmente por Hugo e Ricardo de São Vitor a que se chamou de escola vitorina, e que nos parece ser muito claro que tenha sido seguida também fora dela em seus traços essenciais por outros santos da Igreja como Santo Tomás de Aquino entre os dominicanos e Santo Antônio de Pádua entre os franciscanos, ela faz, dentre outras coisas, do estudo, orientado segundo uma determinada pedagogia, uma forma de ascese. Uma razão motivada pela caridade para abraçar esta forma de vida não seria a inclinação pessoal pelo estudo, mas a aptidão especial que tal forma de vida confere para a prática do mandamento que Cristo tão insistentemente recomendou a seus discípulos, a de que ensinassem tudo aquilo que Ele lhes havia ensinado. Do bem que isto pode resultar são exemplo tanto o próprio Hugo de São Vitor como Santo Tomás de Aquino, cuja influência benéfica na história da Igreja é impossível de ser avaliada nas curtas páginas destas notas e que, ao que tudo indica, está ainda muito longe de terminar.

17.

Três características da escola vitorina de espiritualidade.

Estas notas pretendem tecer alguns comentários a respeito do Opúsculo sobre o Modo de Aprender de Hugo de São Vitor, um texto que possui características marcantes da espiritualidade da escola de São Vitor. Por este motivo, para chegarmos ao texto mesmo do opúsculo, apontamos primeiramente algumas das escolas de espiritualidade da tradição cristã, explicamos no que elas consistem, no que diferem e o que possuem em comum, qual a razão de existirem e a possibilidade de muitas outras ainda virem a existir. Mostramos depois como a escola de São Vitor surgiu e se situa historicamente entre as diversas formas de ascese cristã.

Antes de abordarmos o próprio texto do Opúsculo sobre o Modo de Aprender, porém, na impossibilidade de delinear todo o conjunto da ascese que nos é descrita pelos vitorinos, queremos pelo menos chamar a atenção sobre três de suas características mais expressivas e que ela possui como que por excelência.

18.

Primeira característica.

A primeira das características da escola vitorina é um sentido singularmente perfeito de equilíbrio e atenção para com os diversos aspectos da psicologia humana envolvidos no esforço de ascese e, de modo muito especial, uma profunda reverência e sensibilidade pelo trabalho simultâneo a ser empreendido pelas faculdades da inteligência e vontade. A espiritualidade vitorina quer vencer simultaneamente tanto o desejo do mal como a ignorância do bem, busca a Deus tanto pelo amor como pela sabedoria, está perfeitamente consciente de que o amor não floresce senão no solo da fé, ao mesmo tempo em que vê claramente que é o amor que conduz a fé à sua plena vida.

19.

Segunda característica.

A segunda característica da escola vitorina é o papel de singular importância que o estudo das Sagradas Escrituras desempenha no desenvolvimento da vida espiritual, papel que, quase como que num desenvolvimento natural da característica precedente, os vitorinos não apenas nos deram o exemplo pela vivência como também a explicação pela doutrina. Percebe-se claramente nos escritos dos vitorinos que estamos diante de pessoas que não apenas amavam as Escrituras, como também que se alimentavam delas num sentido impressionantemente semelhante às exortações que, desde o início do século 20, os Sumos Pontífices da Igreja Católica têm feito a todos os fiéis para que se alimentassem da Sagrada Eucaristia. Não conhecemos nenhum outro exemplo tão luminoso, em toda a história da Igreja, daquele princípio que o Concílio Vaticano II enunciou em sua constituição Dei Verbum sobre as Sagradas Escrituras:

"A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras
da mesma forma como o próprio corpo do Senhor,
já que, principalmente na Sagrada Liturgia,
sem cessar toma tanto da palavra de Deus
como do corpo de Cristo
o pão da vida e o distribui aos fiéis".

Const. Dei Verbum, 21

Os escritos dos vitorinos nos dão razões profundíssimas do motivo pelo qual isto é exatamente assim, um exemplo de como isto se torna realidade e nos mostram como isto, inserido dentro de um adequado contexto, conduz à vida de contemplação.

Sem a intenção de entrar neste que é inteiramente outro assunto, recolhemos algumas passagens, a título de ilustração, dos sermões de Hugo de São Vitor, em que ele se refere às Escrituras:

SERMO 4 :

"Devemos buscar nosso alimento",

diz Hugo de São Vitor,

"pelo estudo das Escrituras.
Os maus não apetecem este alimento,
conforme está escrito:

`Sua alma aborrecia todo alimento,
e chegaram às portas da morte'.

Salmo 106, 18

Ele, porém, é dado aos bons,
conforme está escrito:

`Enviou a sua palavra para curá-los,
para livrá-los da ruína'.

Salmo 106, 20

SERMO 5 :

"Devemos preparar nosso alimento
pelo mais frequente e diligente estudo
e meditação das Sagradas Escrituras.
Por meio deste alimento a alma se robustece,
por ele engorda,
por ele adquire força para a boa obra,
e por ele é conduzido sem defeito à perfeição".

SERMO 11 :

"Nossa dieta são as Sagradas Escrituras,
que é servida para nós de modos diversos,
na medida em que nos é ensinada
conforme a diversa capacidade dos ouvintes.
Ora ela é servida aos ouvintes e aos leitores
pela história, ora pela alegoria,
ora pela moralidade, ora pela anagogia;
ora pela autoridade do Velho Testamento,
ora pela autoridade do Novo;
ora envolvida no véu do mistério,
ora em sua forma pura, límpida e aberta".

SERMO 21 :

"A boca é o símbolo da inteligência.
Assim como recebemos o alimento pela boca,
assim também é pela virtude da inteligência
que recebemos o alimento da divina leitura.
Os dentes significam a meditação,
pois assim como pelos dentes trituramos
o alimento que recebemos,
assim também pelo ofício da meditação
discutimos e dividimos mais sutilmente
o pão recebido pelo estudo das Escrituras".

SERMO 85 :

"Vejamos agora, irmãos caríssimos,
se somos verdadeiramente da linhagem
de nosso bem aventurado Pai Santo Agostinho,
isto é, se somos seus imitadores tal como o devemos ser.
Vejamos se, contemplando o seu exemplo,
amamos a palavra de Deus,
estudando-a, meditando-a,
escrevendo sobre ela,
ensinando-a conforme a graça
que nos foi concedida;
se imitamos, enfim, seu exemplo,
vivendo com todas as nossas forças
sua honestíssima religião".

SERMO 95 :

"O Senhor disse, falando a Moisés
sobre a mesa da proposição
que este deveria fazer:

`Farás também uma mesa de pau de cetim,
que tenha dois côvados de comprimento,
um côvado de largura
e um côvado e meio de altura.
E cobri-la-ás de ouro puríssimo,
e far-lhe-ás um lábio de ouro em roda...
... e porás sempre sobre a mesa
os pães da proposição na minha presença'.

Êxodo 25, 23/24/30

O que é esta mesa, caríssimos,
senão a Sagrada Escritura?
Pois todas as vezes em que
ela nos exorta a bem viver,
tantas são as vezes em que
ela nos oferece o pão da vida.
Lemos que esta mesa é feita de pau de cetim,
pois a verdade da Sagrada Escritura
não se corrompe pelo envelhecimento.
À semelhança da mesa da proposição,
a Escritura também possui dois côvados de comprimento,
pois nos ensina as duas partes da fé,
aquela pela qual cremos no Criador
e aquela pela qual cremos no Redentor.
Possui um côvado e meio de altura
quando nos ensina qual é a altura da esperança
e o início da contemplação.
Possui um côvado de largura
quando nos ensina qual é a largura da caridade.
Esta mesa espiritual é inteiramente coberta
de ouro puríssimo,
pois refulge em toda a sua extensão
não apenas pelos milagres,
como principalmente pela caridade da sabedoria celeste.
O lábio de ouro em sua roda são
os ensinamentos dos santos doutores,
não apenas porque a circundaram
em toda a sua extensão
sem nada haverem deixado
que não tivessem observado,
como também porque se apoiaram
em todos os seus ângulos
para mostrarem aos maus a sua malícia
e aos bons ensinarem o melhor.
Os pães da proposição
são as palavras da sabedoria celeste,
corretamente chamados de pães da proposição,
porque a doutrina da salvação
deve ser proposta sempre a todos os fiéis
e nunca deve faltar na Igreja a palavra de auxílio,
que o Senhor quis que abundasse incessantemente
até o fim dos tempos para todos aqueles
que tem fome e sede de justiça
e que se manifestasse ao mundo
através dos pregadores da verdade
que vivem em sua presença".

Deve-se acrescentar a estas citações a observação segundo a qual esta mesma coleção dos 100 Sermões de Hugo de São Vitor, organizada por ele mesmo, embora contenha inúmeras exortações à prática das virtudes, conforme seu autor no-lo indica no prólogo e o torna patente ao longo da sua obra, não foi escrita, entretanto, tendo como seu principal objetivo a exortação à virtude, mas sim o de propor aos seus ouvintes algo pelo qual pudesse exercitar-lhes o entendimento sobre o modo pelo qual o homem pode aproximar-se das Escrituras para utilizá-las em favor de seu crescimento espiritual.

20.

Terceira característica.

Uma terceira característica da espiritualidade vitorina está no papel que a escola e o estudo desempenham na ascese cristã. Hugo de São Vitor foi provavelmente, entre os grandes teólogos da tradição cristã, aquele que mais profundamente se preocupou com o problema pedagógico. Pode-se dizer que ele desenvolveu os princípios de uma pedagogia em que o estudante é como que naturalmente conduzido a uma busca consciente e eficaz da santidade e em que o estudo, conduzido segundo certos critérios ao mesmo templo amplos e claros, não existe apenas para desenvolver determinadas habilidades, fornecer conhecimentos gerais ou mesmo o conhecimento da ascese cristã, mas ele próprio se torna um dos instrumentos desta ascese. Fora dos vitorinos houve na Igreja muitos santos que por um carisma pessoal seguiram em suas vidas estes mesmos princípios; entre eles são muito nítidos os exemplos que nos foram deixados neste sentido por Santo Tomás de Aquino e Santo Antônio de Pádua. Os vitorinos, porém, foram aqueles que procuraram, ademais disso, investigar explicitamente os próprios princípios pelos quais isto se torna possível, para assim não apenas darem o exemplo como também ensinarem como se fazia. Já tivemos a oportunidade de comentar que todo este esforço dispendido por estes que assim procederam não se deveu a um capricho pessoal ou a uma paixão desenfreada pelo estudo; tratavam-se, ao contrário, de homens santos motivados para tanto pelo desejo de serem fiéis ao mandamento de ensinar que nos foi deixado por Cristo, e que Ele mesmo no-lo pediu como prova de amor.

21.

Uma dificuldade a respeito do título do Opúsculo sobre o Modo de Aprender.

Não se conhece a história do Opúsculo sobre o Modo de Aprender, sobre como foi escrito ou como foi utilizado. Ele simplesmente nos foi transmitido como constando entre as obras de Hugo de São Vitor.

Seu nome, conforme impresso na Patrologia Latina de Migne, é "De Modo Dicendi et Meditandi", o que significa: "Sobre o Modo de Dizer e de Meditar". Entretanto, considerando o seu conteúdo, e considerando que na língua latina entre as palavras que traduzem os verbos dizer e aprender existe apenas a diferença de um "s", cremos que provavelmente em algum momento esta pequena letra foi suprimida por engano, não necessariamente por parte dos editores da Patrologia, mas talvez até mesmo por algum dos primeiros copistas medievais, e que o verdadeiro nome do opúsculo seja "De Modo Discendi", ou "Sobre o Modo de Aprender".

Seja como for, é o título "Sobre o Modo de Aprender" aquele que nos apresenta de modo mais fiel o conteúdo deste opúsculo. O pequeno trabalho se inicia com uma declaração sobre qual é o "princípio do aprendizado", para logo em seguida versar em sua quase totalidade sobre o estudo e o aprendizado.

No final do trabalho o autor anuncia que irá tratar do tema da eloqüência e das obrigações que a acompanham. Estes últimos parágrafos poderiam justificar, aparentemente, o título tal como se encontra impresso na Patrologia. Observada mais atentamente, porém, esta décima segunda e última subdivisão do opúsculo trata na realidade daqueles que desejam "conhecer e ensinar", e daqueles que desejam "ensinar o bem". Seu verdadeiro tema é, portanto, o ensino, o outro lado do aprendizado. Este tema parece aí ter entrado disfarçado sob as aparências da eloqüência porque na antigüidade a eloqüência era uma qualidade tida por todos em elevadíssimo apreço, e mesmo por muitos quase que compulsivamente procurada como uma obrigação e como um bem que tivesse valor por si mesmo. Hugo de São Vitor, como sábio professor, reconhecia a presença desta visão distorcida em muitos dos alunos que se lhe apresentavam e assim quis, no final deste opúsculo, inserir o bem da eloqüência no contexto da atividade de ensinar, mostrando que sem isto ela se torna algo destituído de valor. Na realidade, todo o valor perene de qualquer ensino está quase que inteiramente concentrado no seu conteúdo de verdade, e só muito secundariamente na sua eloqüência.

22.

Natureza do Opúsculo sobre o Modo de Aprender.

A maioria dos doze subtítulos em que se subdivide o Opúsculo sobre o Modo de Aprender são passagens que se encontram também em outras obras mais extensas de Hugo de São Vitor. Merece uma menção especial o fato de que um número considerável das mais importantes se encontram no Comentário ao Eclesiastes. Embora não se saiba nada a respeito da história deste opúsculo, a julgar pelas características da psicologia do ensino ministrado por Hugo de S. Vitor, parece-nos ser mais provável que tenha sido ele próprio que, depois de haver escrito as outras obras em que também se encontram estas passagens, as tenha compilado reunindo-as neste opúsculo para que servissem aos estudantes da escola de São Vitor como pontos de referência que não conviria serem perdidos de vista.