OS PRESSUPOSTOS DO
APRENDIZADO

- Terceira Parte -




32.

Relação entre humildade e contemplação.
Necessidade da humildade e do respeito ao semelhante para a contemplação.

Na continuação destas notas vamos mostrar, com maior detalhe, a natureza da necessidade da humildade como princípio do aprendizado. Na medida em que o verdadeiro aprendizado se ordena à contemplação como a seu fim último, mostraremos, de modo especial, que a impossibilidade de se alcançar a contemplação sem a humildade não se deve a uma simples dificuldade, nem tampouco a uma dificuldade tão grande que se tornasse humanamente insuperável, mas ao fato de pretender-se, com isto, duas coisas simultaneamente contraditórias. Deste modo, qualquer pessoa que afirmasse estar em busca da contemplação sem possuir a humildade estaria apenas mostrando, com isto, o quanto é equivocada e ilusória a noção que ela possui sobre a natureza da contemplação, uma realidade que, não obstante o quanto esta pessoa possa dizer o contrário, ela efetivamente não deseja.

Assim, para não corrermos o risco de empreendermos uma caminhada tão absurda, uma caminhada na qual não se anda, apesar de sonhar-se que se anda, devemos examinar primeiro com verdadeira sinceridade o quanto possuímos desta virtude que estamos descrevendo. De modo especial, devemos examinar o grau de respeito que, independentemente de circunstâncias e de pessoas, estamos dispostos a dar a nosso semelhante. Não se pode dizer que alguém seja humilde se não se está verdadeiramente disposto a que este grau de respeito seja simplesmente total, absoluto e incondicional.

33.

Dificuldades dos homens para entenderem o respeito devido ao semelhante.

Existe uma dificuldade especial para se entender este último aspecto da questão da humildade que acabamos de mencionar porque a maioria dos homens age mais pela inércia do costume e modelando-se pelos hábitos que vê como aceitos pelo comum das pessoas do meio em que vive do que pela docilidade a uma verdade apreendida objetivamente pela inteligência. Neste sentido, na sociedade do final do século 20, o respeito incondicional pelo ser humano não é favorecido pelo que podemos observar ao nosso redor.

As constituições dos estados modernos repetem constantemente, mais do que nunca na história, a necessidade de se combater toda a espécie de discriminação e atentado à dignidade humana. As declarações de direitos humanos são incessantemente reafirmadas nos principais textos legislativos e nas convenções dos organismos que reúnem os responsáveis pelos destinos das nações. A julgar por estes fatos, pareceria nunca ter existido outra época em que houvesse tamanha disposição para se promover uma atitude de respeito para com o ser humano. No entanto, os meios de comunicação nos mostram continuamente exemplos de entes que, embora afirmem se amarem entre si, como deveriam ser os namorados, os esposos, os pais e os filhos, desrespeitam-se e se agridem entre si de forma incessante. Tais atitudes, em vez de causarem horror aos que as assistem, e uma extrema desonra para os que as divulgam, tendem a ser consideradas como eventos normais e às vezes até como um produto de alguma forma superior de sinceridade, quando, na realidade, objetivamente examinadas, deveriam ser tidas como atitudes inconcebíveis não só entre seres que se amam como até mesmo para com um estranho. Na vida real, ademais, não apenas vemos estes exemplos se reproduzirem com freqüência crescente fora de nossas famílias, como inclusive, e o mais comumente, dentro delas próprias. Além do desrespeito verbal ou físico, vemos também uma grande quantidade adicional de desprezo que os homens têm uns pelos outros e de que não possuem a coragem de demonstrá-lo diretamente àqueles aos quais o dirigem, mas apenas a terceiros. As pessoas que agem assim, obviamente, quer elas o entendam ou não, julgam que não podem elas mesmas serem desprezíveis no mesmo sentido em que estão desprezando os demais. Se quisermos ser humildes, porém, devemos parar definitivamente de agir desta forma, não propriamente porque tenhamos aprendido a dominar nossos impulsos, mas porque decidimos conscientemente descer do pedestal fantástico em que tivemos que nos colocar para que nos arrogássemos a liberdade de nos entregarmos com toda a naturalidade a tais procedimentos. Devemos nos decidir a nunca mais agredir ou desrespeitar, não só de fato, como também em nosso coração e em nossos pensamentos, qualquer pessoa que seja, em qualquer circunstância que possa vir a ocorrer, especialmente naquelas em que estamos com a razão, e propor-nos a isto não como quem se propõe a uma conquista a ser alcançada gradualmente, mas como quem toma uma resolução imediatamente definitiva. Não nos podemos permitir o luxo de pretender alcançar a realização deste propósito apenas próximos ao fim de nossas vidas, pois este não é, ao contrário do que pode parecer, o ápice da vida espiritual, mas apenas um dos mais elementares de seus primeiros princípios. Que sempre que qualquer pessoa nos procure, pois, seja quem for, seja ouvida com reverência e atenção; se não puder ser ouvida, que o seja por motivos técnicos, não por desprezo ou por desconsideração de importância. Seja quem for que a nós se dirija, procedamos assim por estarmos possuídos de uma nítida consciência de estarmos sendo interpelados por alguém que possui uma dignidade essencialmente idêntica à nossa. Ademais, se estamos efetivamente conscientes de nossa situação de indigência de graça, virtude e conhecimento, destituídos da hipótese absurda de uma compreensão divina do que há de essencial na ordenação do Universo, temos que dar atenção a quem quer que nos interpele, não apenas pelo respeito à sua dignidade humana, mas também porque não podemos prever de antemão que boas surpresas esta nos poderá trazer, sabendo de antemão que a verdade quase sempre costuma se apresentar pelos caminhos que os orgulhosos menos esperam. No tempo de Jesus, esperava-se pelo Messias como ao Rei dos reis, que de fato o foi; quem poderia supor, porém, que alguém com tais títulos e cuja vinda estava sendo efetivamente preparada pelo próprio Deus há quase dois mil anos, conseguiria sequer alugar uma vaga de quarto em uma aldeia minúscula como Belém, e tivesse que nascer entre os animais de um estábulo? Quem poderá avaliar quantas vezes Deus efetivamente já se nos apresentou deste modo em nossa vida e nós nada percebemos? Não é impossível que houvesse soldados aos pés da cruz de Cristo que, no mesmo instante em que o bom ladrão rogava e obtinha de Cristo um lugar para si no Paraíso, reclamassem da injustiça de terem sido transferidos pela autoridade romana para servirem num território tão desprezível como a Palestina, um lugar onde jamais poderia acontecer nada de importante, muito menos algo que pudesse mudar o curso da história. Por mais paradoxal que possa parecer este exemplo, este é o pão de cada dia do homem orgulhoso, e ele morre na maioria das vezes sem ter tido a oportunidade de ter percebido o que realmente foi a sua vida.

34.

A importância do respeito incondicional devido ao semelhante.

Procuremos, ademais, entender a tão grande importância de que se reveste esta atitude pelo modo como Jesus se referia a ela. No Sermão da Montanha, comentando o mandamento deixado por Moisés que proíbe o matar, Jesus afirma que até aquele que houver dito "desgraçado" ao seu irmão, "será réu do fogo do inferno" (Mat. 5, 22). Quer Jesus dizer com isto que quem se dirige ao seu semelhante com palavras próprias para ofender e magoar age diante de Deus como aquele que viola o mandamento que proíbe o matar. E isto para Jesus é tão sério que logo em seguida ele acrescenta:

"Se estiveres para apresentar
a tua oferta ao pé do altar
e ali te recordares de que teu irmão
tem qualquer coisa contra ti,
deixa a tua oferta diante do altar
e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão;
voltarás, então, para apresentar a tua oferta".

Mt. 5, 23-4

Não é por uma arbitrariedade que se fazem estas exigências tão estritas. Ocorre que neste assunto se aplicam de uma maneira muito especial as palavras da Epístola aos Hebreus:

"Nossos pais nos educaram
segundo a sua conveniência;

Deus, porém, o faz para o nosso bem,
para nos comunicar a sua santidade".

Hb. 12, 10

De fato, este preceito não só é de tão grande importância para o desenvolvimento da vida espiritual que justifica o rigor com que é apresentado, como também só produz os frutos que dele se esperam se praticado de modo integral já desde o seu ponto de partida.

A correção da interpretação sobre a importância que Jesus atribui à prática do respeito ao semelhante é conformada pelo teor análogo das exigências que Ele também faz, logo em seguida, dentro do mesmo contexto, sobre o mandamento igualmente deixado por Moisés proibindo o adultério. A este respeito Jesus declara que não são apenas aqueles que se apropriam efetivamente da esposa alheia os que incorrem na violação deste mandamento, mas também que

"Todo aquele que olhar para uma mulher
com mau desejo no coração
já cometeu adultério com ela".

Mt. 5, 28

A tradição cristã e a teologia nunca interpretaram esta passagem como algo que devesse ser interpretado num sentido figurativamente lato. Ao contrário, sempre deram claramente a entender que este texto deveria ser interpretado como significando a obrigação estrita de se dever cumprir precisamente o que está enunciado na literalidade das palavras evangélicas. Não há nenhuma base para se poder interpretar, diante disto, o texto imediatamente anterior sobre o respeito ao semelhante em uma perspectiva diversa. Antes, se algo devesse ser concluído a este respeito, seria precisamente o oposto. Deus nos preceitua a pureza naquilo que se refere à sexualidade não porque a sexualidade seja algo torpe, mas porque precisamente ela é algo pleno de uma dignidade quase sagrada; neste sentido, nas Quaestiones Disputatae de Malo (Q. 15 a. 2), Santo Tomás de Aquino nos afirma que os preceitos sobre a castidade obrigam o homem gravemente porque a sexualidade contém o ser humano em potência e, conseqüentemente, exige por este fato uma parte daquele respeito que é exigida pela própria dignidade humana. Maior deverá ser, a se considerar por esta razão, o respeito a ser exigido pela própria dignidade humana em si mesma considerada.

35.

Contemplação e realidade.

Vamos mostrar, a seguir, como sem a humildade a contemplação se torna impossível, não por se tornar coisa muito difícil, mas porque a ausência da humildade exclui intrinsecamente a possibilidade da contemplação.

Já explicamos o que é a contemplação, apresentando-as de modos aparentemente bastante diversos. Dissemos que a contemplação é a adoração a Deus em espírito e verdade de que fala João 4; que é um exercício intenso e simultâneo das virtudes da fé, esperança e caridade; que é uma operação do intelecto que abarca de um modo simultâneo a totalidade dos objetos já apreendidos pelas primeiras operações da inteligência e reelaborados pela reflexão. Dissemos também que trata-se de uma realidade tão rica que sempre que alguém se aproxima dela, ainda que pareça que tudo tenha sido dito, este alguém nos trará sobre ela algo novo, com toda a aparência de algo inédito a seu respeito. Temos disto um exemplo na biografia de São João da Cruz escrita pelo Pe. Crisógono, que tem como um de seus principais méritos a extrema fidelidade com que segue os documentos originais sobre os quais se baseia. Lemos nesta obra que entre 1579 e 1582 São João da Cruz foi reitor do Colégio São Basílio em Baeza, onde residiam os estudantes que cursavam Teologia na Universidade local. O Colégio recebia freqüentemente visitas de outros alunos e de catedráticos da Universidade que vinham consultar o santo reitor. A estes visitantes, dizem os documentos de que se utiliza o Pe. Crisógono,

"Frei João lhes expunha a Escritura,
falava-lhes de Teologia e dos mistérios da fé.
Aconteceu muitas vezes
que um doutor que há muitos anos
regia uma cátedra de Teologia Positiva
vinha consultá-lo sobre algumas passagens da Escritura
e retornava muitíssimo satisfeito.
Não obstante seu vasto conhecimento
das obras de Santo Agostinho
e de São João Crisóstomo,
parecia-lhe que as explicações de frei João
eram explicações novas,
ensinamentos do Espírito Santo".

Pe. Crisógono
Vida de S. João da Cruz
Cap. 11, n. 38

Esta passagem da biografia de São João da Cruz é a realização daquele dito de Jesus, o qual, após narrar algumas parábolas aos judeus, afirmou que

"Todo escriba instruído no Reino dos Céus
é semelhante a um pai de família,
que tira de seu tesouro coisas novas e velhas".

Mt. 13, 52

O Reino dos Céus é a plenitude da graça do Espírito Santo, que é o que produz a contemplação; os instruídos no Reino dos Céus são todos aqueles que nela produziram raízes e perseveraram com firmeza. São estes, como São João da Cruz, que do seu tesouro, "ali onde está o seu coração", conforme também o afirma Jesus (Mt. 6, 21), tiram coisas novas e velhas.

Podemos, entendendo este caráter tão rico da contemplação, explicar sua relação com a humildade se a apresentarmos de um novo modo, dizendo que ela é aquilo mesmo a que nos referimos anteriormente ao definirmos a humildade. Dissemos que a humildade é o ter consciência de ser apenas uma criatura, um ser humano, e não um deus ou um ser dotado de atributos divinos. Neste sentido podemos dizer que estas palavras também determinam a contemplação; a contemplação é

"ter consciência",

num sentido mais amplo, mas essencialmente idêntico àquele em que a humildade também o é.

Que significa, porém, ter consciência? Segundo o modo corrente de falar das pessoas, ter consciência de algo ou ter consciência das coisas significa o mesmo que aquilo que se quer dizer com a expressão

"cair na realidade".

Ter consciência ou estar consciente significa o mesmo, na linguagem corrente das pessoas, que "cair na real". Subentende- se que aqueles que se utilizam desta expressão queiram com ela significar que, antes do homem ter consciência ou estar consciente, ele não tinha caído na real, isto é, vivia no mundo da sua própria imaginação, inconsciente da distância que separava a sua imaginação que ele dava por suposto como idêntica à realidade, e a própria realidade. A contemplação, entendida neste sentido, implicaria no máximo desenvolvimento possível ao homem desta qualidade de deslocar-se do mundo ilusório de sua imaginação e dar-se conta da realidade, ou seja, cair na real.

Esta concepção de contemplação admite como pressuposto que os homens costumem viver com a atenção voltada habitualmente para as suas próprias fantasias, não obstante a realidade do mundo que os cerca, inclusive as suas próprias realidades humanas não construídas pela fantasia, serem objetivamente muito mais ricas e deverem chamar muito mais a atenção do homem do que as construções de sua imaginação. Só com muito esforço, esforço que já pressupõe um razoável grau de consciência deste fato e da alienação que ele implica, é que os homens, pouco a pouco, começam a desprender a habitualidade de sua atenção de um imaginário construído em sua maior parte pelo estímulo de paixões cultivadas sem vínculo com a razão e passam a dar cada vez maior atenção ao próprio real. A isto chama-se cair na real, e o processo pelo qual se faz isto chama-se contemplação.

O fato de explicarmos a contemplação deste modo pode causar surpresa a não poucas pessoas, que imaginam a contemplação, mesmo que a admirem, como um processo de alienação do real. Para confirmar esta teoria eles podem nos citar, por exemplo, a Regra de São Bento, que prescreve aos monges, como um de seus preceitos,

"fazer-se alheio
às coisas do mundo".

Ora, não é a contemplação o fim da Regra de São Bento, como é o fim de toda a autêntica espiritualidade? No entanto ela nos prescreve como um dos meios para se fazer isto exatamente o alheamento das coisas do mundo. Portanto, a contemplação parece supor não uma queda na realidade, mas uma alienação dela. É assim que raciocinam muitas pessoas, ainda que não o queiram admitir. Quem o faz, porém, não percebe que São Bento está falando do mundo não enquanto realidade ontológica, mas enquanto objeto das paixões humanas e que, na realidade, quanto mais o monge se torna alheio às coisas do mundo tomadas neste sentido, mais consciente na verdade, em vez de alheio, ele vai se tornando da realidade. Este exemplo mostra o quão deturpado e ilusório é o conceito que as pessoas costumam se fazer desta realidade tão profunda, supondo que a contemplação seja algo que obrigue as pessoas a se tornarem alienadas, quando na verdade a contemplação significa o movimento que retira o homem precisamente deste estado.

Vamos examinar, porém, mais de perto, como se dá este processo de queda na realidade que se produz pela contemplação. A experiência mostra que, à medida em que se desenvolve no homem aquilo que se chama de contemplação, o homem verifica que muitas das coisas que ele aprendeu ou adquiriu através da contemplação eram, na realidade, coisas que ele já sabia antes. Não todas, mas muitas, ou pelo menos uma boa parte do que ele aprendeu pela contemplação eram coisas que ele deverá reconhecer que já, de fato, as sabia. Esta afirmação não deveria soar como novidade para nós, se já lemos no texto que é o objeto principal deste comentário que Hugo de S. Vitor nos diz que a contemplação não é uma atividade que nos ensina coisas desconhecidas, mas uma operação da inteligência cuja principal característica, ao contrário da reflexão, é precisamente o debruçar-se sobre coisas já sabidas. Esta afirmação, porém, pela pouca intimidade que as pessoas têm para com a realidade a que ela se refere, costuma soar, para muitos, como algo estranho. Uma das perguntas que mais freqüentemente surgem nas salas de aula quando se explica este assunto é precisamente qual a razão de uma atividade, que é tida como a mais complexa das operações da inteligência, debruçar-se sobre coisas já sabidas, se elas já são conhecidas? Pois, se elas já são conhecidas, por que perder tempo com elas? E, mais ainda, perder tempo com coisas já sabidas justamente através de uma atividade que nos é apresentada como a mais complexa de todas as operações do intelecto? Não seria isto o exemplo mais evidente de uma baixíssima taxa de eficiência de trabalho? À primeira vista, semelhante coisa parece um contrasenso; examinada, porém, a questão mais profundamente, verifica-se que estas objeções são, na realidade, exemplos de superficialidade e que há inúmeros motivos para justificar-se a existência, a importância e inclusive a necessidade da operação a que chamamos de contemplação. Vamos nos deter agora em apenas um só destes motivos. Este motivo que, independentemente dos demais, por si só já é suficiente para justificar a contemplação, é o seguinte: embora saibamos todas estas coisas sobre as quais a contemplação se debruça, nosso agir se comporta tal como se efetivamente não as soubéssemos. Esta é, ademais, uma realidade de que temos tão pouca consciência que, para entendê-la melhor, devemos fazer um esforço para examinarmos a própria comunidade humana como se a estivéssemos observando de fora dela.

Imaginemos um curso de pós graduação em psicologia humana ministrada em uma Universidade extra terrestre para marcianos. Logo na primeira semana de aula o professor explicará aos seus alunos a existência de uma civilização no planeta Terra em que seus habitantes se auto denominam, e com razão, de animais racionais. Ante que se inicie a segunda semana de aula, porém, um dos alunos, filhos de uma família abastada, resolve, em um fim de semana prolongado, fazer uma visita por sua própria conta ao planeta que será objeto dos estudos recém iniciados, não querendo esperar pelo estágio que será, para este fim, especialmente oferecido pela Universidade Marciana ao final do curso. Quando, na segunda feira seguinte, este aluno voltar aos bancos escolares, certamente a primeira coisa que ele irá fazer será protestar diante da afirmação de seu professor de que os terráqueos são animais racionais:

"Pude constatar
com os meus próprios olhos",

dirá o aluno,

"que trata-se, efetivamente,
da opinião que eles têm de si próprios.
Mas pude observar também,
e tenho provas mais do que suficientes
para estar convencido disto,
de que tal afirmação não passa de um mito.
O modo de vida que eles construíram,
suas atitudes,
seu comportamento,
não condiz em nada,
ou quase nada,
com os atributos da racionalidade,
qualquer que seja o modo
como se possa entender
ou mesmo estender o significado deste termo".

Que responderá o professor diante desta constatação?

O aluno insiste que o que ele diz não exige muita pesquisa, é coisa evidente, manifesta. Pelo que ele pôde observar, qualquer extraterrestre que se dirija à Terra não necessitará mais do que algumas horas para colher material superabundante para apoiar esta mesma conclusão. E agora, quem estará diante disto com a razão, o professor ou o aluno? Este jovem acolheu com benevolência as palavras do mestre, dirigiu-se à Terra não para contestar as palavras do venerável catedrático, mas por ter acreditado nelas e, justamente por causa disso, ter sido tomado pela curiosidade de admirar com os seus próprios olhos uma civilização de animais racionais. Ele havia partido em princípio predisposto a confirmar a lição do mestre e não a refutá-la, mas retornou abalado com o que viu. Os fatos falaram mais alto, ele não pôde negar uma realidade. O que o professor tem agora a dizer diante dos fatos que ele passa a enumerar e a narrar, um a um, em todos os seus detalhes? Mentiu, está cego, ou nada entende de psicologia humana, embora seja este o assunto sobre o qual vai ministrar o seu curso?

"Caro aluno",

responde-lhe o professor,

"você não está totalmente errado
em suas observações;
deveria ter esperado, porém,
pelo estágio que faríamos no fim deste curso,
quando compreenderia melhor os homens.
Sei o que você viu.
É, de fato,
uma triste realidade.
Mas, apesar do que você pôde observar,
devo-lhe confirmar que os homens
são verdadeiramente animais racionais.
Não se trata de um mito.
O que ocorre com eles
não é a ausência da racionalidade,
como você presumiu,
mas o fato deles serem vítimas
de uma doença pela qual neles produziu-se
uma separação entre o seu intelegir,
de um lado,
e, de outro lado,
os seus sentimentos,
os seus desejos,
o seu agir,
e até mesmo a sua própria inteligência,
a qual, o mais freqüentemente,
quando é chegado o momento de agir,
ou de funcionar em conjunto
com as demais faculdades da alma,
esquece-se momentaneamente daquilo
que ela própria,
aparentemente,
parecia saber alguns momentos antes,
quando podia funcionar sozinha,
sem interferência dos sentimentos,
dos desejos e do próprio agir.
Trata-se de uma doença
amplamente disseminada no planeta Terra,
mas são muito poucos
aqueles que se dão conta deste fato,
coisa que também faz parte da doença.
Embora esta seja
a doença mais disseminada entre eles,
eles próprios sequer a catalogam como tal.
Há entre eles algumas criaturas
que a conhecem como pecado original,
embora, precisamente falando,
estes sintomas não sejam o pecado original
mas uma conseqüência
do que seria o pecado original.
Este mal foi corretamente descrito
nos textos de alguns de seus sábios
da Idade Média e da Antigüidade;
hoje, porém, a maioria dos humanos crêem
que nenhum conhecimento objetivo
possa ser adquirido com a leitura destes escritos e,
com exceção daqueles que se interessam,
de alguma forma ou de outra,
pela arqueologia,
qualquer contato com eles
é tido como pura perda de tempo.
Estes textos antigos, porém,
não apenas descrevem a doença,
como também lhe apontam o remédio
e o curso clínico do restabelecimento.
O nome que dão ao remédio para esta doença
chama-se graça divina.
Dizem que quando a graça
começa a agir sobre o homem,
o homem vai se curando gradativamente
desta doença.
Ele retorna,
como entre eles deixou escrito o eremita Santo Antão,
ao estado original e,
quando a graça começa a agir sobre o homem,
conforme também eles dizem,
estas criaturas começam a cair na real.
No início deste que é
um longo processo de cura,
esta queda na realidade se manifesta
sob a forma de uma virtude
que eles denominam de humildade.
Eles chamam de humildade
ao início do processo de queda na realidade
que se dá, inicialmente,
apenas em relação a algumas poucas coisas,
embora muito fundamentais,
sem as quais qualquer ulterior queda na realidade
seria apenas ilusória,
se é que se pode falar deste modo.
Mas aqueles que conseguem iniciar
seu processo de cura
através da virtude da humildade,
à medida em que caem na realidade
em relação a um número sempre maior de aspectos,
acabam conseguindo fazê-lo,
depois de muito tempo,
simultaneamente em relação
a todos os aspectos ontologicamente relevantes
para a vida de um ser humano.
Surge então para estes seres
uma outra realidade,
a que eles chamam de contemplação.
Quando surge nos seres humanos
o que se chama de contemplação,
os humanos começam a se tornar livres desta doença
que os obrigava a agir irracionalmente
sem de fato o serem,
e eles começam então a provar
o verdadeiro sentido da liberdade".

36.

Relações adicionais entre pensamento, meditação e contemplação.

Esta aula, proferida no anfiteatro da Universidade Marciana, nos será muito útil para interpretar mais profundamente algumas afirmações do Opúsculo sobre o Modo de Aprender de Hugo de São Vitor. Hugo de São Vitor nos explica ali importantes diferenças entre a meditação ou reflexão e a contemplação. Ele diz que a meditação ou reflexão difere do pensamento na medida em que o pensamento é assistemático e a reflexão é metódica. A atividade que ele denomina de pensamento pode ser metódica, mas quando o é, o é porque é conduzida em sua metodicidade pela leitura de um livro ou por uma aula que está sendo acompanhada. O pensamento, para ser metódico, não pode ser independente; se ele se desliga do livro ou da aula condutora, vagueia a esmo; trata- se de uma atividade da inteligência que não possui autonomia própria para ser metódica. A reflexão, porém, já significa uma forma de pensamento mais elevada porque autônoma; ela não necessita do fio condutor da aula ou da leitura para possuir a metodicidade; é uma forma de pensamento mais adulta e madura.

Mas a contemplação é uma forma de uso da inteligência ainda mais possante, adulta e madura do que a reflexão; ela está situada diante da reflexão ou meditação a uma distância ainda maior do que a reflexão está situada do pensamento. A diferença consiste em que o pensamento propriamente dito não apreende nada permanentemente; aquilo sobre o que nos debruçamos apenas pelo pensamento é sempre algo facilmente esquecido. Às vezes o pensamento produz algum resultado permanente na alma, não sujeito a um fácil esquecimento, mas neste caso verificamos que isto ocorreu na maiorias das vezes em ocasiões em que aquilo que foi pensado havia sido conduzido, através da aula ou da leitura, e o resultado permanente por ele produzido se deveu ao fato de que, assim conduzido, o pensamento já possui características que mais pertencem ao trabalho da reflexão. O pensamento por si mesmo dificilmente produz resultados duradouros na alma. Já o que foi verdadeiramente refletido não se esquece, torna-se uma conquista pessoal. Ora, a matéria prima sobre a qual a contemplação se debruça é precisamente isto que foi apreendido pela reflexão. Ademais, a reflexão apreende uma ou poucas coisas de cada vez, enquanto que a contemplação se coloca diante de muitas ou mesmo de todas as coisas apreendidas. Isto não significa que a contemplação só surge no homem quando termina todo o trabalho de reflexão pois, aos contrário, o que se observa é que à medida em que o trabalho de reflexão avança é que surge gradualmente o trabalho de contemplação e a contemplação pode, e efetivamente cresce, juntamente com o crescimento da reflexão. A contemplação pode desenvolver-se, e efetivamente se desenvolve paralelamente à medida em que a reflexão também se desenvolve, embora necessite de um amadurecimento prévio da reflexão para poder manifestar seus primeiros sinais de presença. Mas uma das diferenças mais radicais entre a reflexão e a contemplação consiste não apenas em tudo isto, mas no fato de que a reflexão não faz cair na real. Pela reflexão o homem pode aprender definitivamente uma determinada coisa, mas continua agindo, sentindo, desejando e até mesmo, no caso em que a inteligência se vê obrigada a atuar em conjunto com as demais faculdades da psicologia humana, intelegindo como se não tivesse aprendido nada. É pelo trabalho da contemplação que todas estas coisas se integram. É pelo trabalho da contemplação que caímos na real.

A contemplação é, deste modo, uma forma de trabalho intelectual que produz efeitos visíveis no homem, isto é, efeitos que podem ser notados claramente pelos outros homens que convivem com aquele que é capaz da contemplação. A reflexão não produz estes efeitos visíveis, porque ela se limita a apreender de um modo definitivo alguma coisa que, porém, no que depender apenas da reflexão, não produzirá efeitos fora da inteligência. Seus efeitos na inteligência são também, menos profundos do que os da contemplação. Neste sentido, a reflexão pode produzir efeitos visíveis apenas através da uma conversa, na medida em que pela conversa do homem habituado à reflexão externam-se as coisas que ele aprendeu, e desde que ele não se veja obrigado a fazer um uso prático deste conhecimento. Para que o homem possa se transformar, ao contrário, em um exemplo vivente de sabedoria, é necessário recorrer à outra operação da inteligência a que se chama de contemplação. Neste sentido, só os que são capazes da contemplação são verdadeiramente sábios e não só aparentam como também se comportam como tais. Examinada sob esta perspectiva, a contemplação se torna perfeita quando alcança uma interligação permanente de todos os aspectos da psicologia humana com todas as coisas que dizem respeito ao homem e à sua situação no mundo e diante de Deus.

Às vezes, em pessoas muito dadas ao estudo, a reflexão pode produzir alguns efeitos visíveis desta natureza; isto ocorre, porém, por causa de que ela já estará possuindo algumas das características do funcionamento da contemplação.