IX.4.

Premissas para a investigação da natureza da sociedade perfeita.

Vamos começar abordando a primeira das questões propostas, isto é, se há formas melhores e preferíveis de se organizar uma sociedade ou se todas são indiferentes entre si e se, algumas sendo piores e outras melhores, haverá alguma que seja preferível a todas as demais.

O Comentário à Política trata deste assunto em diversos locais ao longo de seus oito livros. As premissas de que se deve partir na colocação deste problema são apresentadas no início do Livro VII.

Quem quer investigar de modo certo e conveniente o problema da sociedade ótima, diz o VIIº da Política, deve considerar primeiro qual é o gênero de vida preferível a todos os demais, e qual é a operação excelente do homem. Pois, se não for manifesto qual seja a operação ótima do homem, não poderá ficar manifesto qual seja a sociedade ótima, porque os homens que viverem nesta sociedade deverão necessariamente alcançar a vida que é, em si mesma, preferível a todas as demais (14). A finalidade da sociedade ótima deverá ser o fim ótimo do homem, porque a sociedade não é mais do que a ordem da sociedade, e a razão da ordem é tomada de seu fim; portanto, para o conhecimento da sociedade ótima é necessário primeiro conhecer qual é o fim ou a operação ótima do homem (15).

Ora, o bem do homem é o ser perfeito do próprio homem, porque a bondade é uma certa perfeição (16).

Há, porém, três gêneros de bens para o homem: os bens da alma, os bens do corpo e os bens exteriores. A felicidade, sendo o bem perfeitíssimo do próprio homem, deve reunir a todos estes três. Não há dúvida de que, os bens do homem dividindo-se em três partes, isto é, nos bens exteriores, como as riquezas e os amigos, nos bens do corpo, como a saúde e a vivacidade dos sentidos, e nos bens da alma, todos eles devem estar presentes nos que são felizes (17). Se algumas destas coisas faltasse, naquela parte haveria imperfeição; ninguém diria ser feliz aquele que não tivesse alcançado alguma parte das virtudes, como a fortaleza, a justiça, ou a prudência (18).

Embora, porém, todos concedam que todos estes bens devem pertencer à felicidade, há muita diferença entre os homens quando se lhes pergunta acerca da quantidade e do excesso. De fato, alguns dizem ser suficiente à felicidade perfeita qualquer quantidade de virtude, mesmo que seja pequena, mas no que diz respeito à riqueza e ao dinheiro, ao poder, à glória, à fama e a outras coisas semelhantes, dizem que estas devem pertencer à felicidade num excesso infinito, querendo dizer com isso que a felicidade consiste principalmente nos bens exteriores, e apenas secundariamente na virtude (19).

Mas nós, diz o Comentário ao VIIº da Política, reprovando o que estes dizem, afirmamos ser fácil mostrar pelas próprias operações que nos são mais manifestas que a felicidade consiste principalmente nos costumes, isto é, nas operações provenientes de hábitos ordenados segundo a razão e na excelência da perfeita operação do intelecto, acrescentada de uma pequena posse de bens exteriores, de preferência à abundância inoportuna destes bens exteriores à qual se acrescentam virtudes e operações intelectuais deficientes. A felicidade, portanto, mais consiste na excelência da virtude e da operação do intelecto do que nos bens exteriores (20).

Do que foi dito pode-se concluir em que consiste a felicidade de uma cidade. Dizemos ser feliz, e, portanto, ótima, aquela cidade que opera o ótimo. Portanto, será impossível uma cidade ser feliz e ótima sem virtudes morais e intelectuais (21).

Alguém poderia objetar dizendo que a fortaleza, a justiça e as demais virtudes não são de uma só e mesma natureza no homem e na sociedade. Mas a isto deve-se responder que a virtude de toda uma cidade e a virtude de um só homem são coisas de mesma natureza, ambas ordenando-se à operação; elas não diferem senão como o todo da parte e como o maior do menor. De fato, a virtude moral da cidade é agregada a partir das virtudes parciais dos cidadãos, e por isso a mesma é a virtude do cidadão e a virtude de toda uma cidade (22).

Portanto, a vida ótima do homem individualmente considerado e a vida ótima de toda uma cidade é a mesma (23). É o que se deduz, ademais, da comum opinião de todos os homens, pela qual fica também manifesto que todos pretendem que a felicidade de um só homem e de toda a cidade seja da mesma e de uma só natureza. É isto o que dizem todos os que falam a respeito da felicidade. Aqueles que colocam a felicidade do homem consistir nas riquezas, são eles também os que dizem ser feliz a cidade que possui riquezas em abundância. Se alguém, portanto, sustenta que é a operação da virtude que faz a felicidade do homem, deverá concluir daqui que a cidade feliz será aquela que mais se esforça por alcançar e participar das ações virtuosas. Todos, portanto, confessam uma só e a mesma ser a felicidade de qualquer homem separadamente e de toda a cidade (24).

Ora, a felicidade do homem é a perfeição do intelecto em relação ao primeiro e maior de todos os inteligíveis, isto é, a causa primeira. A felicidade prática, a que provém apenas das virtudes morais, é uma participação do intelecto quanto aos agíveis pelo homem, e é muito deficiente em relação à natureza do primeiro inteligível. Portanto, para cada homem, individualmente considerado, a felicidade contemplativa é mais elegível do que a felicidade prática, além de ser mais contínua, suficiente e deleitável. Deve-se daí concluir que a contemplação de toda a cidade é mais elegível do que a virtude política de toda a mesma cidade, e a virtude contemplativa de toda a cidade é preferível à contemplação de um só homem (25).

Destas passagens do Comentário à Política pode-se deduzir que como o homem é um animal naturalmente inclinado à vida em sociedade, e que, ademais, necessita da sociedade para alcançar a vida das virtudes, tanto morais como intelectuais, a sociedade ótima é aquela organizada de tal maneira que, através dela, o homem alcança a excelência na virtude e na inteligência. Vale a pena voltar a mencionar que, no livro I do Comentário à Política, Tomás de Aquino ressalta que a sociedade não foi feita apenas

"para que os homens nela encontrassem
o suficiente para poderem viver;
a cidade existe não apenas
para que o homem viva,
mas para que o homem viva bem"
(26),

e viver bem, segundo o Filósofo, é viver segundo a excelência da virtude e da inteligência (27). A natureza do homem é tal que sem a sociedade ela não pode alcançar a virtude e a inteligência; portanto, a sociedade que não se organiza de modo a proporcionar ao homem a possibilidade de alcançar tais objetivos, concedendo-lhe, ao contrário, apenas bens materiais e uma vida em liberdade e segurança, estará causando ao homem um dano irreparável, pois não há outro modo pelo qual o homem possa alcançar a felicidade que provém destas coisas senão através da sociedade.



Referências

(14) In libros Politicorum Expositio, L. VII, l. 1, 1047.
(15) Idem, L. VII, l. 1, 1048. (16) Idem, L. VII, l. 1, 1049. (17) Idem, loc. cit.. (18) Idem, L. VII, l. 1, 1050. (19) Idem, L. VII, l. 1, 1051. (20) Idem, L. VII, l. 1, 1052. (21) Idem, L. VII, l. 1, 1057. (22) Idem, loc. cit.. (23) Idem, L. VII, l. 2, 1059. (24) Idem, L. VII, l. 2, 1060. (25) Idem, L. VII, l. 2, 1082. (26) Idem, L. I, l. 1, 31. (27) Idem, L. VII, l. 1, 1052.