VI.5.

Deleitabilidade da contemplação.

No final de seu artigo, M. D. Philippe examina a questão da deleitabilidade da contemplação. Esta questão se reveste de uma importância particular para que a destaquemos em separado do restante de nossa resenha, lhe acrescentemos alguns comentários e nos aproveitemos dela para continuar o presente capítulo.

M. Philippe afirma que a deleitação da contemplação se segue, em princípio, à conaturalidade que a virtude da sabedoria produz no homem para com aquele ente que é objeto de contemplação:

"Graças à virtude da sabedoria,
a inteligência humana adquire
uma certa conaturalidade
com o termo de sua contemplação:
a substância primeira.
Esta virtude da sabedoria,
virtude suprema,
estabelece entre Deus e nós,
entre a inteligência divina e a nossa,
uma certa semelhança
que nos permite levar
a mesma vida que Deus
e conduzi-la como uma vida
que nos é conatural
e não estranha e penosa.
Graças à conaturalidade
que a sabedoria estabelece
entre a primeira inteligência
e a nossa inteligência,
este ato de contemplação
pode-se expandir na alegria.
Ele é plenamente deleitável"
(32).

Não há dúvida que estas palavras poderão para alguns saber a exagero diante de uma primeira consideração. De fato, que homem pode ser como Deus? Não seria isto uma exagerada pretensão? E ainda que o pudesse, certamente isto não lhe seria uma coisa fácil. No entanto, M. Philippe parece querer afirmar exatamente o contrário. Ele diz que, pela contemplação, se estabelece no homem uma semelhança entre a inteligência humana e a divina; e, não contente com isto, acrescenta que por meio da contemplação o homem pode levar a mesma vida que Deus e, ademais, pode fazer isto sem dificuldade e de modo conatural. Ele afirma ainda que esta doutrina é a de Aristóteles e, indiretamente, a de S. Tomás de Aquino. Que diriam hoje estes filósofos se o ouvissem atribuindo-lhes tais ensinamentos? Dariam razão a Philippe ou lhe diriam jamais terem ensinado tais coisas?

Cremos poder responder a esta pergunta afirmando que, quando corretamente entendidas, as colocações de M. Philippe estão em perfeito acordo não apenas com os ensinamentos de S. Tomás de Aquino e de Aristóteles, mas também com os da maioria dos principais filósofos gregos e cristãos.

De fato, a conaturalidade que se diz estabelecer pela contemplação entre o homem e a inteligência divina não deve ser entendida como uma igualdade de naturezas, mas como uma semelhança de naturezas. À medida em que o homem deixa de viver segundo suas paixões para viver segundo a virtude, e à vida da virtude se acrescenta a da contemplação, sua vida vai-se assemelhando cada vez mais à vida divina e, neste sentido, o homem vai-se conaturalizando à inteligência divina por um assemelhar-se à sua natureza.

Tal era, ademais, o ideal filosófico não apenas de Aristóteles e de S. Tomás de Aquino, mas o de muitos outros filósofos da antiguidade em geral. Atestam esta afirmativa, por exemplo, as seguintes palavras de Boécio, quando, esperando na prisão a execução de uma pena de morte por um delito que não tinha cometido, imagina-se dialogando com a própria Filosofia. No final deste diálogo, Boécio afirma que o ideal da filosofia é tornar-se semelhante a Deus. E não só Boécio faz seu este ideal, como também parece atribuí-lo ao filósofo grego Pitágoras:

"Por que choras,
Boécio?",

pergunta a Filosofia.

"Por que derramas estas lágrimas?

Se queres que te auxilie,
importa que não me ocultes
a tua ferida".

"Porventura",

responde Boécio,

"porventura há necessidade
de explicações?

Não será explicação suficiente
o aspecto desta prisão
em que estou encerrado?
Esta por acaso
é a biblioteca onde
tu residias comigo
e costumavas dissertar
sobre as coisas divinas e humanas?

Era este o rosto que eu tinha
quando investigava contigo
os segredos da natureza,
quanto tu me descrevias
o curso das estrelas,
me formavas os costumes
e a razão de toda minha vida
segundo o exemplo da ordem celeste?

Porém estás vendo
em que veio dar a nossa inocência,
pois como prêmio da verdadeira virtude
padecemos as penas de um falso delito,
como se tu,
que estavas sempre junto de mim,
não afastasses de minha alma
a ambição de todas as coisas mortais,
como se cada dia não derramasses
em meus ouvidos e em minhas considerações
os ditos de Pitágoras
e não me guiasses para esta excelência,
que é fazer-me consemelhante a Deus"
(33).

De onde que não apenas segundo Philippe, mas também segundo Boécio, um filósofo cristão do início do século VI, e, de acordo com o que Boécio parece dar a entender, também segundo a tradição da filosofia grega, a contemplação produz uma semelhança divina no homem. Mais fácil ainda é mostrar que tal afirmativa não é diversa também do pensamento filosófico de S. Tomás de Aquino, e por extensão também do de Aristóteles, que é o mestre que em filosofia Tomás segue e aprofunda. Consideremos, para tanto, em primeiro lugar, como na Summa contra Gentiles Tomás diz que todo agente age por causa do bem:

"Pode-se mostrar que todo agente
age por causa do bem,
primeiro, considerando que todo agente
age por causa de um fim,
já que todo agente
tende a algum fim determinado"
(34).

Que todo agente age por causa de um fim por tender a algum fim determinado é algo sobre o que demos uma explicação mais detalhada no Apêndice sobre teoria da causalidade anexo ao capítulo dois do presente trabalho. Uma vez compreendida aquela explicação, pode-se passar à continuação do presente argumento:

"Aquilo ao que um agente tende
de modo determinado",

continua Tomás,

"é necessário que lhe seja algo conveniente;
de fato, não tenderia a ele senão por causa
de alguma conveniência ao mesmo"
(35).

A explicação desta afirmativa está em que aquilo a que qualquer agente tende de modo determinado é uma operação conseqüente à sua forma própria; portanto, é algo que tem conveniência à natureza do agente, que é dada pela forma.

Continua S. Tomás:

"Ora, aquilo que convém a algo
é o bem deste algo.
Portanto, todo agente age
por causa do bem"
(36).

Bastante mais adiante, na mesma Summa contra Gentiles, Tomás ainda continua o argumento:

"Se, porém,
todo agente age por causa do bem,
conforme acima provamos,
segue-se que o fim de qualquer ser é o bem"
(37).

Três capítulos mais adiante Tomás acrescenta:

"Ora, se todas as coisas,
por seu movimento ou ação,
tendem a algum bem como ao seu fim,
conforme acima foi provado,
e qualquer coisa participa do bem
na medida em que se assemelha
à primeira bondade, que é Deus,
segue-se que todas as coisas,
pelos seus movimentos e pelas suas ações,
tendem à semelhança divina,
assim como a um fim último"
(38).

Mais adiante Tomás afirma ainda que os seres inteligentes tendem à semelhança divina de um modo especial, mais excelente do que o modo geral pelo qual o fazem todas as coisas:

"Embora todas as criaturas,
mesmo as que são carentes de intelecto,
se ordenem a Deus como a um fim último,
e todas alcancem este fim
na medida em que participam em algo
de sua semelhança,
todavia as criaturas intelectuais
o alcançam de um modo especial,
isto é, pela sua operação própria ao inteligi-lo.

Ademais, todas as coisas tendem
à semelhança divina
como ao seu fim próprio.
Aquilo, portanto, pelo que cada coisa
maximamente se assemelha a Deus
é o seu fim último.

Ora, a criatura intelectual se assemelha
maximamente a Deus
pelo fato de ser intelectual,
possuindo esta semelhança
entre todas as demais criaturas,
e incluindo nesta todas as demais.

No gênero desta semelhança
a criatura mais se assemelhará a Deus
na medida em que intelige em ato
do que na medida em que intelige em hábito
ou em potência,
porque Deus é sempre inteligente em ato.

E, no inteligir em ato,
a criatura mais se assemelhará a Deus
na medida em que inteligir ao próprio Deus,
porque o próprio Deus intelige todas as coisas
inteligindo-se a si mesmo"
(39).

Vemos, assim, que segundo o pensamento de Tomás de Aquino o homem verdadeiramente se assemelha a Deus pela contemplação mais do que já se assemelhava pela sua própria natureza. Entretanto, não é apenas nisto que consiste a conaturalidade estabelecida entre a inteligência divina e a inteligência humana pela virtude da sabedoria de que fala M. D. Philippe; esta conaturalidade não é apenas este assemelhar-se da inteligência humana à divina segundo o modo exposto por Tomás na Summa contra Gentiles, mas é também a tendência e a facilidade com que, mediante esta virtude, a contemplação se processa no homem. Dizemos, de fato, que fazemos com naturalidade as coisas que fazemos com facilidade; neste sentido pode-se dizer então que a sabedoria produz uma conaturalidade com a inteligência divina, na medida em que por meio dela a inteligência humana adquire uma tendência a facilidade em assemelhar-se à divina por meio da contemplação. E esta conaturalidade, diz Philippe, é que produz a deleitabilidade da contemplação.

"Queremos sublinhar",

continua Philippe,

"a grande diferença psicológica
que há entre este ato da contemplação
e todas as investigações científicas
que a precedem.
Estas investigações eram,
ao contrário da contemplação,
difíceis e sem deleitação.
Mas Aristóteles afirma que esta alegria
é a maior que possa existir.
Ela é perfeita e soberana,
conforme afirmado na Metafísica,
porque é sem mistura,
inteiramente pura,
pois é firme e estável.
Não se realiza ela como um repouso?"
(40).

Mas, pergunta então Philippe,

"como se deve compreender
esta deleitação?"
(41).

A razão de ser desta pergunta é que, segundo o pensamento de Aristóteles e Tomás de Aquino, a deleitação é algo que pertence de modo próprio às faculdades apetitivas e não às cognitivas. Toda deleitação procede de um desejo, o qual por sua vez procede de um amor, e estas três coisas, deleitação, desejo e amor, são movimentos ou disposições de faculdades apetitivas, sejam elas sensíveis ou racionais. O amor é uma conaturalidade do apetite ao bem amado; o desejo, que se segue ao amor, importa num movimento do apetite ao bem amado; a deleitação, que se segue ao desejo, é um repouso do apetite no bem amado (42).

Com isto podemos compreender melhor a seqüência do texto de Philippe:

"Como compreender, pois,
esta deleitação da contemplação?

Toda deleitação não supõe um amor?

Mas a contemplação da sabedoria filosófica,
tal como Aristóteles a definiu,
não é ela um ato puramente especulativo,
teorético, separado de todo elemento afetivo?"
(43).

Philippe continua ressaltando muito apropriadamente a importância desta pergunta:

"É muito importante encontrar qual seja
a fonte própria desta deleitação,
afirmada tão claramente por Aristóteles,
para melhor penetrar na estrutura essencial
do ato da contemplação"
(44).

Desta maneira, Philippe levantou a questão da deleitabilidade da contemplação. Se o deleite pertence às faculdades apetitivas, e a contemplação é algo inteiramente pertencente à inteligência, como pode haver nela não apenas deleitação, mas também suma deleitação? Sua resposta vem logo a seguir:

"É bastante evidente que o prazer
faz parte da ordem do bem,
isto é, daquilo que nos convém.
Todo prazer supõe,
portanto, um amor.

Ora, há em nós um amor natural
pelo conhecimento do verdadeiro.
Aristóteles no-lo recordou
no início de seus livros de Metafísica:
todos os homens desejam,
por natureza,
o conhecimento.
E é este amor natural
que explica como todo ato de conhecimento
é deleitável.
Porque todo ato de conhecimento
satisfaz em parte este desejo natural,
este amor inicial do verdadeiro.
O ato da contemplação,
sendo o ato de conhecimento mais perfeito,
é o único que pode satisfazer plenamente
este desejo e este amor do conhecimento.
Eis porque ele é tão perfeitamente deleitável"
(45).

Segundo Philippe, portanto, a contemplação da sabedoria produz uma deleitação perfeita porque há no homem, por natureza, o desejo natural pelo conhecimento; este desejo pode ser satisfeito apenas em parte pelas ciências ou outras formas de conhecimento; somente a virtude da sabedoria satisfaz plenamente a este anseio profundo do homem, e a contemplação nada mais é do que o ato mais excelente produzido pela virtude da sabedoria. Conseqüentemente, a deleitação que lhe é associada produz no homem uma alegria que, entre todas as alegrias que o homem pode experimentar pela sua própria natureza, é aquela que mais se assemelha à felicidade divina.

Porém, além desta razão, há ainda uma outra, e mais profunda, para explicar a deleitabilidade da contemplação no homem. Pois as pessoas que não têm experiência ou pouco ouviram falar destas coisas costumam esquecer-se de levar em conta que a própria atividade da contemplação é algo que, pelo exercício, vai progressivamente se aprofundando no homem. Isto faz com que, alcançada pela inteligência a causa primeira de todos os entes e estando a inteligência numa posse perfeita da ciência metafísica, ela começa, aos poucos, a conhecer melhor, mais claramente e profundamente, em uma só palavra, mais perfeitamente, ainda que apenas por via de analogia e não por percepção direta, a natureza da causa primeira.

Assim, após a aquisição perfeita da ciência metafísica, a contemplação se inicia pela apreensão da causa primeira sob a razão de ser; mas, aos poucos, à medida em que, além de sua existência, vai se tornando sempre mais perfeita a apreensão de sua natureza, ainda que por via de analogia, a causa primeira passa a ser apreendida sob a razão de bem.

Ora, o bem, diz Tomás de Aquino, se converte com o ser. Todo ente, enquanto tal, é bom (46). Não obstante esta conversibilidade, entretanto, o ser, segundo sua razão, é anterior ao bem; em qualquer coisa o primeiro que cai sob a concepção do intelecto é o ser, pois tudo que é conhecido é conhecido sob a razão do ser, de onde que o ser é o objeto próprio do intelecto, e é o primeiro inteligível, assim como o som é o primeiro audível (47). O bem, embora se converta com o ser, acrescenta, entretanto, algo ao ser, que é a razão de perfeição que convém a todo ser qualquer que seja a sua natureza (48), e, por conseqüência, a conveniência do ser às faculdades apetitivas da alma (49).

Desta maneira, na medida em que no início o homem sábio apreendia a causa primeira sob a razão do ser, a contemplação lhe era deleitável por satisfazer plenamente à sua natureza humana intelectiva. Mas, à medida em que, com o tempo, a atividade contemplativa da inteligência se aprofunda no conhecimento da natureza desta primeira causa e ela passa a ser apreendida sob a razão de bem, este bem é apresentado à inteligência do homem como o maior de todos os bens, maior ainda do que o próprio bem que a contemplação em si já é para o homem. O homem sábio passa deste modo a amar o objeto da contemplação mais do que à própria contemplação.

Ora, como a todo amor segue-se o desejo e a deleitação, a contemplação do homem sábio passa por isso mesmo a se tornar mais deleitável não apenas por ter se tornado mais perfeita em sua atividade, mas por ter se estabelecido uma nova relação entre ele e o objeto ao qual se dirige a atividade de sua inteligência. Ele não é mais filósofo, isto é, alguém que ama a sabedoria, porque ama o conhecimento que está ou pode a vir a estar em sua alma, mas é filósofo porque ama aquela sabedoria que é a própria inteligência viva de que procedem todas as coisas.

É neste sentido que se entendem as seguintes considerações de Philippe:

"Não nos esqueçamos, entretanto,
que a sabedoria que conaturaliza nossa inteligência
com a inteligibilidade da causa primeira
não tem como único efeito
permitir um ato de contemplação
que seja perfeito,
isento de dificuldade
e por isso mesmo deleitável.

Ela tem como conseqüência
estabelecer entre esta primeira substância
e nossa inteligência
uma certa semelhança
capaz de fundamentar novas relações
de quase amizade entre Deus e nós.
Estas relações se exercem
graças à própria contemplação
e são como seus efeitos imediatos,
como seu fruto próprio.

Compreende-se assim
que a contemplação filosófica
pode estar na origem
de toda uma expansão afetiva,
a mais nobre expansão afetiva
que o nosso ser pode vir a conhecer.
Pois trata-se de amar o ser supremo contemplado,
de amá-lo por ele mesmo,
por causa de sua bondade soberanamente amável,
de amá-lo como ao ser mais amável
e mais desejável que existe.

Esta expansão afetiva,
longe de afastar o sábio de sua contemplação
e voltá-lo para uma atividade menos nobre,
e portanto, de degradá-lo,
ao contrário, aperfeiçoa sua contemplação
e lhe permite de se dar a ela mais perfeitamente.
Pois esta quase amizade
é uma amizade divina,
toda espiritual e mesmo toda contemplativa;
ela provém imediatamente da contemplação,
que é seu fundamento,
e não pode se manter senão nela.
E como o amor do bem soberano
nos conduz a conhecê-lo melhor,
esta amizade nos conduz para a contemplação,
tornando-a ainda mais pura
e conatural ao seu objeto.

Ela estará, também,
na origem de uma nova deleitação
que intensificará por sua vez
o próprio ato da contemplação"
(50).

Não é apenas Philippe que reporta tal forma de contemplação filosófica. Nos escritos de Hugo de São Vitor encontram-se também referências a esta forma especialíssima de perfeição da contemplação. No livro primeiro do Didascalicon de Hugo de S. Vitor, por exemplo, encontramos a seguinte definição de filosofia:

"A filosofia é o amor,
o estudo e a amizade da sabedoria;
não porém de qualquer sabedoria,
mas daquela sabedoria que,
não necessitando de nada,
é uma mente viva
e a única e primeira razão
de todas as coisas,
com o que se designa a sabedoria divina,
a qual não necessitando de nada,
é uma mente viva
e é a primeira razão de todas as coisas
porque à sua semelhança
foram feitas todas as coisas.
A ela,
quanto mais nos conformamos,
tanto mais nos tornamos sábios;
é então que começa a brilhar em nós
aquilo que na razão divina sempre existiu,
transitando em nós
aquilo que nEle existe incomutavelmente"
(51).

Etimologicamente, filosofia significa amor da sabedoria. Mas é com muita propriedade que nestas passagens do Didascalicon Hugo de São Vítor especifica a filosofia não como o amor da sabedoria que o homem pode adquirir pelo esforço de sua própria inteligência, o que seria já uma definição verdadeira, mas como o amor da sabedoria que é a própria causa do ser de todas as coisas.A maioria das poucas pessoas que se dão ao trabalho de lerem as obras de Hugo, ao passarem por estas passagens do Didascalicon, não se dão conta da grandeza do que Hugo está escrevendo; falta-lhes totalmente o sentido de perspectiva, como quando um homem simples, olhando para o céu, acredita que todas as estrelas estão situadas à mesma distância e não muito longe da superfície da terra. Tomam a definição de filosofia que dá Hugo como sendo alguma excentricidade explicável pelos sentimentos piedosos do autor ou por se tratar talvez de algum expediente retórico. Mas na verdade o que Hugo está descrevendo é a faculdade intelectiva do homem levada aos últimos limites de sua perfectibilidade; é impossível ser filósofo no sentido aqui descrito por Hugo sem possuir de modo eminente a virtude da sabedoria e a vida contemplativa desenvolvida num grau muitíssimo elevado.

A mesma coisa pode-se dizer também das seguintes passagens da República de Platão, tão freqüentemente pouco compreendidas:

"Nos limites extremos do mundo inteligível",

diz Platão,

"a última coisa que se percebe,
e isto não sem grande esforço,
é a idéia do bem"
(52).

"Por mais belos que sejam
o conhecimento e a verdade,
julgarás retamente
se considerares a idéia do bem
como algo ainda mais belo
do que ambas estas coisas"
(53).

"Não deves estranhar, por isso,
que aqueles que chegaram
à apreensão desta idéia
não queiram mais se ocupar
com os assuntos humanos,
pois as suas almas tendem sempre
a permanecer nas alturas"
(54);

"aquele, porém,
que quiser proceder sabiamente
na vida privada ou na vida pública,
terá que contemplá-la forçosamente"
(55).

"Por isso será preciso obrigar os sábios
a elevarem os olhos de suas almas
para contemplarem de frente
o que proporciona luz a todos;
e quando tiverem visto o bem em si
se servirão dele como modelo
durante o resto de suas vidas
em que governarão
tanto à cidade e aos particulares
como a si mesmos"
(56).

"Não é esta, ó Gláucon,
a melodia que é executada pela filosofia?
Quando nos valemos dela para dirigir-nos,
com a ajuda da razão
e sem a intervenção de nenhum sentido,
para o que é cada coisa em si,
e não desistimos
até alcançar com o auxílio apenas da inteligência
o que é o bem em si,
teremos então com isso chegado
às próprias fronteiras do inteligível"
(57).

"Esta viagem
é o que se chama de filosofia"
(58).



Referências

(32) Philippe, M.D.: o. c.; pg. 538-539.
(33) Boetius, Manlius Severinus: De Consolatione Philosophiae libri quinque, L. I, Pr. IV; PL 63,
(34) Summa contra Gentiles, III, 3.
(35) Idem, loc. cit.. (36) Idem, loc. cit.. (37) Idem, III, 16. (38) Idem, III, 19. (39) Idem, III, 25.
(40) Philippe, M.D.: o. c.; pg. 539. (41) Ibidem; loc. cit..
(42) In libros Ethicorum Expositio, L. II, l. 5, 293.
(43) Philippe, M.D.: o. c.; pg. 539. (44) Ibidem; loc. cit.. (45) Ibidem; loc. cit..
(46) Summa Theologiae, Ia, Q. 5 a.3.
(47) Idem, Ia, Q. 5 a.2. (48) Idem, Ia, Q. 5 a.3 ad 1.
(49) Quaestiones Disputatae de Veritate, Q. 1 a.1.
(50) Philippe, M.D.: o. c.; pg. 540-541.
(51) Hugo de S. Vitor: Didascalicon, L. I, C. 3, PL 175, 743; L. II, C. 1, PL 175, 751.
(52) Platão: A República, L. VII, 517 b.
(53) Ibidem, L. VI, 508 e. (54) Ibidem, L. VII, 517 c-d. (55) Ibidem, L. VII, 517 c. (56) Ibidem, L. VII, 540 a-b. (57) Ibidem, L. VII, 532 a-b. (58) Ibidem, L. VII, 532 b.