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Traçamos, desta maneira, nestes dois últimos
capítulos, o quadro dos requisitos próximos de uma educação
cujo objetivo final é a contemplação. Estes requisitos
consistem no cultivo da inteligência pelas ciências que
envolvem maior grau de abstração e no aperfeiçoamento da
virtude pela ciência moral. Ambas estas coisas convergem para
a metafísica, da qual se origina a contemplação.
Pode-se chamar esta parte final da educação humana
de pedagogia consciente, na medida em que neste estágio o
aluno já deveria ter consciência do objetivo desta educação e
buscá-lo ele mesmo por iniciativa própria. Esta fase da
educação pode ainda ser chamada de consciente por oposição à
fase anterior, de que se tratará no próximo capítulo, em que
se examinam requisitos mais remotos da educação para a
sabedoria em que não se requer do aluno uma compreensão e
aceitação mais clara do fim último da educação que recebe.
Entre os requisitos próximos da educação para a
sabedoria, existe, porém, ainda um outro, que cabe ser
examinado à luz do que se disse a respeito da deleitabilidade
da contemplação. Pois haveria quem, tendo ouvido falar das
dificuldades a serem superadas para se alcançar a perfeita
contemplação, juntamente com a sua máxima deleitabilidade
quando alcançada, e considerando que esta fase final da
educação para a sabedoria pressupõe a consciência do aluno
sobre os seus fins últimos, poderia julgar que nesta mesma
suprema deleitabilidade da vida contemplativa estaria o
grande motor capaz de fazer o homem tomar a iniciativa de
vencer os obstáculos necessários para alcançá-la. Talvez
houvesse até quem, ouvindo falar coisas tão belas sobre a
vida contemplativa, já percebesse em si uma disposição para
interessar-se pelo assunto e iniciar uma caminhada própria.
Deve-se dizer, porém, que com motivações como
estas dificilmente tais pessoas chegarão aos objetivos que
pretendem. Levanta-se deste modo a questão de que tipo de
motivação a vida contemplativa exige da parte do homem para
que ele possa alcançar o objetivo de seus esforços. Esta
correta motivação é o primeiro dos requisitos imediatos da
educação para a sabedoria.
De fato, se a contemplação é, conforme mostramos,
o fim último da natureza humana, para que haja esperança
fundada de ser alcançada deve ser desejada de um modo
condizente ao fim último da natureza humana.
Ora, conforme os ensinamentos de S. Tomás de
Aquino, nenhuma forma de prazer, nem mesmo o prazer da
inteligência, pode ser o fim último do homem. Aspirar à vida
contemplativa, portanto, tendo como motor o desejo dela
própria sob a razão do prazer é algo que vai contra a
natureza humana; a natureza humana não é capaz de desejar
nenhuma forma de prazer como seu fim último; ainda que o
faça, haverá um momento em que ela haverá de perceber que
este objetivo não é capaz de satisfazê-la plenamente, chegado
o qual desistirá do que pretendia e partirá em de busca
outras metas para a sua vida.
Segundo Tomás de Aquino, portanto, nenhum prazer,
qualquer que seja ele, fosse até mesmo o prazer da
contemplação, pode ser o objetivo último da vida do homem.
De fato, o prazer, ou a deleitação, é o repouso de
uma faculdade apetitiva em um bem alcançado. Ora, se alguma
deleitação pudesse ser fim último do homem, seria algo
apetecível por si mesmo, porque a causa da deleitação é a
posse do bem (59). A deleitação, portanto, supõe uma ordenação
prévia do apetite ao bem que causa a deleitação; como ela
própria não é mais do que uma disposição ou repouso deste
apetite, ela também, enquanto tal, se ordena ao bem que é
causa de si mesma. Ora, o fim último não se pode ordenar a
outro,mas tudo se ordena a ele; fica claro, assim, que
nenhuma deleitação, por mais elevada e sublime que seja, pode
ser o fim último do homem.
A veracidade desta doutrina, diz ainda Tomás,
pode-se ver na própria ordem da natureza:
"A reta ordem das coisas",
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diz Tomás,
"convém com a ordem da natureza,
porque as coisas naturais
se ordenam ao seu fim sem erro.
Ora, nas coisas da natureza
a deleitação se dá por causa da operação,
e não vice-versa.
Vemos, de fato,
que a natureza colocou deleitações
naquelas operações dos animais
que são manifestamente ordenadas
a fins necessários,
como no uso dos alimentos,
que se ordenam à conservação do indivíduo,
e no uso do venéreo,
que se ordena à conservação da espécie,
pois se não houvesse tais deleitações,
os animais se absteriam de tais usos.
Vê-se, portanto,
que na natureza nenhuma deleitação
é fim último.
Ademais, a deleitação nada mais é
do que o repouso da vontade
em algum bem conveniente,
assim como o desejo
é a inclinação da vontade
em algum bem a ser alcançado.
Assim como o homem pela vontade
é inclinado ao fim
e repousa nele,
assim os corpos naturais
possuem inclinação natural
aos seus fins próprios,
os quais se aquietam
quando alcançam tais fins.
Ora,
não se pode dizer que o fim
dos corpos naturais
seja o próprio repouso
das inclinações que os movem;
se a natureza tencionasse de modo principal
o próprio repouso das inclinações,
já não daria as mesmas inclinações;
dá, entretanto, tais inclinações para que por elas
os corpos alcancem o fim que ela pretende,
alcançado o qual como a um fim,
segue-se o repouso da inclinação.
Assim, este repouso não é um fim,
mas algo concomitante ao fim.
Nem portanto a deleitação é um fim,
mas algo que é concomitante ao fim" (60).
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De argumentos como estes pode-se concluir que o homem que
fosse motivado em sua busca pela sabedoria pelo prazer que
esta poderia lhe proporcionar não poderia ter a constância
necessária para concluir este empreendimento. Tal prazer não
poderia ser o seu fim último e, deste modo, assim que de
alguma maneira ele se apercebesse disso, acabaria por voltar-
se para outros objetivos.
Prazer algum pode ter força suficiente para ser a
motivação condutora do homem à vida contemplativa que viemos
descrevendo neste trabalho. Como a contemplação é o fim
último conveniente à natureza do homem, somente pode ser
motivação suficiente para um empreendimento deste porte
aquilo que, por sua natureza, seja a maior de todas as forças
que possa atuar sobre o homem.
Mas, além desta, existe ainda uma outra razão para
que isto seja assim.
As pessoas que partem em busca da sabedoria, no
início de suas buscas contam de modo fundamental com o
auxílio de sua própria motivação inicial. Ora, a sabedoria é
uma forma superior de conhecimento que pré-exige, por
natureza, uma ordenação completa de todo conhecimento
possível; ordenar, porém, é um ato da razão, e não da
vontade; nenhum prazer,portanto, será capaz de provocar uma
ordenação do conhecimento capaz de gradativamente conduzir à
sabedoria. Somente uma motivação de natureza intelectiva será
capaz de detonar os movimentos da alma que irão formar o
homem sábio.
São motivações desta natureza que observamos na
vida daqueles que se tornaram sábios. Já comentamos nas notas
biográficas do capítulo primeiro deste trabalho como Tomás de
Aquino, quando contava entre 10 e 14 anos e era aluno oblato
no Mosteiro Beneditino de Monte Cassino, foi visto diversas
vezes perguntando aos seus mestres:
e não se contentar com as respostas que lhe davam, pois quem
se contenta com a resposta não a repete diversas vezes, e na
biografia original de Pedro Calo lemos que o jovem, nesta
época,
"perguntava ansiosa e freqüentemente
ao seu mestre o que é Deus" (61).
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De fato, perguntas como estas não podem ser respondidas com
uma simples frase; mas sucede às vezes que algumas pessoas,
não importa qual seja a resposta que se lhes dê, percebem que
há algo de mais profundo por trás delas; pressentem que há,
por trás delas, um universo, algo tão grande que lhes chama
poderosamente a atenção de algo dentro deles que as demais
coisas não conseguem despertar, daí provindo o fato de
repetirem a pergunta tão ansiosamente, segundo o dizer de
Pedro Calo. Porém, não obstante pressentirem a profundidade
de tais perguntas, no início tais pessoas ainda não são
capazes de compreender que uma questão colocada nestes termos
não pode ser respondida com uma sentença de poucas palavras,
qualquer que seja o modo de respondê-las; daí o fato de a
repetirem tantas vezes a tantas pessoas diversas quantas
forem as que supõem que sejam capazes de respondê-las. Mas
ainda que encontrassem quem fosse capaz de respondê-las, a
resposta não lhes satisfaria, pois, de fato, perguntas como
estas são de natureza tal que só podem ser respondidas
ordenando a elas o conhecimento de todas as coisas, e é isto
que as pessoas que as fazem como que já antevêem nelas.
Assim, quando S. Tomás não se contentava com as respostas
corretas que seus mestres lhe davam, isto não era mais do que
um indício de que, de um modo ainda confuso, ele tinha
percebido nesta pergunta a própria natureza da verdade, e era
esta apreensão da verdade contida nesta pergunta que pode-se
dizer ter sido, até o fim de sua vida, o motor de sua busca
pela sabedoria.
Não é outra coisa que transparece no relato de sua
vida que nos deixou Guilherme de Tocco:
"Quando, ainda criança,
começou a ser educado no mosteiro
sob a disciplina de um mestre,
foi indício certo de seu aproveitamento futuro
que de um modo admirável,
como que conduzido por um instinto divino,
tivesse começado a perguntar-se a respeito de Deus
mais madura e ansiosamente
do que todos os demais" (62).
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No capítulo III deste trabalho tivemos a
oportunidade de citar outro exemplo de como isto ocorre; a
pergunta era outra, mas novamente tratava-se de uma questão
que só podia ser respondida pela própria ordenação total do
cosmos. Estamos nos referindo ao caso de Raissa Maritain,
quando, ao procurar a Universidade de Paris, ela diz que
buscava nesta instituição
"aqueles professores que,
sem que eu os interrogasse,
vão certamente responder todas as minhas perguntas,
dar-me uma visão ordenada do universo,
pôr todas as coisas no seu verdadeiro lugar,
depois do que saberei,
eu também,
qual é o meu lugar neste mundo
e se posso ou não aceitar a vida que não escolhi.
O que me move não é a curiosidade,
não estou ávida de saber uma coisa qualquer,
ainda menos de saber tudo.
Só procuro verdadeiramente aquilo de que preciso
para justificar a existência,
aquilo que me parece necessário
para que a vida humana não seja absurda e cruel.
Procuro a luz da certeza,
uma regra de vida
fundada numa verdade sem falhas" (63).
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É somente uma disposição como esta, fundamentada na percepção
inicial de que tal pergunta tem realmente resposta, e não o
prazer da busca, que pode conduzir o homem à contemplação de
que viemos tratando neste trabalho.
Foi este o caso também da vida e da obra de São
João da Cruz. Ainda jovem, consta ter ele começado a se
preocupar em perguntar-se, de um modo que lembra muito a
atitude de Tomás de Aquino, o que é a contemplação. Alguma
coisa neste assunto lhe chamou a atenção de um modo muito
especial; João percebeu que por trás dele havia algo de uma
profundidade tão extraordinária que qualquer outro objetivo
sério para a sua vida seria uma brincadeira perto daquele;
ele não era capaz de explicar ao certo o que era, mas era
evidente que aquilo estava ali. De fato, esta é outra
daquelas perguntas atrás das quais se esconde um universo, e
foi ela que permitiu a João da Cruz proceder àquela tão
extraordinária ordenação do conhecimento tão evidente em sua
obra e que leva a marca inconfundível dessa sua pergunta
inicial. Na melhor e mais bem documentada biografia de São
João da Cruz pode-se ler o seguinte a respeito de sua
juventude:
"Consta que por aqueles dias,
(isto é, quando se preparava
para iniciar o seu curso de Teologia),
frei João começou a se preocupar
com o problema místico.
José de Jesus Maria,
que se informou com os condiscípulos
do próprio frei João,
fala do estudo especial que ele iniciou
sobre os autores místicos,
particularmente de São Dionísio
e de São Gregório.
Interessa-lhe determinar
a natureza da contemplação" (64).
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Um outro exemplo de uma pergunta como estas, na
qual se esconde o mistério de todas as coisas e que, para
respondê-la, é necessário uma ordenação ou uma reordenação de
todo o conhecimento, é a seguinte:
Pois, senão por uma quantidade quase inumerável de outras
razões, no Evangelho encontra-se a seguinte promessa de
Cristo:
"Se permanecerdes nas minhas palavras,
sereis verdadeiramente meus discípulos;
e conhecereis a verdade,
e a verdade vos tornará livres". |
Portanto, o Evangelho promete àqueles que o seguem o
conhecimento da verdade; o que significa que, a menos que se
julgue que o Evangelho seja uma brincadeira, deve-se concluir
que a própria natureza da verdade está escondida na pergunta
sobre o Evangelho.
Modernamente nas Universidades e entre aqueles que
se dedicam às ciências não se fazem perguntas como estas que
exigem uma pré ordenação de todo conhecimento e que, por
causa disso mesmo, conduzem à contemplação.
Os homens de ciência que mais têm afinidade para com estas
disposições capazes de levar o homem à sabedoria
provavelmente são os físicos teóricos, como aqueles que se
dedicam ao estudo da relatividade e à busca da teoria do
campo unificado. Entretanto, apesar do modo como estas
questões são colocadas entre os físicos teóricos terem muito
do que faz lembrar as disposições iniciais do homem sábio,
trata-se de uma semelhança limitada e apenas sob alguns
aspectos. O modo como os físicos e outros cientistas têm
colocado estas questões é tal que já de partida restringem as
possibilidades da resposta, e isto ocorre por duas razões.
A primeira razão está em que, direta ou
indiretamente, os físicos não estão dispostos a aceitar senão
aquilo que possa ser verificado pelo método experimental.
Ora, isto significa negar o caráter inteligível do cosmos,
pois os instrumentos de laboratório responsáveis pela
experimentalização não são mais do que um prolongamento da
vida sensorial do homem.
Uma atitude semelhante a esta é a de descartar
todo conhecimento que não possa ser expresso em números, ou
pelo menos forçar todo conhecimento a ser expresso
matematicamente. Ora, os números não ultrapassam nas coisas o
nível da quantidade, que é uma característica material; um
conhecimento de objetos puramente inteligíveis, portanto, não
pode ser enquadrado nem na categoria da experimentalização
nem na categoria da expressão matemática por uma questão de
exigência intrínseca. Quando os homens de ciência pretendem,
por causa disso, que as respostas às suas indagações se
enquadrem ao critério da verificação por um experimento de
laboratório ou ao critério da quantização matemática estão
com isso automaticamente impedindo que suas perguntas os
conduzam àquele conhecimento que a filosofia denomina de
sabedoria, que transcende inteiramente o nível sensorial e da
quantificação numérica.
Expressa-se muito bem a este respeito L. J. Lauand
em seu livro sobre a filosofia da educação de Josef Pieper:
"É importante destacar a diferença
entre ciência e cientificismo:
cientificismo é uma posição filosófica,
e não científica,
que considera válido
somente o conhecimento científico.
Há uma sentença do físico Lord Kelvin
que resume em si o cientificismo:
`Todo conhecimento
que não pode ser expresso em números
é de qualidade pobre e insatisfatório'.
A ciência e a técnica, hoje,
deslumbram tanto
que quase não se questiona uma mentalidade
como a representada por uma posição como esta.
Aplicando à sentença de Lord Kelvin,
e ao cientificismo em geral,
o seu próprio critério de avaliação,
resulta que também ela,
e o cientificismo em geral,
é de qualidade pobre e insatisfatória,
pois tal sentença não se deixa expressar em números.
Pieper investe contra as filosofias
que pretendem que o único conhecimento
com sentido e conteúdo
seja o que se possa expressar
em enunciados protocolares.
Ele afirma que só podemos expressar
protocolar ou numericamente
realidades de menor importância" (65).
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Mas temos ainda, além desta, outra razão pela qual as
questões levantadas pelos físicos, não obstante a sua
semelhança com as perguntas que se fazem os sábios, não podem
conduzi-los à sabedoria. É que os físicos delimitam
previamente o campo em que se dispõem a buscar suas respostas
à própria área da Física. À primeira vista pode parecer
natural que tenha que ser assim; dentro da metodologia de
cada ciência particular esta atitude pode ser até
justificável. Porém o fato é que, justificável ou não, não
deixa de ser verdade que, ao mesmo tempo, uma atitude como
esta não pode conduzir à sabedoria, nem à contemplação. O
sábio não põe limites à sua busca; ao contrário, ele tem que
estar aberto para a totalidade do conhecimento seja qual for
o campo de origem da pergunta que tenha sido o seu ponto de
partida. Ainda segundo L. J. Lauand,
"em filosofia os objetos
não devem ser analizados
de um ponto de vista limitado
como nas ciências,
mas deve perguntar-se pela totalidade.
Decorre desta linha de pensamento
uma distinção extremamente importante
que Pieper estabelece
sobre os diferentes critérios de rigor
e os diferentes modos de "ser crítico"
que vigem para o conhecimento.
Há, claramente,
duas formas de ser crítico.
Há uma forma muito especial de `ser crítico',
diferente da atitude crítica que, legitimamente,
vige no âmbito da ciência.
Para o cientista, quer dizer,
para aquele que procura uma resposta exata
para uma determinada questão particular,
ser crítico significa não admitir como válido
nada que não tenha sido comprovado,
não deixar passar nada.
Mas para aquele que indaga pelas conexões totais,
pelo último significado do mundo e da existência,
ser crítico é algo de fundamentalmente diferente,
a saber, significa ocupar-se,
com a máxima vigilância,
que do todo do real e do verdadeiro
nada lhe escape" (66).
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Ora, uma pessoa animada com disposições tais como as que são
aqui descritas, que, sem preconceitos, se abre para a
totalidade, é alguém que em sua busca está sendo movido pela
própria verdade, não pelo prazer. Uma pessoa assim não se
dará por satisfeita com uma verdade qualquer; ela como que
apreendeu por antecipação a natureza de uma verdade que é
capaz de justificar todas as demais verdades, uma verdade que
não pode ser objeto de método experimental, mas apenas de
contemplação do intelecto.
Esta percepção inicial da natureza da verdade não é tudo para
se alcançar a vida contemplativa; a realização do bem diz
o Comentário ao IIIº da Ética, exige a concorrência de
muitas causas; mas para a realização do mal é suficiente a
falha de apenas uma delas. Entretanto, é correto dizer que,
sem a força desta verdade não é possível possuir-se a
motivação que é necessária para se conduzir o homem à
contemplação com a perseverança que se requer para fundar uma
esperança de êxito.
As conseqüências pedagógicas do que acaba de ser
exposto são bastante claras. Nenhuma verdade, nem mesmo a
verdade, pode mover o homem se não for, de alguma maneira,
apreendida pela inteligência. A perseverança necessária no
trabalho do desenvolvimento da inteligência e da virtude na
fase intencional da educação para a contemplação, portanto, é
uma disposição da vontade que supõe uma apreensão inicial,
ainda que imperfeita, da própria verdade. Esta apreensão pode
provir das origens mais diversas; pode ter sua origem na
percepção da ordem do cosmos ou da natureza da alma humana;
pode provir de um estudo dos textos dos filósofos gregos, ou
da reflexão sobre os livros das Sagradas Escrituras; supõe,
por sua vez, na maioria dos casos, a fase não intencional da
educação que a precede, na qual se inclui uma razoável vida
das virtudes mas em que o aluno ainda não tem uma percepção
clara do problema do fim último do homem. Esta primeira
apreensão da verdade é necessária também por se constituir
naquilo em torno do qual se ordenará a experiência e o
conhecimento adquiridos que irão preparar a natureza
intelectiva para a virtude da sabedoria. O simples prazer ou
o desejo baseado na apreensão de um aspecto secundário da
sabedoria não seria motivação suficiente para produzir a
perseverança necessária para semelhante trabalho por não
condizer com sua natureza de fim último; muito menos seria
capaz de conduzir o trabalho de ordenação do conhecimento e
da experiência que a sabedoria exige.
Disto tudo se segue que é exigência da educação
para a Sabedoria que na sua fase intencional o professor, ou
quem faz as suas vezes, seja capaz de despertar no aluno esta
apreensão inicial da verdade, sem a qual se torna impossível
o próprio trabalho pedagógico. Temos com isto que a própria
verdade é o caminho que conduz à verdade, e nela, por sua
vez, consiste a vida mais profunda do homem. O professor que
procura despertar no aluno esta apreensão inicial da verdade
faz com que o aluno passe a ser conduzido pela maior de todas
as forças que pode agir sobre o homem.
S. Tomás afirma explicitamente que a verdade é a
maior de todas as forças que podem agir sobre o homem e,
neste sentido, a mais apta para conduzi-lo ao seu fim último.
Ele fêz tal afirmação sobre a força da verdade certa vez,
durante um exercício acadêmico que costumava ser realizado
pelas universidades medievais duas vezes ao ano, na época da
Páscoa e do Natal.
Sob a coordenação de um moderador, um mestre
deveria responder às questões propostas pelos alunos, que
poderiam partir de quem quer que fosse e versar sobre
qualquer tema de Teologia, filosofia ou ciências afins, em
qualquer ordem. Daí o nome de Quaestiones Quodlibetales que tal
exercício recebia, pois Quodlibet em latim significa qualquer
que seja. As Quodlibetales em que participou Tomás de Aquino
tornaram-se famosas; eram anotadas e posteriormente foram
reunidas em uma obra com este nome. Ainda vivo Tomás de
Aquino, códices manuscritos das questões quodlibetales em que
ele participou se espalharam pelas bibliotecas da Europa.
Ora, sucedeu que em uma destas quodlibetales
levantou-se um aluno e perguntou a Tomás o seguinte:
"Mestre,
o que é mais forte:
o rei,
a verdade,
o vinho,
ou as mulheres?
Pois no IIIº Livro de Esdras,
(um apócrifo do Velho Testamento),
está escrito:
`Não é grande a verdade,
e mais forte do que tudo?'
No entanto,
o vinho altera completamente o homem,
e o rei consegue obrigá-lo a expor-se
até ao perigo de morte,
que é, entre todas as coisas,
o que há de mais difícil.
E as mulheres, então?
Pois estas conseguem
dominar até os reis" (67).
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À primeira vista, uma pergunta como esta parece mais uma
brincadeira do que algo para ser levado a sério. Mas, a
julgar pelo que a História nos reporta sobre Tomás de Aquino,
em vez de tomá-la por brincadeira, logo de partida ele deve
ter-se surpreendido pela seriedade com que lhe pareceu ter
sido formulada a questão.
Respondeu, então, o seguinte:
"Nesta questão que nos é proposta pelos jovens
deve-se considerar primeiro
que estas quatro coisas,
isto é,
o vinho, o rei,
as mulheres e a verdade,
não são comparáveis segundo si mesmas,
pois não são todas de um único gênero.
Todavia, poderemos compará-las
se as considerarmos segundo sua concorrência
sobre um mesmo efeito,
isto é, o coração do homem.
Consideremos no homem,
em primeiro lugar,
o apetite concupiscível,
relacionado com o desejo venéreo.
Sobre ele, enquanto tal,
age a mulher.
Segundo um determinado aspecto,
portanto,
na medida em que age sobre o concupiscível,
a mulher é a maior força que existe sobre o homem.
Consideremos porém,
em segundo lugar,
o apetite irascível,
relacionado com o temor da morte.
Sobre ele, enquanto tal,
age o rei, através de seu exército.
Segundo um determinado aspecto,
portanto,
na medida em que age sobre o irascível,
o rei é a maior força que existe sobre o homem.
Consideremos,
em terceiro lugar,
a imaginação.
Sobre ela age, enquanto tal,
o vinho, pelo seu efeito embriagante.
Segundo um determinado aspecto,
portanto,
na medida em que age sobre a imaginação,
o vinho é a maior força que existe sobre o homem.
Consideremos,
em quarto lugar,
a potência intelectiva,
cujo bem, enquanto tal,
é a verdade.
Segundo um determinado aspecto,
isto é,
na medida em que é o bem e a perfeição da inteligência,
a verdade é a maior força que existe sobre o homem.
Considerando, porém,
que o homem é por natureza
um animal racional,
em que todas as potências se ordenam
a uma submissão à inteligência,
as corporais se submetendo às animais
e estas às intelectuais,
deve-se dizer que,
não sob um determinado aspecto,
mas simplesmente falando,
a verdade é a maior força que existe sobre o homem" (68).
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Cumpre notar que esta resposta de Tomás, no seu texto original,
nos foi transmitida de um modo visivelmente resumido
e truncado em algumas partes. Tomamos por isto a liberdade
de melhorar a redação do texto original com o necessário respeito ao
conteúdo e à intenção do autor. De qualquer maneira, porém,
pode-se ver como nesta Quodlibet Tomás afirmou
explicitamente ser a verdade a maior força que pode agir
sobre o homem; mas ainda que não houvesse este texto, a mesma
coisa poderia ter-se depreendido de passagens como a
seguinte, em que Tomás diz que a verdade é o fim último do
homem, de onde se infere ser a verdade para o homem o motor
de todos os motores, assim como a causa final é dita ser a
causa que move as demais causas:
"Se, portanto,
a felicidade última do homem não consiste
nas coisas exteriores que são ditas bens da riqueza,
nem nos bens do corpo,
nem nos bens da alma quanto à parte sensitiva,
nem nos bens da alma quanto à parte intelectiva
segundo os atos das virtudes morais,
nem segundo os atos das virtudes intelectuais
que dizem respeito às ações,
como são a arte e a prudência,
resta-nos dever afirmar
que a felicidade última do homem
não pode estar senão na contemplação da verdade" (69),
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o que é a mesma coisa que dizer simplesmente a verdade, pois
a verdade, no seu sentido mais pleno, não pode ser alcançada
pelo homem senão pela contemplação.
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