|
É próprio da justiça, entre todas as demais
virtudes, ordenar o homem nas coisas que se relacionam a
outro. A justiça, como o próprio nome denota, importa numa
certa equalidade, já que vulgarmente dizemos ajustar as
coisas que entre si adequamos; ora, toda equalidade é dita em
relação a outro (92). À justiça pertence, pois, dar a cada um
o que é de seu direito (93).
Por causa disto a justiça difere das demais
virtudes na medida em que outras virtudes como a fortaleza e
a temperança aperfeiçoam o homem nas coisas que lhe convém
segundo si mesmo; o que é reto nas obras da fortaleza e da
temperança é tomado por comparação ao agente, segundo que a
obra da virtude seja feita de uma certa maneira por este
agente. Mas na obra da justiça o reto é constituído por
comparação a outro, independentemente de sua comparação para
com o agente (94).
O sujeito da virtude da justiça é a vontade,
porque somos ditos justos por agirmos retamente em algo. Ora,
os princípios próximos das ações são as forças apetitivas;
existem, porém, dois apetites, isto é, a vontade, que está na
razão, e o apetite sensível, que se segue à apreensão dos
sentidos. Pertence, porém, à justiça, dar a cada um o que é
de seu direito; dar a cada um o que é de seu direito,
entretanto, não pode provir do apetite sensível, porque a
apreensão sensível não se pode estender à consideração da
proporção de uma coisa a outra, o que é próprio da razão.
Daqui deve-se inferir que a justiça não pode estar no
irascível ou no concupiscível como em seu sujeito, mas
somente na vontade (95).
Há três diferenças entre a justiça e as demais
virtudes morais como a fortaleza e a temperança. A primeira é
que a fortaleza e a temperança são acerca das paixões,
enquanto que a justiça é acerca das operações; na fortaleza e
temperança se considera principalmente como o homem é
interiormente disposto segundo as paixões, enquanto que
aquilo que exteriormente opera não é considerado senão como
algo conseqüente, na medida em que as operações exteriores
provém das paixões interiores; na justiça, entretanto,
leva-se principalmente em consideração aquilo que o homem
exteriormente opera, enquanto que como ele está interiormente
disposto não é considerado senão por conseqüência, na medida
em que alguém é ajudado ou impedido pelas suas disposições
interiores acerca das operações (96). De fato, segundo as
paixões interiores, que são moderadas pela fortaleza e
temperança, considera-se a retificação do homem em si mesmo;
pelas ações exteriores e pelas coisas exteriores, que os
homens podem comunicar entre si, é tomada a ordenação de um
homem a outro. Portanto, como a justiça se ordena ao outro,
não será acerca de toda a matéria da virtude moral, mas
apenas acerca das ações e coisas exteriores segundo a razão
especial de seu objeto, isto é, na medida em que segundo elas
o homem se ordena a outro (97).
A segunda diferença entre a justiça e as demais
virtudes morais como a fortaleza e a temperança é que na
fortaleza e temperança o termo médio da virtude é determinado
pela razão em relação a nós; já na justiça o termo médio é
tomado em relação à coisa (98). De fato, as outras virtudes
morais além da justiça são principalmente acerca das
paixões, cuja retificação é tomada em relação ao próprio
homem de quem são estas paixões, na medida em que este homem
se ira ou cobiça do modo devido segundo as diversas
circunstâncias; portanto, o termo médio de tais virtudes não
é tomado segundo a proporção de uma coisa a outra, mas
somente por comparação ao próprio virtuoso. Já a matéria da
justiça é a operação exterior, segundo a qual a operação ou a
coisa da qual nós fazemos uso possui uma devida proporção a
uma outra pessoa; por isso o termo médio da justiça consiste
em uma certa proporção da coisa exterior à pessoa exterior,
de onde que a razão determinará o termo médio da justiça na
coisa, e não em relação a nós (99).
A terceira diferença entre a justiça e as demais
virtudes morais está em que a justiça, ao contrário das
demais virtudes, que são um termo médio entre duas malícias,
é um termo médio mas não entre dois vícios opostos. A justiça
é um termo médio entre fazer o injusto e padecer o injusto;
fazer o injusto é ter mais do que é devido enquanto que
padecer o injusto é ter menos do que a si é devido por ser
disto privado por alguém; o ato da justiça é fazer o igual,
que é o termo médio entre o mais e o menos. Ora, fazer o
injusto pertence à malícia, que é a injustiça, mas padecer o
injusto não pertence a nenhuma malícia, sendo mais uma pena
sofrida do que uma malícia (100).
Cabe à virtude da justiça não somente produzir as
ações justas, pelas quais nos ordenamos retamente aos outros,
mas também proferir julgamentos corretos.
No seu uso mais comum, a palavra julgamento
significa a correta determinação de qualquer coisa, tanto no
que é especulativo como no que é prático; entretanto, segundo
seu primeiro significado, julgamento significa a correta
determinação do justo. Tomado neste sentido, o julgamento é
um ato da virtude da justiça (101), porque definir algo
corretamente em qualquer obra da virtude é coisa que procede
do próprio hábito da virtude; assim como o casto é quem
determina corretamente aquilo que pertence à castidade, assim
também o julgamento, que importa na correta determinação do
que é justo, é algo que pertence propriamente à virtude da
justiça (102). Na medida em que o julgamento é um ato da razão
prática, é um ato da prudência; mas na medida em que para
proferir este julgamento é necessário possuir a idoneidade
que predispõe ao julgamento correto, o julgamento é ato da
virtude da justiça (103).
O exercício da virtude da justiça, diz o
Comentário à Ética, é mais difícil do que o exercício da arte
da Medicina. Nem todos reconhecem isto, e algumas pessoas
pensam não ser necessária grande virtude para conhecer o que
é justo e injusto, bastando para isto entender as coisas que
são ditas pela lei, que é o direito positivo. Mas estas
pessoas, continua o Comentário, se enganam, porque a letra da
lei, considerada de modo simples, não é o Direito a não ser
circunstancialmente. O verdadeiro Direito consiste em operar
e distribuir, isto é atribuir, de modo correto, os negócios e
as pessoas. Ora, acomodar convenientemente os negócios e as
pessoas é mais trabalhoso e mais difícil do que conhecer o
que é sanativo, em que consiste toda a arte da Medicina, pois
é maior a diversidade das coisas voluntárias nas quais
consiste a justiça do que a das compleições em que consiste a
saúde (104). Por isso é que os homens, quando duvidam do termo
médio entre o lucro e o prejuízo, recorrem ao juiz (105): o
julgamento é o ato próprio do juiz enquanto juiz; a própria
palavra juiz vem do latim judex que significa jus dicens,
isto é, aquele que diz o justo (106). Quando as pessoas
recorrem, porém, ao juiz, procedem da mesma maneira como se
estivessem se refugiando no que é justo, porque o juiz para
julgar corretamente deve ser como que animado pelo que é
justo de tal modo que a sua alma seja totalmente possuída
pela justiça (107); os homens, na verdade, recorrem ao juiz
assim como a uma justiça personificada (108). E esta função do
juiz, que exige dele uma alma tão impregnada pela justiça a
ponto de torná-lo como que uma personificação desta virtude,
é ato da virtude da justiça e é mais difícil do que a própria
arte da Medicina.
Na verdade, a justiça tem lugar de preeminência
entre todas as virtudes morais, não apenas por parte do
sujeito, porque está numa parte mais nobre da alma, isto é,
no apetite racional, ou seja, na vontade, enquanto que as
demais virtudes morais estão no apetite sensível, ao qual
pertencem as paixões, matéria das demais virtudes morais; mas
também por parte do objeto, porque as outras virtudes são
louvadas segundo o bem próprio do virtuoso, enquanto que a
justiça é louvada na medida em que o virtuoso se encontra bem
para com o outro: de fato, a justiça, de certa forma, é o bem
do outro (109). Apesar da fortaleza dizer respeito a coisas
mais difíceis do que a justiça, isto é, acerca dos perigos de
morte, a fortaleza não é mais nobre do que a justiça, porque
embora ela seja acerca de coisas mais difíceis, a justiça diz
respeito a coisas melhores, sendo útil na paz e na guerra,
enquanto que a fortaleza é útil apenas na guerra (110).
|