IV.16.

A percepção da inteligência por ela mesma, segundo S. Tomás de Aquino.

Por causa de passagens como estas e outras devidas a Santo Agostinho muitos supuseram que a inteligência humana fosse capaz de uma percepção direta dela própria.

Entretanto S. Tomás nega que isso seja possível à inteligência humana, e nega inclusive que tenha sido isto que Santo Agostinho tenha ensinado.

A inteligência humana, diz Tomás, é capaz de conhecer sua própria essência, não porém através de sua própria essência, isto é, por um conhecimento direto de sua própria essência, mas através de seus atos, isto é, através da percepção da própria atividade intelectiva:

"a mente não pode inteligir a si mesma
de tal modo que apreenda a si própria
de modo imediato",

diz Tomás de Aquino (66).

De fato, diz Tomás, qualquer potência cognoscitiva conhece necessariamente em ato tudo aquilo que está presente nela própria. Ora, a inteligência está sempre presente em ato na própria inteligência; se, portanto, a inteligência conhecesse a sua essência de modo imediato por meio dela própria, teria uma intelecção contínua em ato de si própria, isto é, sempre se inteligiria a si mesma, o que sabemos ser falso por experiência. Portanto, a inteligência não pode conhecer a si própria por uma percepção direta da própria essência (67).

Ademais, o conhecimento que se realiza através de algo naturalmente existente dentro de nós é um conhecimento natural como o conhecimento dos primeiros princípios da demonstração. Se, portanto, nós conhecemos a essência da inteligência através da percepção imediata de sua própria essência, esta seria conhecida por modo de natureza. Nas coisas, porém, que são conhecidas por modo de natureza não é possível que o homem se engane, assim como no conhecimento dos princípios indemonstráveis ninguém erra. Ninguém, portanto, erraria também no conhecimento da natureza da inteligência se ela se conhecesse de modo imediato em sua própria essência; o que, porém, não é o que acontece, pois há muitos que opinam a inteligência ser de natureza corpórea. Portanto, a inteligência não se conhece a si própria por percepção direta de sua essência (68).

Como se explicam, então, as palavras de Santo Agostinho?

"É evidente",

diz Tomás,

"que Santo Agostinho não quiz ensinar
que a alma se intelige a si mesma
por si mesma"
(69).

Ele pede para examinar mais atentamente as palavras de Agostinho:

"A alma,
ao buscar o conhecimento de si mesma,
não deve buscar-se como a algo ausente,
mas procure perceber-se como presente;
não busque conhecer-se
como se já se conhecesse,
mas distingua-se
das demais coisas que conhece".

Estas palavras, atentamente examinadas, mostram que Santo Agostinho não quiz dizer que a inteligência pode ter uma percepção direta de sua própria essência. Diz Agostinho que a alma deve buscar o conhecimento de si mesma distinguindo-se das demais coisas que conhece. Ora, se ela conhecesse diretamente a si mesma, deste conhecimento se seguiria o conhecimento de sua distinção das demais coisas:

"É pelo conhecimento da essência da coisa
que distinguimos uma coisa das demais",

diz Tomás de Aquino (70). Mas, se precisamos conhecer as demais para, por distinção, conhecer a essência da coisa, é porque conhecemos esta essência de modo indireto, através de outra, e não dela própria. A inteligência, de fato, "percebe-se ser pela percepção de sua atividade" (71):

"Ninguém se percebe inteligir
a não ser inteligindo.
Antes de inteligir seu próprio inteligir,
é necessário inteligir algo;
é através disto que a alma chega
à percepção total de seu ser,
isto é,
pelo fato de ter inteligido ou sentido"
(72).

"Portanto,
não é pela sua essência,
mas pelo seu ato
que o intelecto se conhece a si mesmo.
O homem conhece ter uma alma intelectiva
pela percepção de seu inteligir"
(73).

"Esta foi também a opinião de Aristóteles,
pois ele afirma no De Anima
que o intelecto se intelige a si próprio
do mesmo modo como intelige às demais coisas;
ora, o intelecto intelige pelas espécies inteligíveis,
pelas quais se torna inteligível em ato;
(segue-se que não se intelige pela sua essência),
mas por uma espécie inteligível
(que ele por abstração faz de si mesmo)
a partir da percepção de sua atividade intelectiva"
(74).

Conclui-se daqui que é possível para o homem a percepção da própria faculdade intelectiva, mas apenas de modo indireto; esta percepção não é uma atividade sensorial, mas algo em que necessariamente está envolvida a própria atividade da inteligência.

Por causa disso, quando a inteligência se busca a si mesma, num primeiro momento pode parecer-lhe ter alcançado a sua própria essência; a análise mais profunda desta percepção, mostra, entretanto, que apesar de se tratar de um verdadeiro conhecimento intelectivo, há um conhecimento direto apenas do ato de inteligir, não da própria inteligência.

Por esta razão pode-se cair na posição oposta e negar que exista uma essência da inteligência; isto é, negar que haja uma substância inteligente, mas apenas uma atividade inteligente. Os que caem nesta posição demonstram uma capacidade introspectiva muito maior do que aqueles que interpretam as palavras de Santo Agostinho no sentido oposto. Se alguém se dedicasse ao conhecimento de si próprio com o intuito de perceber que nada do que se apreende é a essência da alma estaria, com isto, além de desenvolver a capacidade de introspecção, trabalhando a própria faculdade intelectiva do homem, que é a faculdade envolvida neste conhecimento. Mas isto não valeria como demonstração ontológica da inexistência de uma essência da alma; de fato, diz Tomás de Aquino, uma percepção direta da essência da inteligência por ela mesma é algo que pertence de modo próprio às substâncias superiores ao homem (75).



Referências

(66) Quaestiones Disputatae De Veritate, Q.10 a. 8.
(67) Summa contra Gentiles, III, 46.
(68) Idem, loc. cit.. (69) Idem, loc. cit.. (70) Idem, loc. cit.. (71) Idem, loc. cit..
(72) Quaestiones Disputatae De Veritate, Q.10 a.8.
(73) Summa Theologiae, Ia, Q.87 a.1.
(74) Summa contra Gentiles, III, 46.
(75) Summa Theologiae, Ia, Q.56 a.1.