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Já examinamos como segundo S. Tomás de Aquino é possível
dentro do âmbito do próprio sentido a percepção da apreensão sensível.
Esta percepção é realizada pela imaginação, ligada aos sentidos internos
do homem.
Ficou para ser explicado como percebemos que percebemos as
operações do sentido. No De Anima Aristóteles levantou esta questão, mas
não a respondeu. Tomás de Aquino, comentando a passagem (56), levantou
também a questão, mas igualmente não a respondeu. Os elementos e os
princípios da resposta que teria dado encontram-se espalhados pelo
restante de suas obras.
O que o sentido vê é o sensível externo, mediante uma forma sensível
impressa pelo objeto no sentido. Esta forma sensível, continuando a
existir como fantasia mesmo após a cessação das ações do sensível
externo, faz com que os sentidos internos possam perceber que vemos.
Os sentidos internos vêem a cor, não a cor do objeto,
mas a fantasia, isto é, a cor tal como foi vista pelos olhos;
ao fazerem isto, podem julgar acerca da percepção do
órgão provocado pelo sensível externo.
Ora, a fantasia por sua vez é objeto da inteligência.
Através da inteligência será possível perceber que percebemos a operação
dos sentidos. E também, além disso, ao contrário dos sentidos, a
inteligência pode perceber a percepção que ela própria tem das
atividades das demais faculdades que lhe são anteriores. A inteligência
pode fazer isto por causa da sua imaterialidade. Há duas passagens da
Summa contra Gentiles que mostram ser esta a opinião de S. Tomás:
"Nenhum sentido conhece a si mesmo
nem à sua operação;
a vista, de fato, não vê a si mesma
nem se vê estar vendo.
Isto é algo que pertence
a uma potência superior.
O intelecto, porém,
conhece a si mesmo
e se conhece inteligir" (57).
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"A ação de nenhum corpo
se reflete sobre o próprio agente,
(isto é, nenhum agente corporal
pode mover a si próprio).
De fato, demonstra-se
no VII e no VIII Livros da Física
que nenhum corpo pode mover a si mesmo
senão segundo a parte,
isto é, na medida em que uma parte
seja movente e a outra movida.
Ora, o intelecto agindo
se reflete sobre si mesmo,
pois intelige a si próprio,
não apenas segundo uma parte,
mas segundo o todo.
Portanto, não é um corpo" (58).
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Estas passagens mostram que, segundo S. Tomás, somente uma faculdade
imaterial pode apreender-se a si mesma. O sentido, sendo corporal, não
pode apreender-se senão em parte, na medida em que uma parte, o sentido
interno, apreende a atividade do sentido próprio; mas não há uma outra
parte do sentido que possa depois apreender a atividade do sentido interno.
Esta só pode ser apreendida pela inteligência, que por fim, por
ser imaterial, apreende também a si própria.
Isto significa que os animais brutos possuem alguma
percepção de sua própria atividade cognoscitiva, mais ou menos perfeita
de acordo com a perfeição de seus sentidos
próprios e internos, mas sempre parcial. Não possuindo intelecto, para
que um animal pudesse ter uma percepção total de sua atividade
cognoscitiva teria que possuir um número infinito de faculdades
sensitivas, o que é impossível. Somente no homem, em virtude da
imaterialidade da atividade do intelecto, é que é possível uma percepção
total da atividade cognoscitiva.
Por que o intelecto pode perceber sua própria atividade e o
sentido não?
Porque o intelecto, por causa de sua imaterialidade, é
capaz de uma abstração que vai até o ser; ele apreende todas as coisas
sob a razão do ser; o ser se estende a todas as coisas sem exceção; ele
pode apreender, por isto, o próprio ato de sua intelecção não enquanto
uma intelecção mas enquanto ser; e daí, pelas propriedades que se seguem
ao ser enquanto tal, pode por inferência conhecer não apenas a sua
própria atividade, mas até a si mesmo, isto é, a própria faculdade em
que se produz aquela atividade.
Já o sentido percebe a forma sensível do objeto em um órgão
corporal; a matéria em que é recebida esta forma é a matéria do órgão do
sentido; não é a mesma, nem é semelhante à do objeto, mas sua presença é
suficiente para que a forma recebida seja recebida como a de um objeto
individualizado; o sentido é capaz da abstração que separa a cor do som
ou uma qualidade da outra, mas não é capaz de uma abstração que
ultrapasse a individualidade do objeto; a forma recebida, ademais, por
ser impressa pelo objeto que age pela sua forma própria, só pode ser uma
semelhança da forma deste objeto; só pode levar, portanto, a uma
representação individualizada do objeto sensível, não do próprio ato de
sentir.
Podemos perceber este ato de sentir na medida em que pela
fantasia nos lembramos da coisa vista, percebendo que a coisa vista não
está mais presente; daí pode-se fazer uma representação sensível do ato
de ver, não porém desta nova percepção.
Para perceber esta outra percepção pode-se depois, pela
própria fantasia, lembrar-se do ato precedente da fantasia, e com isto
podemos perceber que percebíamos o ato de ver, não porém esta nova
percepção pela qual percebemos a anterior. E assim sucessivamente, o
sentido só poderia ter uma consciência total de si mesmo mediante um
número infinito de faculdades ou um número infinito de atos.
Daí pode-se tirar uma conclusão à primeira vista
surpreendente: toda vez que o homem experimenta uma percepção total de
sua própria atividade cognitiva, nesta atividade está envolvida
necessariamente uma atividade da inteligência abstrata enquanto tal,
ainda que, aparentemente, o homem não esteja raciocinando. Por outro
lado, muitas atividades que o homem atribui corriqueiramente ao uso do
intelecto, na verdade não passam de uma atividade da fantasia; nisto já
demos um exemplo no caso do homem a quem se pediu que pensasse em um
quadrado; a mesma coisa seria possível de se dizer no caso de um homem a
quem se pedisse que pensasse no que ele fêz no dia anterior; para muitas
pessoas, estes supostos pensamentos não passarão de um ato material dos
sentidos internos.
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