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Hugo de São Vitor nasceu na Saxônia, no Sacro
Império Romano Germânico; ainda jovem dirigiu-se para
Paris, ingressando no Mosteiro de São Vitor recém fundado
por Guilherme de Champeaux. Tornou-se mais tarde professor
de Teologia na escola anexa ao Mosteiro de São Vítor,
aproximadamente um século e meio antes de S. Tomás de
Aquino ter lecionado em Paris.
Ao lecionar na Universidade de Paris, Tomás de
Aquino encontrou a Universidade já em funcionamento; Hugo
de S. Vitor, porém, além de professor, teve a si confiada
a incumbência de organizar a própria escola anexa ao
mosteiro de S. Vitor na qual posteriormente ele se
notabilizaria como professor. Foi desta escola organizada
por Hugo e de outras, como a escola da catedral de Notre
Dame onde ensinou seu discípulo Pedro Lombardo, o autor do
famoso Livro das Sentenças, que surgiria mais tarde a
primeira Universidade da civilização ocidental, a
Universidade de Paris.
Em nossa opinião, Hugo de S. Vitor está, ao lado
de S. Agostinho e de S. Tomás de Aquino, entre os maiores
teólogos do Cristianismo; S. Boaventura, entretanto, vai
mais longe nesta apreciação; na "Redução das Ciências à
Teologia" ele praticamente coloca Hugo de S. Vitor no
primeiro lugar absoluto. Na Redução das Ciências à
Teologia São Boaventura nos faz conhecer nestes termos o
seu extraordinário apreço sobre Hugo de São Vitor:
"Todos os livros das Sagradas Escrituras", |
diz S. Boaventura,
"além do sentido literal
que as palavras externamente expressam,
ensinam três sentidos espirituais,
a saber:
o alegórico,
que nos ensina o que temos de crer
sobre a divindade e a humanidade de Cristo;
o moral,
que nos ensina o bem viver;
e o anagógico,
que nos mostra o caminho
de nossa união com Deus.
De onde se deduz
que todas as Sagradas Escrituras
ensinam estas três coisas:
a geração eterna e a encarnação temporal do Cristo,
a norma de viver
e a união da alma com Deus,
ou a fé, os costumes e o fim de ambas.
Sobre a primeira destas coisas
devemos exercitar-nos com afinco
no estudo dos doutores;
sobre a segunda, no estudo dos pregadores;
sobre a terceira, no estudo das almas contemplativas.
(Entre os autores antigos)
Santo Agostinho ensina de preferência a primeira;
São Gregório a segunda;
São Dionísio Areopagita, a terceira.
(Entre os autores posteriores)
Santo Anselmo segue a Santo Agostinho;
São Bernardo segue a São Gregório;
Ricardo de São Vitor segue a São Dionísio Areopagita;
porque Santo Anselmo se distingue no raciocínio,
São Bernardo na pregação
e Ricardo de São Vitor na contemplação.
Mas Hugo de S. Vitor
se sobressai nas três" (81).
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Um dos motivos pelo qual Hugo de S. Vitor caiu num certo
esquecimento entre os modernos se deve ao fato de que a
ordem a que ele pertencia, a dos Cônegos Regulares de São
Vitor, na qual desempenhou um papel semelhante ao de S.
Tomás de Aquino na dos Dominicanos, deixou de existir já
há vários séculos.
Como professor Hugo conseguiu um feito raro na
História da Pedagogia: assim como Platão, que conseguiu
formar em Aristóteles um discípulo à altura do mestre,
Hugo nos deixou na pessoa de Ricardo de S. Vitor um
teólogo não menos brilhante do que ele próprio; e a obra
de Ricardo de S. Vitor continua de tal forma a de Hugo que
os escritos de ambos parecem formar um só conjunto.
Raríssimas vezes na História se registrou o fenômeno da
reprodução do gênio do mestre em seus discípulos; um dos
motivos que provavelmente explicam este fato em Platão e
em Hugo de S. Vitor se relaciona com o interesse incomum
que ambos estes pensadores tiveram para com a filosofia da
educação e as concepções elevadas e profundamente
elaboradas que tinham a respeito do assunto.
Com Hugo de S. Vitor retornamos ao tema da
contemplação vista no contexto de uma escola de Teologia;
estamos, ademais, em meio às idéias pedagógicas que se
situam nos próprios primórdios do nascimento da
instituição universitária no Ocidente.
Hugo de S. Vitor expôs em uma forma concisa o
que entendia por contemplação em um opúsculo intitulado
"Sobre o modo de Aprender e de Meditar".
O texto deste opúsculo, encontrado na PL 176 de
Migne, traz o título "De modo dicendi et meditandi".
Considerando, porém, o desenvolvimento de todo o opúsculo,
e, ademais, os seus parágrafos iniciais, julgamos que o
original latino estaria mais correto grafado "De modo
discendi et meditandi", que talvez seja o seu verdadeiro
título.
Neste opúsculo Hugo afirma que há três operações
básicas da alma racional, as quais constituem entre si uma
hierarquia, e que devem, portanto, ser desenvolvidas uma
em seqüência à outra.
A primeira ele denomina de pensamento. A
segunda, de meditação; a terceira, de contemplação.
O pensamento ocorre, diz Hugo,
"quando a mente é tocada
transitoriamente
pela noção das coisas,
ao se apresentar a própria coisa,
pela sua imagem,
subitamente à alma,
seja entrando pelo sentido,
seja surgindo na memória" (83).
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Entre os ensinamentos de Hugo de S. Vitor, entra
aqui o papel que a leitura adquire na Pedagogia. A
importância da leitura reside em que ela pode ser
utilizada para estimular a primeira operação da
inteligência que é o pensamento. Mas ao mesmo tempo a
limitação da leitura está em que ela não pode estimular as
operações seguintes da inteligência, a meditação e a
contemplação, a não ser indiretamente, na medida em que a
leitura estimula o primeiro estágio do pensamento que é o
pressuposto dos demais. Isto significa que requer-se uma
teoria da leitura em que o mestre saiba utilizar-se dela
para produzir o pensamento, e ao mesmo tempo compreenda
que há outros processos mentais mais elevados que devem
também ser desenvolvidos mas que podem vir a ser impedidos
por uma concepção errônea por parte do mestre que não
conseguisse compreender que estes não dependem mais
diretamente da leitura. A importância do assunto é tão
grande que Hugo de São Vitor dedicou seis dos sete livros
de sua obra conhecida como Didascalicon à teoria da
leitura (84).
A segunda operação da inteligência, continua
Hugo, é a meditação. A meditação baseia-se no pensamento,
e é
"um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento,
esforçando-se para explicar algo obscuro,
ou procurando penetrar
no que ainda nos é oculto" (85).
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O exercício da meditação, assim entendido,
exercita o engenho. Como a meditação, porém, se baseia por
sua vez no pensamento e o pensamento é estimulado pela
leitura, temos na realidade duas coisas que exercitam o
engenho: a leitura e a meditação (86).
Segundo as palavras de Hugo,
"na leitura, mediante regras e preceitos,
somos instruídos a partir de coisas que estão escritas.
A leitura também é uma investigação do sentido
por uma alma disciplinada.
A meditação toma depois,
por sua vez,
seu princípio na leitura,
embora não se realize
por nenhuma das regras
ou dos preceitos da leitura.
A meditação é uma cogitação freqüente com conselho,
que investiga prudentemente a causa e a origem,
o modo e a utilidade de cada coisa" (87).
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Mas, acima da meditação e baseando-se nela,
existe ainda o que Hugo chama de contemplação. Ele explica
o que é a contemplação e no que difere da meditação do
seguinte modo:
"A contemplação é uma visão livre e perspicaz da alma
de coisas que existem em si de modo amplamente disperso.
Entre a meditação e a contemplação
o que parece relevante é que a meditação
é sempre de coisas ocultas à nossa inteligência;
a contemplação, porém, é de coisas que,
segundo a nossa capacidade,
são manifestas;
e que a meditação sempre se ocupa
em buscar alguma coisa única,
enquanto que a contemplação
se estende à compreensão de muitas,
ou também de todas as coisas.
A meditação é, portanto,
um certo vagar curioso da mente,
um investigar sagaz do obscuro,
um desatar o que é intrincado.
A contemplação é
aquela vivacidade da inteligência
a qual,
já possuindo todas as coisas,
as abarca em uma visão plenamente manifesta,
e isto de tal maneira
que aquilo que a meditação busca,
a contemplação possui" (88).
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Estas passagens do Opúsculo sobre o Modo de Aprender
revelam um dos pontos básicos da pedagogia
vitorina, o de levar o discípulo do pensamento à
contemplação. No sétimo livro do Didascalicon, às vezes
conhecido também como uma obra em separado denominada Os
Três Dias ( "De Tribus Diebus"), Hugo dá um exemplo mais
extenso desta concepção; este texto, entretanto, é muito
longo para ser reportado aqui e também muito denso para
poder ser resenhado (89).
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