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No início do século V, um monge chamado João
Cassiano, que tinha recebido sua formação religiosa em um
mosteiro de Belém, passando depois a viver durante muitos
anos entre os monges do Egito, fundou em Marselha, na
atual França, depois de ter passado por Constantinopla e
Roma, um mosteiro de homens e outro de mulheres.Publicou
então uma série de 24 Conferências, conversas tidas entre
ele e os monges que habitavam o deserto do Egito, a
respeito de diversos temas da vida espiritual. O livro é
ainda hoje bem conhecido pelos eruditos, embora tenha sido
pouco lido nos séculos recentes; era, porém, famosíssimo
na antiguidade como uma dos grandes clássicos da
espiritualidade cristã; foi altamente elogiado pela Regra
de São Bento, na qual pode-se ler o seguinte:
diz São Bento,
"para demonstrar que
os que a observamos
temos alguma honestidade de costumes
ou algum início de vida monástica.
Além dela,
para aquele que se apressa
para a perfeição
da vida monástica,
há as doutrinas dos Santos Padres,
cuja observância leva ao cume da perfeição.
Que página,
com efeito,
ou que palavra de autoridade divina
no Antigo e Novo Testamento
não é uma norma retíssima da vida humana?
Ou que livros dos Santos Padres
não ressoam outra coisa
senão o que nos faça chegar,
por caminho direto,
ao nosso Criador?
E também as Conferências dos Padres,
(escritas por Cassiano),
que outra coisa não são
senão instrumento das virtudes dos monges
que vivem bem e são obedientes?
Mas, para nós,
relaxados,
que vivemos mal e somos negligentes,
são o rubor da confusão" (68).
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São Domingos, o fundador da Ordem dos
Pregadores, também conhecida como Dominicana, à qual
pertencia Santo Tomás de Aquino, dedicou-se com um
especial empenho ao estudo destas conferências, dizendo
seus biógrafos contemporâneos, como o beato Jordão de
Saxônia, ter-lhe sido isto
"de não pouco proveito
para a pureza da consciência
e para ilustrar-se
na vida contemplativa".
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O mesmo Jordão acrescenta que
"lia também o bem aventurado Domingos
certo livro intitulado
As Conferências dos Padres,
que trata da perfeição espiritual
e dos vícios que a ela se opõem.
Lendo este livro,
e querendo investigar nele
os caminhos da salvação,
tratou com ânimo esforçado
de segui-los.
Com a graça divina
aproveitou-lhe não pouco este livro
para a pureza da consciência
e para ilustrar-se
na vida contemplativa" (69).
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E Guilherme de Tocco nos reporta que o próprio Tomás de
Aquino, à imitação de São Domingos, lia todos os dias
algumas páginas das 24 Conferências:
"Como é freqüente acontecer", |
diz Guilherme de Tocco,
"que enquanto o intelecto
investiga coisas sutis e superiores,
o afeto perca a sua devoção,
Tomás fazia para si,
todos os dias,
uma leitura das Conferências dos Padres.
Certo dia,
interrogado por que interrompesse
assim as suas especulações,
respondeu:
`Nesta leitura
recolho tanta devoção
que depois consigo elevar-me
mais facilmente à especulação;
o afeto,
derramando-se em devoção,
faz com que a inteligência,
pelo seu mérito,
alcance coisas mais altas'.
Nisto não fazia Tomás", |
continua Tocco,
" mais do que imitar o exemplo
de seu pai Domingos,
o qual,
lendo tão freqüentemente este livro,
alcançou uma grande altura de perfeição" (70).
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Na primeira das 24 Conferências, escritas em Latim,
Cassiano nos conta uma visita que ele e seu amigo Germano
fizeram ao Abade Moisés. Esta conferência nos interessa de
modo especial porque durante a conversa que os três
mantiveram o Abade Moisés explicou aos visitantes o que é
a contemplação.
A conferência se desenrola entre monges que
viviam em meio à solidão do deserto do Egito; não se
trata, portanto, do mesmo ambiente de uma escola de
filosofia, como era o caso entre os gregos, ou de uma
escola de Teologia, como era o caso de Santo Tomás de
Aquino. No entanto, ao explicar o que é a contemplação,
embora se fundamente no Evangelho e nas Sagradas
Escrituras, o Abade Moisés se utiliza de expressões e
comparações que tem origem na tradição grega; em certas
passagens o texto de Cassiano chega a interromper a
narração latina e fazer uso direto de termos gregos,
acompanhando-os depois de uma explicação latina, como por
exemplo, no oitavo capítulo da Primeira Conferência, onde
diz:
"Principale bonum
possidetur in theoria sola,
idest,
in contemplatione divina",
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isto é,
" O bem principal
é possuído apenas na teoria,
isto é,
na contemplação de Deus" (71).
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O texto desta conferência, portanto, apresenta um
interesse particular por estarmos apontando os
pressupostos históricos da contemplação nos escritos
filosóficos de S. Tomás de Aquino, que são, em sua
maioria, comentários a textos provenientes da tradição
grega, mas que lhe chegaram, entretanto, através da
tradição cristã.
Cassiano inicia sua primeira conferência
contando como ele e Germano decidiram fazer uma visita ao
Abade Moisés:
diz Cassiano,
"moravam os mais ilustres
pais de monges e de toda a perfeição.
Entre todos aquelas exímias flores,
brilhava de modo mais suave,
tanto pela ascese como pela contemplação,
o Abade Moisés.
Desejoso de ser formado à sua escola,
fui à sua procura no deserto,
em companhia do santo abade Germano.
Juntos, rogamos com muitas lágrimas,
ao mesmo Abade,
uma conversa de edificação.
Bem sabíamos que não consentia
abrir as portas da perfeição
senão àqueles que a desejavam com fé
e a procuravam com coração contrito.
Pois não devia acontecer
que a mostrasse a quem
não a queria
ou que só mornamente desejasse
aquelas realidades necessárias
que só deviam ser reveladas
a quem tem sede de perfeição" (72) .
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Assim, quando ficou claro para o Abade Moisés que Cassiano
e Germano não estavam ali por curiosidade, mas em busca da
perfeição, consentiu em ensinar-lhes algo do muito que
sabia sobre as coisas de Deus. Começou por fazer-lhes uma
pergunta: qual seria, na opinião deles, o objetivo da vida
monástica. Não só fêz a pergunta, como também explicou o
sentido da mesma:
disse ele,
"e toda disciplina
têm um objetivo ou fim próprio.
É fixando os olhos neste
que o zeloso pretendente de qualquer arte sustenta,
sem perturbação,
e de boa vontade,
todos os trabalhos,
perigos e prejuízos.
Assim também ocorre
com a nossa profissão.
Ela tem igualmente o seu objetivo
e o seu fim próprio.
Por este fazemos todos os trabalhos,
sem cansaço e até com alegria.
Para obtê-lo,
não nos enfastia a contínua leitura
e meditação das Sagradas Escrituras,
nem nos deixamos assustar
pelo trabalho incessante,
nem pela nudez e privação de tudo,
nem pelo horror desta vastíssima solidão" (73).
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Cassiano e Germano tinham se dirigido ao Abade Moisés para
ouvi-lo; em vez disso, era o Abade Moisés que agora lhes
fazia perguntas e queria ouvir suas respostas. O texto de
Cassiano dá a entender que eles tentaram não ter que
responder; o Abade Moisés, porém, foi intransigente.
Queria saber primeiro dos visitantes qual era, na opinião
deles, o objetivo da vida monástica:
"Como insistisse em nossa resposta,
dissemos que tudo isso tolerávamos
por causa do Reino dos Céus" (74).
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Esta, pois, foi a resposta deles. Mas, olhando para a
fisionomia do Abade Moisés, que decepção! O Abade Moisés,
evidentemente, não ficou satisfeito com tal resposta; deve
te-la julgado como se se tratasse mais de uma evasiva do
que de uma verdadeira resposta. Com paciência, voltou a
explicar o que desejava dos visitantes:
disse ele;
"falastes corretamente
sobre o fim último (de nossa vida).
Mas,
antes de mais nada,
deveis saber qual é o nosso objetivo,
isto é,
aquela firme determinação
a que devemos aderir sem cessar,
para podermos atingir aquele fim último" (75).
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Diante destas palavras, Cassiano e Germano confessaram com
simplicidade que não sabiam o que responder. Com isto, o
Abade Moisés parou de insistir e passou a falar:
"Em toda arte ou disciplina
tem precedência um certo objetivo,
isto é, um propósito de alma,
uma incessante intenção da mente.
Se alguém não o guardar
com perseverante empenho,
não poderá chegar ao fim desejado.
O fim último de nossa profissão,
conforme dissestes,
é o Reino de Deus ou dos Céus.
Mas temos também um objetivo
sem o qual é impossível alcançar aquele fim.
Fixando neste objetivo o olhar que nos dirige,
orientamos nossa corrida por uma linha certa,
de modo que se o nosso pensamento se desviar,
ainda que apenas um pouco,
nós o retificamos,
voltando logo a contemplá-lo,
como a uma norma.
Revertendo os nossos esforços
a um signo único,
ele nos avisará imediatamente
caso o nosso espírito se desvie,
ainda que pouco,
da direção proposta" (76).
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"Este, portanto,
deve ser para nós o principal esforço,
esta a invariável intenção do coração:
que a mente esteja sempre
nas coisas divinas e em Deus.
O Evangelho nos indica,
belissimamente,
em Marta e Maria,
uma figura deste modo de agir da mente.
Enquanto Marta se ocupava em um santo serviço,
pois era ao Senhor e aos seus discípulos que servia,
Maria,
atenta somente à doutrina espiritual,
permanecendo aos pés de Jesus,
foi preferida pelo Senhor,
por ter escolhido a melhor parte,
aquela que não lhe poderia ser tirada.
Pois, trabalhando Marta
com uma piedosa solicitude
e ocupada pelos cuidados domésticos,
vendo-se sozinha e insuficiente
para dar conta do serviço,
pediu ao Senhor que lhe concedesse o auxílio da irmã,
dizendo-lhe:
`Não te importa
que minha irmã me deixe sozinha
no serviço?
Dize-lhe, pois,
que me ajude'.
Chamava-a, portanto,
não para uma obra vil,
mas para um serviço louvável.
Todavia,
o que ouviu ela do Senhor?
`Marta, Marta,
estás preocupada
e te perturbas com muitas coisas;
na verdade,
poucas coisas são necessárias,
e até mesmo uma só basta.
Maria escolheu a melhor parte,
aquela que não lhe será tirada'.
Vedes, portanto,
como o Senhor colocou o principal bem
apenas na teoria,
isto é, na contemplação divina.
De onde que as demais virtudes,
ainda que as declaremos necessárias e úteis,
devemos distinguí-las
e considerá-las de segundo grau,
porque todas elas são uma preparação
para este único objetivo.
Dizendo o Senhor:
`Estás preocupada
e te perturbas por muitas coisas;
não há necessidade senão de poucas,
e até mesmo uma só basta',
Ele colocou o maior de todos os bens
não em qualquer ação,
muito embora pudesse ser uma obra
digna de louvor e abundante em frutos,
mas na contemplação de si mesmo;
disse que poucas coisas são necessárias
para a perfeita felicidade,
isto é, aquela teoria que se inicia
pela consideração dos exemplos de alguns poucos santos.
Partindo desta contemplação,
aquele que se esforça por progredir irá chegar,
mediante o auxílio divino,
àquela uma só coisa
que nos é dito que basta,
isto é, à contemplação de Deus,
de tal modo que,
ultrapassando também as maravilhas
das vidas e das ações dos santos,
passemos a nos alimentar somente
da beleza e da ciência de Deus.
Maria escolheu a melhor parte,
que não lhe será tirada" (77).
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Pergunta então Germano ao Abade Moisés:
"Mas quem pode,
circundado pela fragilidade da carne,
estar tão firme nesta teoria,
que nunca pense na chegada de um irmão,
em visitar um enfermo,
no trabalho manual,
ou da humanidade que deve ser prestada
aos peregrinos e visitantes?" (78).
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Eis a resposta do Abade Moisés:
"Permanecer incessantemente em Deus
e em sua contemplação,
conforme dizeis,
unindo-se inseparavelmente a Ele,
é impossível ao homem
circundado por esta fragilidade da carne.
Todavia,
é necessário que saibamos
onde devemos ter fixa
a intenção de nossa mente
e para qual objetivo reconduzir sempre
o olhar de nossa alma.
Se a mente puder guardá-la,
alegre-se;
vendo-se dela distraída,
deplore e suspire.
Considere ter se afastado
do maior de todos os bens
todas as vezes que se surpreender
esquecido desta contemplação;
julgue ser uma prostituição um afastamento,
mesmo que momentâneo,
da contemplação de Cristo.
Quando, pois,
nos desviarmos um pouco dela,
voltemos-lhe novamente os olhos do coração.
Tudo, na verdade,
reside na profundidade da alma.
Se ali não mais reinam os vícios,
conseqüentemente o Reino de Deus será fundado em nós,
conforme as palavras do Evangelista:
`O Reino de Deus
não virá de modo visível,
nem dirão:
Ei-lo aqui ou ei-lo ali.
Na verdade vos digo
que o Reino de Deus já está entre vós'. |
Até aqui o Abade Moisés mais se preocupou em insistir que
a contemplação era o objetivo da vida monástica do que em
explicar em que ela consistia. Havia, é certo, mencionado
que era algo que se iniciava pela "consideração dos
exemplos dos santos, das maravilhas de suas vidas e de
suas ações", em que certamente se referia de modo especial
aos santos do Velho e do Novo Testamento. Partindo deste
início, à medida em que, mediante o auxílio divino, o
homem passasse a compreender melhor a Deus, a fonte de
onde emanam todas aquelas maravilhas, passaria a se
alimentar somente da própria "beleza e ciência de Deus", e
nisto consistiria a contemplação de Deus, "aquela uma só
coisa que nos é dito que basta". Como, porém, se faz isto,
é algo que ele passou a explicar em seguida:
"A contemplação de Deus
pode ser de muitos modos.
Deus, de fato,
não somente se dá a conhecer
na admiração de sua substância
e essência incompreensível,
que na vida presente nos é oculta
e somente temos esperança
de alcançá-la na outra,
mas se O conhece também
pela grandeza de suas criaturas,
pela consideração de sua equidade e justiça,
pela comunicação ordinária de seus auxílios;
quando percorremos com toda a pureza da mente
os benefícios que fêz aos santos nos séculos passados
e que faz no presente;
quando, com o coração a tremer,
admiramos o poder com que governa,
dispõe e rege todas as coisas,
e a imensidade de sua ciência,
diante de cujos olhos não se escondem
os mais ocultos segredos dos corações.
Contemplamos a Deus também quando,
atônitos,
consideramos que contou todas as areias do mar
e as gotas das chuvas
e os dias e as horas de todos os séculos.
Quando contemplamos com admiração
que todas as coisas passadas e futuras
Ele as têm como presentes diante de si.
Quando nos damos conta de sua inefável clemência,
com que extraordinária longanimidade e paciência
sofre tão grande número de pecados e maldades
como os que se cometem em sua presença.
Quando vemos nossa vocação,
sem tê-la nós merecido
e tendo-a concedido sua majestade,
apenas por sua graça e misericórdia.
Quando, com um excesso de admiração,
conhecemos quantas ocasiões de salvação
concede aos seus filhos e servos
ao ter desejado que nascêssemos num tempo
e numa conjuntura tal que desde crianças
houvesse quem nos ensinasse
sobre a sua Lei e a sua graça e,
vencendo Ele nossos inimigos,
apenas pelo favor de seu beneplácito,
nos prepara os prêmios eternos da bem aventurança.
Finalmente,
quando quiz por em execução,
para nosso remédio,
o mistério de sua Encarnação
que estendeu por todos os povos
por meio de seus admiráveis sacramentos.
Outros modos de contemplação ainda existem,
inumeráveis,
os quais se originam em nós
segundo a qualidade de nossa vida
e segundo a pureza de nosso coração,
mediante os quais Deus pode ser visto
pela pureza do olhar,
ou mesmo possuído" (80).
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Até aqui a explicação do Abade Moisés. Verdadeiramente
notável é a afinidade deste texto com a contemplação tal
como nos foi descrita pelos filósofos gregos. Cinco
séculos antes de Cristo os filósofos gregos em suas
escolas buscavam a contemplação; cinco séculos depois de
Cristo, os monges cristãos que se retiravam para o deserto
também estavam em busca da contemplação. Não fosse apenas
isto, as semelhanças entre o que ambos descrevem como
sendo a contemplação são surpreendentes.
Não se deve, entretanto, levar estas semelhanças
longe demais. Não obstante os elogios já mencionados por
parte de São Bento, de São Domingos e do próprio Santo
Tomás de Aquino às Conferências dos Padres, o que Cassiano
nos reporta nesta primeira conferência é um fato
provavelmente ocorrido nos primórdios de sua vida
espiritual; o Abade Moisés percebeu que seus visitantes
estavam apenas iniciando o caminho da perfeição e por isso
não entrou na profundidade do assunto. Ele não disse o que
é realmente a essência da contemplação segundo o
Cristianismo. Apenas ofereceu aos visitantes uma magnifica
introdução.
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