III.13.

Conclusão.

Com o que expusemos manifesta-se que a concepção de educação segundo uma orientação dirigida à sabedoria e à contemplação como ao seu fim último não é uma concepção pessoal de Santo Tomás de Aquino, nem sequer de Aristóteles.

Nem poderia sê-lo, pois, conforme vimos demonstrado no capítulo anterior, o fim último do homem não pode ser outro senão este: o homem, por natureza, tende para a contemplação (90). Os numerosos exemplos históricos, todos os quais tiveram sua influência na obra de Tomás de Aquino, não fazem mais do que ilustrar melhor as afirmações de J. Pieper de que fizemos uso na introdução deste trabalho, agora um pouco melhor compreensíveis:

"O homem é um ser tal
que a sua realização,
a sua suprema felicidade,
se encontra na contemplação.

Esta sentença é de extraordinária relevância
para a educação:
ela expressa toda uma concepção cósmica,
especialmente uma concepção
que busca as raízes da natureza humana"
(91).

Dos exemplos que trouxemos à luz, podemos notar uma diferença entre os provenientes da filosofia grega e os provenientes da tradição cristã. Aqueles que vieram da filosofia grega, pelo menos os que foram aqui expostos, tenderam historicamente a uma concepção de contemplação em que vai se aprofundando cada vez mais o caráter abstrato do que é objeto de contemplação. Foi assim que da natureza passamos à ordem da natureza, e da ordem da natureza passamos ao modelo de que foi tirada esta ordem, idéias maximamente abstratas, como a beleza em si e o bem em si.

Nos exemplos provenientes da tradição cristã, pelo menos nos que foram aqui expostos, o que se acentuou foi o caráter universal do objeto da contemplação: uma visão plenamente manifesta que se estende à compreensão de todas as coisas, no dizer de Hugo de São Vitor.

Ambas estas características não são, entretanto, senão aspectos diversos de uma só coisa. Assim é que, por um lado, as idéias mais abstratas são ao mesmo tempo as idéias mais gerais, aquelas que em sua universalidade abarcam o maior número ou mesmo a totalidade dos seres, assim como o ser, que é maximamente abstrato e ao mesmo tempo se aplica à totalidade dos entes.

Por outro lado, na mente humana, uma compreensão que abarque simultaneamente muitas ou mesmo a totalidade de todas as coisas não pode se dar sem o uso de uma grande capacidade de abstração.

Na contemplação, tal como descrita nos textos filosóficos de S. Tomás de Aquino, encontramos também ambas estas características devido à natureza do que é o objeto de contemplação, isto é, a causa primeira do ser de todas as coisas.

De fato, para poder ser causa primeira do ser de todas as coisas, esta causa deverá possuir o ser de um modo mais elevado do que o possuído por todos os demais entes de que ela é causa. Ela não pode, por exemplo, ao contrário dos demais entes, ter o seu ser causado, pois neste caso já não seria mais a causa primeira. Não sendo causada, a causa primeira deve existir por si mesma e, portanto, deverá possuir o seu ser como uma exigência interna de sua própria natureza. O que é, porém, exigência interna da essência de algo pertence ao próprio ser deste algo. Daqui se segue que, se a causa primeira tem o seu ser por uma exigência interna de sua essência, a causa primeira será, em sua essência, o próprio ser.

Ora, o ser é, dentre todas as coisas, aquilo que necessita do grau de abstração mais elevado para poder ser apreendido.

Chama-se de abstração ao processo pelo qual compreendemos algo mediante algumas de suas características desconsiderando ou abstraindo de outras; assim, quando compreendemos o que é o homem abstraímos de sua individualidade, se é Antônio ou João; quando compreendemos o que é animal, abstraímos se é homem ou gato; quando compreendemos o que é ser vivo, abstraímos se é animal ou planta; quando compreendemos o que é ser, abstraímos se é animado ou inanimado. Além do ser já não há mais abstração possível.

Por ter como seu objeto à causa primeira, que é o próprio ser por essência, a sabedoria tende a produzir, portanto, uma contemplação de máxima abstração.

Ademais, a sabedoria tende a produzir também uma contemplação de máxima universalidade, em relação a nós, pelo próprio processo pelo qual nos é exigido chegar à sabedoria.

Em relação a nós a contemplação da sabedoria é maximamente universal porque, conforme já mencionamos, diz Tomás na Summa contra Gentiles que o conhecimento que a sabedoria possui da causa primeira não é o conhecimento comum que a maioria dos homens possui de Deus (93), mas o mais perfeito e sublime dos conhecimentos (94), porque supõe

"muito conhecimento prévio,
praticamente todos os conhecimentos da filosofia
se ordenando ao conhecimento de Deus
que nos é dado pela sabedoria,
a sabedoria sendo a última parte da filosofia,
que só pode ser alcançada
depois de termos passado por todas as outras"
(95).

Devido ainda à própria natureza da causa primeira considerada em si mesma, a sabedoria pode produzir uma contemplação em que a inteligência se eleva ao seu ato mais perfeito possível.

De fato, já mencionamos que a causa primeira possui o ser de modo mais perfeito do que o de todos os demais entes. Há, porém, uma série de propriedades que são conseqüência necessária do ser enquanto ser (97). Se a causa primeira, portanto, possui o ser de modo mais perfeito do que todas as demais coisas, possuirá, por conseqüência, estas propriedades conseqüentes ao ser também de modo mais perfeito. Estas propriedades são a bondade, a beleza e a inteligibilidade.

No que diz respeito à bondade, todo ser é necessariamente bom, em algum grau, apenas por ser ente. De fato, diz-se algo ser bom por ser desejável à vontade; a bondade é uma adequabilidade de algo à vontade. Conforme pode ser lido no texto com que se abrem as Quaestiones Disputatae de Veritate de Tomás de Aquino,

"O nome bem designa
a conveniência do ente ao apetite,
conforme se diz no princípio dos Livros de Ética:

`O Bem é aquilo
que todos apetecem'"
(98).

Ora, as coisas são desejáveis por serem perfeitas. Todo ser, porém, na medida em que é, supõe uma certa perfeição. Somente o nada não pode ter perfeição alguma. Conclui-se, portanto, que a bondade é algo que se segue ao ser, e se a causa primeira possui o ser de um modo mais eminente do que todas as coisas, ela deve possuir também, e de um modo mais eminente do que todas as coisas, toda a bondade que existe em todos os seres de que ela é causa. A bondade de cada ser não é mais do que uma parte da bondade que existe de um modo mais pleno na causa primeira.

Mas, ademais, além de bom, todo ser é, em algum grau, apenas por ser ente, necessariamente belo. De fato, diz-se algo ser belo por ser contemplável, isto é, por ser possível de ser visto ou inteligido com prazer. São ditas belas as coisas que, ao serem vistas, agradam (99). O belo, desta maneira, assim como o bom, diz respeito à vontade, pois quem quer que agrade, agrada à vontade. Mas ao mesmo tempo o belo acrescenta ao bom uma ordenação às faculdades cognitivas, pois não é dito belo aquilo que simplesmente agrada à vontade, mas aquilo cuja apreensão agrada (100). Esta apreensão tanto pode ser a dos sentidos como a da inteligência. Assim, portanto, como pertence à natureza do bom que no bom repouse a vontade, do mesmo modo pertence à natureza do belo que a vontade repouse em sua vista ou conhecimento (101), e mais ainda no conhecimento do que na vista, porque o conhecimento intelectivo supera o dos sentidos. Ora, diz S. Tomás, o objeto próprio do conhecimento intelectivo, aquilo que o intelecto apreende por primeiro, como algo mais cognoscível do que tudo, e ao qual reduz todas as suas apreensões, é o ser (102). Todas as atividades cognocitivas, porém, tendem ao repouso na plena possessão de seu objeto. Qualquer faculdade cognoscitiva, portanto, na medida em que é exercida de modo suficientemente perfeito, encontra deleitação no objeto que tem adequação para com ela (103). De onde que, se o objeto próprio da inteligência é o ser, as coisas sendo inteligíveis justamente na medida em que são, segue-se que a beleza é conseqüência do ser e que todo ser, na medida em que é, possui aquela adequação à vontade e à inteligência a que se denomina beleza. Conclui-se, portanto, que a causa primeira, na medida em que possui o ser de modo mais eminente do que todas as coisas, possui também de modo mais eminente a beleza que existe em cada um dos seres de que ela é causa; a beleza de cada ser não é mais do que uma participação da beleza que existe mais plenamente na causa primeira.

Finalmente, além de bom e belo, todo ser é também, em algum grau, apenas por ser ente, necessariamente inteligível.

Isto ocorre porque o objeto próprio da inteligência é o ser: tudo o que é inteligível, de fato, é inteligido por redução ao ser, e algo que totalmente não fosse não poderia ser inteligido. Todas as coisas, pois, são inteligíveis justamente na medida em que são ser, e, portanto, todo ser é necessariamente inteligível.

Este caráter inteligível do ser explica o caráter evidente dos primeiros princípios da demonstração.

Já fizemos notar como todas as coisas seguem os primeiros princípios das demonstrações, apesar dos primeiros princípios das demonstrações, como o próprio nome parece indicar, serem mais propriamente princípios do raciocínio e não das coisas em geral. Por serem os primeiros princípios do raciocínio, tudo o que a inteligência entende o entende por redução a estes primeiros princípios. Ademais, estes primeiros princípios são os únicos evidentes em si mesmos: eles têm para a inteligência humana uma inteligibilidade muito maior do que as demais coisas; a verdade contida nelas é mais brilhante do que a verdade contida nas demais coisas.

A razão deste fato é facilmente compreensível se examinarmos os enunciados destes princípios. Diz S. Tomás que "o mais firme e o mais certo de todos os princípios" é o princípio da não contradição, que diz ser impossível que algo simultaneamente seja e não seja a mesma coisa (104). Ora, este princípio, cuja verdade resplandece como evidente mais do que a de qualquer outro, tem essa evidência como conseqüência direta da apreensão por parte da inteligência do ser e apenas do ser. A verdade dos demais raciocínios é algo apreendido por redução a este princípio. Assim, este exemplo mostra em que sentido o ser é o objeto próprio da inteligência: o ser é, entre todas as coisas, aquilo que há de mais inteligível, aquilo cuja adequação para com a inteligência é maior do que tudo, aquilo cuja verdade é, para nós, mais forte e mais brilhante.

Mas também já dissemos que nem todas as coisas são ser no mesmo grau; as coisas podem ter o ser de um modo mais intenso ou menos intenso.

Ora, quando o homem apreende a verdade dos primeiros princípios, o ser a que este homem está se referindo ao fazer aquele enunciado é o ser obtido por abstração das demais características que ele observa nos entes à sua volta, mas é um modo de ser tal como o dos entes que ele já viu, isto é, o modo de ser mais débil dos entes que são causados pela causa primeira. A intensidade do ser que ele tem em mente quando faz o enunciado dos primeiros princípios é a intensidade do ser dos entes que ele conhece à sua volta no mundo sensível. Esta intensidade, porém, já é suficiente para fazer resplandecer como coisa evidente os primeiros princípios da demonstração.

Mas se ele pudesse ver o ser da causa primeira, muitíssimo mais intenso do que o ser de todas as coisas, quando ele enunciasse o princípio da não contradição, este princípio teria uma força inteligível desproporcionalmente mais intensa.

A verdade deste princípio passaria a resplandecer à inteligência humana como uma passagem da noite, iluminada pela Lua, para o dia, que é iluminado diretamente pela luz do Sol.

O homem veria nele não só a evidência dos primeiros princípios das demonstrações, mas a evidência da necessidade do ser da causa primeira, com mais força do que vê a verdade dos primeiros princípios.

A causa primeira, portanto, é dotada de uma inteligibilidade fortíssima, da qual a inteligibilidade dos primeiros princípios no homem é um pálido reflexo; ela é mais eminente, em sua inteligibilidade, do que a inteligibilidade que existe em todos os seres de que ela é causa. Toda a verdade que existe nas coisas, todo o espetáculo que se observa na ordem do cosmos, que é um espetáculo para a inteligência, não é mais do que uma participação imperfeita do espetáculo muito mais eminente que é a causa primeira para a inteligência que a puder alcançar.

Todas as perfeições que se acham espalhadas em todas as coisas e que são conseqüências do ser que em cada uma delas é causado pela causa primeira estão, assim, presentes de um modo muito mais eminente e perfeito nesta mesma causa primeira, que é, deste modo, como se fosse o próprio modelo de onde todas as coisas foram feitas. Em um só todo ela contém em grau mais elevado todas as possibilidades de perfeição que estão esparsas em todos os seres.

Quem conhece algum ser, por mais perfeito que seja, pode depois admirar-se pelo conhecimento de algum outro, pois nenhum ser causado pode esgotar as possibilidades de perfeição que existem na causa primeira. Todo ser causado, portanto, pode ter outro ser causado mais perfeito ou diferentemente perfeito; nenhum ser causado pode, por conseqüência, esgotar o conhecimento de quem quer que seja. Mas quem pudesse alcançar a causa primeira veria que o conhecimento de qualquer outra coisa fora dela não poderia lhe acrescentar nada de essencialmente novo ou de admirável, pois qualquer que fosse sua perfeição ou inteligibilidade esta seria sempre uma parte daquela que está presente inteiramente na causa primeira.

De tudo isto pode-se concluir, portanto, que a causa primeira é o objeto de conhecimento que, em sua própria essência, e não apenas em relação a nós, isto é, não apenas pelo processo pelo qual nos é necessário chegar à sabedoria, é capaz de produzir na inteligência o grau mais eminente possível de contemplação.

Tendo chegado a este ponto, porém, é necessário fazer uma importante observação. Isto que acabamos de descrever, este conhecimento em que encontramos uma inteligibilidade que em sua distância da inteligibilidade dos demais conhecimentos guarda uma analogia com a distância entre a luz que há no dia e a que há na noite, este conhecimento não é a contemplação da sabedoria de que fala S. Tomás de Aquino.

A sabedoria de que fala Santo Tomás de Aquino, de fato, é o conhecimento mais perfeito e sublime que há entre todos os conhecimentos do homem (105), ao qual se ordenam os conhecimentos de todas as demais ciências, e ao qual não se chega senão após se ter passado por todas elas (106).

Ora, este não é o conhecimento da causa primeira que acabamos de descrever. Este conhecimento que acabamos de descrever não necessita da ordenação prévia de todas as demais ciências; não necessita sequer da ordenação de uma só; ele supõe apenas uma apreensão direta da causa primeira tal como ela é em si mesma; esta forma de conhecimento é a que seria a mais plena de todas as sabedorias, a verdadeira sabedoria, a sabedoria propriamente dita, e não aquela para a qual se requer o conhecimento de todas as demais ciências.

A sabedoria que descreve Tomás de Aquino nos comentários a Aristóteles é apenas um conhecimento indireto da causa primeira à qual se ordenam todas as demais ciências; é apenas uma fagulha da verdadeira sabedoria; a verdadeira sabedoria, diziam os antigos filósofos gregos na pessoa de Pitágoras, é algo que pertence de modo próprio apenas aos deuses; o homem, enquanto tal, pode no máximo, pelo cultivo daquela outra sabedoria, tornar-se um amigo da verdadeira sabedoria, isto é, um filósofo, nome inventado por Pitágoras que em grego significa amigo da sabedoria:

"Pitágoras",

diz Santo Agostinho,

"segundo dizem,
criou a palavra filosofia.
Perguntaram-lhe certa vez
que profissão tinha;
respondeu ser filósofo, isto é,
amigo da sabedoria,
visto parecer-lhe arrogantíssimo
proclamar-se sábio"
(107).

A isto acrescenta Hugo de São Vítor:

"Pitágoras foi o primeiro
que chamou filosofia
ao estudo da sabedoria,
preferindo ser conhecido como filósofo
do que como sábio,
e é muito belo que ele tivesse chamado
aos que buscam a verdade
de amantes da sabedoria em vez de sábios,
porque a verdade é tão escondida
que por mais que a mente
se disponha à sua busca,
ainda assim é difícil que ela possa
compreender a verdade tal qual ela é"
(108).

Que mais se pode dizer a isto, senão concluir com as palavras de S. Tomás de Aquino comentando a Aristóteles, já citadas na introdução deste trabalho?

"A vida especulativa é encontrada
perfeitissimamente
nas substâncias separadas;

nos homens, todavia,
apenas imperfeitamente
e como que participativamente.

E, no entanto,
este pouco é maior
do que todas as coisas que há no homem"
(109).



Referências

(90) Lauand, L.J: O que é a Universidade; o.c., pg.77.
(91) Pieper, Josef: in Lauand, L. J.: "O que é Universidade"; o.c., pg. 69.
(93) Summa contra Gentiles, III, 38. (94) Idem, I, 2. (95) Idem, I, 4.
(97) Quaestiones Disputatae de Veritate, Q. I, a.1. (98) Idem, Q. I, a.1.
(99) Summa Theologiae, Ia., Q.5 a.5 ad 1. (100) Idem, Ia IIae, Q.27, a.1, ad 3. (101) Idem, loc. cit..
(102) Quaestiones Disputatae de Potentia, Q.1 a.1.
(103) Raeymaeker, L.: Metaphysica Generalis; Louvain, E. Warny, 1935; vol. 1, pgs. 84-5.
(104) In libros Metaphysicorum Expositio, L. IV, l. 6, 597.
(105) Summa contra Gentiles, I, 2. (106) Idem, I, 4.
(107) Santo Agostinho: A Cidade de Deus, L. VIII, C.2; São Paulo, EDAMERIS, 1964; pg. 388. Também: PL 41, 225.
(108) Hugo de São Vitor: Didascalicon, L. I, C. 3; PL 176, 742-3.
(109) In libros Ethicorum Expositio, L.X, l.11, 2110.