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É evidente, por tudo quanto acabamos de expor,
que a filosofia grega devesse apresentar pontos de notável
afinidade com o Cristianismo. No que diz respeito à
contemplação o Cristianismo trouxe elementos inexistentes
na filosofia grega; tais elementos se encontram também nas
obras de Santo Tomás, naquilo que ele tem de propriamente
teológico, e serão examinados em parte no último capítulo
deste trabalho. Nosso objetivo neste capítulo fará com que
nos restrinjamos ao que há de comum quanto à contemplação
entre a filosofia grega e a tradição cristã.
Com tantos pontos de afinidade entre filosofia
grega e Cristianismo seria de se esperar um acentuado
interesse dos gregos pelo Evangelho e dos cristãos pela
filosofia grega. Tal não foi o caso histórico, entretanto,
pelo menos no século I.
Jesus durante a sua vida preocupou-se em ensinar
principalmente ao povo judeu (57); somente após sua
ressurreição mandou que seus apóstolos pregassem o
Evangelho a todas as nações (58). Apesar disso o Evangelho
de São João narra um encontro entre Jesus e alguns
gentios, provavelmente gregos, de passagem por Jerusalém
por ocasião da festa da Páscoa, que manifestaram aos
apóstolos seu desejo de ouvirem falar a Jesus; Jesus
concordou, mas o Evangelho não narra o sucedido depois do
encontro (59).
Depois da ressurreição do Cristo, a primeira
pregação do apóstolo Paulo em território grego, no
Areópago de Atenas, não correu conforme a expectativa. O
discurso foi interrompido, e enquanto uma parte dos
ouvintes zombava do apóstolo, outros, mais educados,
diziam que um dia qualquer talvez estivessem dispostos a
ouvir o restante (60).
Ao que parece, S. Paulo não guardou uma boa
impressão dos gregos. Mais tarde, ao escrever a Epístola
aos Coríntios, assim se expressou sobre os gregos:
"Os judeus exigem milagres,
e os gregos buscam a sabedoria,
mas nós pregamos a Cristo crucificado,
que é escândalo para os judeus
e loucura para os gregos" (61).
"Quando fui ter convosco
não fui anunciar-vos a mensagem de Deus
com sublimidade de linguagem
ou de sabedoria;
é, de fato,
da sabedoria que nós falamos;
não, porém,
da sabedoria deste mundo" (62).
"Pois está escrito:
`Arruinarei a sabedoria
dos sábios,
e frustrarei a inteligência
dos inteligentes'.
Onde está o sábio?
Onde está o filósofo deste mundo?" (63).
"Com efeito, irmãos,
considerai vossa vocação:
não há entre vós muitos sábios
segundo a carne,
mas, ao contrário,
os ignorantes e desprezados deste mundo
é que Deus escolheu" (64).
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O que provavelmente deve ter acontecido foi que
São Paulo não teve a oportunidade de se encontrar com
verdadeiros filósofos, mas sim com gregos de cultura média
que tinham alguma noção do que seria a filosofia mas não
viviam de fato do seu espírito. Pois, na verdade, uma
centena de anos depois, o que a história registra são
acontecimentos bastante diversos. No século II iniciaram-se
uma série de conversões, algumas delas famosas, de
filósofos gregos para o Cristianismo, não pouco
favorecidas justamente pela afinidade existente entre a
filosofia e o Evangelho.
Alguns destes filósofos convertidos são contados
hoje entre os santos padres dos primórdios do
Cristianismo, e deixaram escritas coisas admiráveis sobre
o caráter da filosofia grega, que chegariam a surpreender
diante das palavras do apóstolo Paulo aos Coríntios, se
não considerássemos o contexto diverso que circundava
estes escritores.
Um deles, para dar um exemplo, foi Clemente de
Alexandria, filósofo convertido ao Cristianismo no século
II por Panteno, outro filósofo também convertido ao
Cristianismo; os escritos de Clemente, ao mesmo tempo que
nos transmitem a impressão de estarmos diante de um homem
extraordinariamente sábio, nos revelam alguém dotado de
uma sinceridade de criança. No início de sua obra mais
profunda, o Livro das Tapeçarias, Clemente de Alexandria
deixou escrito o seguinte:
"Antes do advento do Senhor,
a filosofia foi necessária aos gregos
para a justiça,
e ainda hoje lhes é útil
para a piedade.
Deus é a causa de todos os bens;
de alguns bens
Ele é causa de modo principal,
como do Velho e do Novo Testamento;
de outros bens
Deus é causa por conseqüência,
como o foi no caso da filosofia.
Não é inverossímil que Deus
tenha dado a filosofia aos gregos
antes que os tivesse chamado
(ao Evangelho pela pregação dos apóstolos),
pois a filosofia ensinou aos gregos
como se fosse um pedagogo,
assim como a Lei (de Moisés)
ensinou os judeus,
preparando-os para (o advento de) Cristo.
De fato,
a filosofia preparou para os gregos
o caminho que o Cristo tornou
uma realidade perfeita" (65).
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Além da conversão de filósofos gregos ao Cristianismo,
outro fenômeno comum, a partir do século III, foi o
interesse de cristãos pela filosofia grega. Este foi o
caso de Orígenes, filho de mártires cristãos, educado no
Evangelho desde o berço. Ao atingir dezoito anos, o bispo
de Alexandria confiou a Orígenes, em plena época de
perseguições, a direção da escola catequética da cidade,
que vinha sendo regida até então por Clemente de
Alexandria, este mesmo cujo livro acabamos de citar. Para
poder dirigir esta escola de catequese na cidade que era
então a capital cultural do Império Romano, além de se
aprofundar no conhecimento das Sagradas Escrituras,
Orígenes aprendeu Hebraico e estudou com filósofos
famosos (66).
Num contexto como este, não seria para se
admirar que os cristãos começassem a descrever realidades
do Evangelho com termos ou modos de expressão tomados
emprestados à filosofia grega. Tal foi o caso da
contemplação.
Os filósofos gregos designavam a contemplação
com a palavra teoria, por oposição a práxis, ou ação. A
vida contemplativa era, pois, chamada entre os gregos de
vida teórica, por oposição à vida ativa, ou vida prática.
A significação original da palavra teoria provém de um
verbo grego que significa ver; daí provém também o nome
Deus, que em grego se diz Teos, e significa "Aquele que
vê".
Não existem termos assim nas Sagradas
Escrituras; em lugar algum do Velho ou do Novo Testamento
se fala nem de vida teórica, nem de vida contemplativa. No
entanto, se a expressão não existe, a realidade é
claramente descrita; e a passagem onde ela é provavelmente
mais evidente está contida no Evangelho de São Lucas:
diz o Evangelho de Lucas,
"entrou Jesus em uma povoação;
e uma mulher,
de nome Marta,
recebeu-O em sua casa.
Tinha esta uma irmã chamada Maria,
a qual, sentando-se aos pés do Senhor,
ouvia a sua palavra.
Marta, pelo contrário,
andava atarefada com muito serviço.
Deteve-se, então, e disse:
`Senhor, não te importa
que minha irmã me tenha deixado só
a servir?
Diz-lhe, pois,
que me ajude'.
Mas o Senhor respondeu-lhe:
`Marta, Marta,
inquietas-te
e te confundes com muitas coisas;
mas uma só coisa é necessária,
e Maria escolheu a melhor parte,
que não lhe será tirada'". |
Ora, o primeiro comentário que se conhece
escrito sobre o Evangelho de São Lucas é uma série de
Homilias proferidas por Orígenes no século III, cujo
original grego se perdeu. Da obra sobrou grande parte
destas homilias que foram traduzidas para o Latim no
século V por São Jerônimo; das homilias que São Jerônimo
não traduziu restam apenas fragmentos gregos. Entre estes
fragmentos está um que corresponde a uma passagem da
homilia que deveria comentar a passagem citada. No início
deste fragmento pode-se ler:
"Podemos admitir com verossimilhança
que Marta simboliza a práxis,
Maria a teoria.
O mistério da caridade
será tirado à vida prática
se o ensinamento e a exortação moral
não tiverem como finalidade a teoria,
porque a práxis e a teoria
não existem uma sem a outra" (67).
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Posteriormente, quando esta terminologia passou
a ser utilizada na língua latina, resultou que a vida
teórica passou a ser conhecida como vida contemplativa, e
a vida prática como vida ativa.
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