III.2.

Contemplação e sabedoria na filosofia grega.

Aristóteles, segundo muitos, o maior dos filósofos gregos, nasceu em Estagira, na Trácia, em 384 AC e passou os períodos mais importantes de sua vida em Atenas; foi professor de Alexandre Magno, antes dele suceder a seu pai no trono da Macedônia e iniciar suas conquistas militares na Grécia e no Oriente. Morreu em 322 AC. Foi discípulo de Platão durante 20 anos; ao morrer o seu mestre, fundou em Atenas uma escola própria de filosofia.

Platão, mestre de Aristóteles, viveu entre 427 e 347 AC. Foi, por sua vez, discípulo de Sócrates (469- 399AC).

Platão e Aristóteles são os maiores filósofos gregos de que temos conservados obras completas. Antes de Sócrates há registros espalhados pelas obras de escritores posteriores a respeito de uma grande multidão de filósofos, conhecidos genericamente como pré-socráticos, de que nos restam apenas fragmentos de seus escritos e informações esparsas sobre suas vidas. O primeiro destes filósofos é Tales de Mileto, que viveu aproximadamente entre os anos 624 e 554 AC. A filosofia Grega, assim, tem início por volta do ano 600 AC com Tales de Mileto, quase 400 anos antes da morte de Aristóteles. Juntamente com Tales de Mileto, os primeiros filósofos pré-socráticos floresceram na região de Éfeso e Mileto, na costa ocidental da atual Turquia, e não em Atenas, onde floresceriam mais tarde seus maiores filósofos, Sócrates, Platão e Aristóteles.

Os livros textos modernos de filosofia nos apresentam os primeiros filósofos pré-socráticos como pessoas dedicadas ao problema de determinar qual seria o princípio material de que é constituída a natureza. No caso de Tales, citam-se as seguintes palavras de Aristóteles como se referindo ao que seria a sua doutrina fundamental:

"Tales diz que o princípio é a água,
e por conseqüência declarou
que a terra está sobre a água;
ele formulou talvez esta suposição
por ver que o alimento de todas as coisas é úmido,
e que o próprio calor provém dele
e vive graças a ele,
pois aquilo de que tudo provém
é o princípio de todas as coisas.
Ele formulou esta hipótese não só a partir disto,
mas também pelo fato de que
as sementes de todas as coisas têm uma natureza úmida,
sendo a água o princípio natural das coisas úmidas"
(1).

Contemporâneo de Tales foi Anaximandro de Mileto. Ele escreveu uma obra intitulada Sobre a Natureza, da qual, como das demais dos restantes pré-socráticos, apenas sobraram fragmentos citados em livros de escritores posteriores. Segundo Anaximandro o princípio da natureza não era a água, nem o ar, nem nenhum outro elemento particular, mas o infinito, algo em que todas as coisas têm origem e em que todas as coisas se dissolvem quando termina o ciclo estabelecido para elas por uma lei necessária. Este princípio infinito seria por si mesmo indestrutível (2).

O primeiro filósofo a ter introduzido a filosofia na cidade de Atenas foi Anaxágoras, por volta de 450 AC, no auge do poder político ateniense. Também ele escreveu um livro intitulado Sobre a Natureza, que se perdeu. Neste livro ele afirmava que não havia um princípio único constituindo a natureza, mas muitos, e estes sob a forma de partículas invisíveis a que ele chamava de sementes. As sementes não nascem nem morrem, mas combinam-se entre si de formas diversas e com isto dão origem às diversas substâncias, dizia Anaxágoras. Em todas as coisas há sementes de todas as coisas, e a natureza de cada uma é determinada pelas sementes que prevalecem. Originariamente estas sementes estavam todas misturadas desordenadamente; uma inteligência, de natureza totalmente diversa, por não ser constituída destas sementes, teria introduzido então nelas o movimento e a ordem. Estas coisas Anaxágoras ensinava em Atenas (3).

Com base em afirmações como estas, considera-se muitas vezes nos livros de texto modernos que a diferença entre as doutrinas dos primeiros filósofos gregos e outras crenças de outros povos do mundo da época sobre a natureza consistiria principalmente no fato de que, enquanto os demais, ao afirmarem algo sobre a natureza, nada mais faziam do que se reportarem um mito ou uma lenda, os filósofos gregos, ao contrário, mesmo quando apresentassem uma doutrina aparentemente ingênua, esta não era mais para eles um mito, mas uma tentativa de buscar uma verdade que pudesse ser compreendida e justificada racionalmente. Esta seria a atitude básica que faria diferir os filósofos dos demais povos da época.

Esta interpretação, porém, não é inteiramente satisfatória; não é difícil ver nela uma transferência um pouco simplista do ideal contemporâneo da pesquisa científica para os filósofos pré-socráticos. Para entender o que deu origem ao movimento filosófico é preciso fazer um esforço proposital para nos reportarmos a um mundo e a um pensamento muito diferente do que ao que estamos habituados nos dias de hoje; em particular, não se pode ignorar os testemunhos da época que descrevem a importância da contemplação na vida destes filósofos.

De fato, os escritores gregos posteriores aos primeiros pré-socráticos nos apresentam estes filósofos como pessoas desprendidas das preocupações materiais do dia a dia e dedicados apaixonadamente à contemplação da natureza.

Sobre Tales de Mileto corria na antiguidade uma anedota transcrita nas obras de Platão e Aristóteles de como ele, caminhando pelo campo e absorto na contemplação do céu, caíu em um poço, provocando as gargalhadas de uma velhinha natural da Trácia que o estava seguindo, a qual lhe lançou ao rosto seu costume de contemplar as estrelas sem ver onde os pés pisavam (4).

Quanto a Anaxágoras, o homem que introduziu a filosofia em Atenas, também é apresentado pela tradição como um homem estranho a qualquer atividade prática. Para poder se ocupar em contemplar a natureza, entregou toda a sua fortuna de presente aos seus parentes. Interrogado sobre o objetivo de sua vida, respondeu que vivia para contemplar o Sol, a Lua e o céu. Aos que lhe reprovavam a falta de interesse pela sua pátria, respondeu que sua pátria, ao contrário, lhe importava muitíssimo, apontando com o dedo para o céu (5).

Pitágoras, ao que parece, depois de ter sido discípulo de Tales e Anaximandro de Mileto, viajou para o Egito onde estudou cerca de duas décadas com os seus sábios e sacerdotes, e dali parece ter passado mais uma década entre os sábios da Pérsia. Depois voltou para a Grécia e dali se dirigiu para as colônias gregas do sul da Itália. Quando o rei Leão de Fliunte lhe perguntou o que era um filósofo e o que os diferenciava dos demais homens, Pitágoras respondeu:

"A vida humana pode ser comparada
a um grande espetáculo,
como o das competições atléticas,
celebradas com enorme pompa
e freqüentadas por todo o mundo grego,
isto é, os Jogos Olímpicos.

Alguns para lá se dirigem
em busca da glória e da notoriedade
que o esforço físico de seus corpos puder lhes trazer.

Outros vão ali para comprar e vender,
na expectativa do ganho e do lucro.

Há também aqueles,
mais nobres,
que não buscam aplausos,
tampouco lucros,
mas desejam apenas
assistir e observar atentamente
de que forma as coisas acontecem.

Nós também estamos presentes,
por assim dizer,
num grande espetáculo,
e viemos,
como todo mundo,
de alguma cidade;
dessa maneira,
com seu modo de vida e seu padrão alterados,
uns vêm em busca da glória,
outros em busca do dinheiro,
mas há alguns que vieram contemplar o Universo
e não têm outro interesse a não ser esse.
Tais pessoas chamam-se a si mesmos
de amantes da sabedoria,
ou, em outras palavras,
filósofos.

Assim como nos Jogos Olímpicos
o mais nobre expectador é aquele
que nada busca para si mesmo,
a contemplação e o conhecimento da natureza estão,
na vida, acima de qualquer outra atividade"
(6).

Aparentemente uma atitude de vida como esta é, para o homem de hoje, tão estranha e inesperada que sua primeira reação seria a de considerar, provavelmente, pessoas que assim pensam como excêntricas. Entretanto, paralelamente a estes testemunhos, existem outros que nos mostram tais homens como pessoas dotadas de personalidades marcantes e tidas em alto conceito pelos que na época eram responsáveis pelos destinos das cidades.

De Tales sabe-se que era capaz de calcular e prever os eclipses solares, e deixou demonstrados alguns teoremas de Geometria que são estudados até hoje. De Tales de Mileto assim afirmou Aristóteles em seu tratado de Política:

"Atribui-se a Tales de Mileto,
por sua grande sabedoria,
um expediente eficaz para a aquisição de riqueza.
Tales, por causa de sua pobreza,
assim o conta a história,
foi objeto de riso pela carência de utilidade da filosofia;
porém, pelo seu conhecimento de astronomia,
tinha observado ele que,
enquanto era ainda inverno,
iria haver uma grande colheita de azeitonas,
de maneira que reuniu uma pequena soma de dinheiro
e alugou a totalidade das prensas de azeitonas
que havia em Mileto e em Quios,
as quais foram alugadas por uma quantia muito pequena,
já que ninguém as queria.
Quando, porém, veio a colheita,
houve uma demanda imprevista e repentina
de um grande número de prensas simultaneamente,
as quais Tales alugou ao preço e nas condições que ele queria,
com o que juntou uma grande soma de dinheiro,
demonstrando assim que,
se quisessem,
seria fácil aos filósofos serem ricos,
porém não é este o objetivo de seus trabalhos.
É assim que se diz que Tales de Mileto
mostrou sua sabedoria"
(7).

O mesmo Tales é citado pelos historiadores antigos como grande amigo de Sólon, o grande reformador de Atenas, o que mostra que, apesar de sua pobreza, não era tido como um cidadão comum. O primeiro encontro entre Sólon e Tales é narrado por Plutarco ao biografar a história de Sólon nas suas "Vidas Paralelas de Homens Ilustres". Sólon vinha de Atenas, e, ouvindo a fama de Tales, passando por Mileto, quiz fazer-lhe uma visita pessoal. Diz então Plutarco:

"Na visita a Tales, em Mileto,
Sólon estranhou o seu completo desinteresse
pelo matrimônio e pela procriação.
Tales ficou calado no momento;
deixou passar alguns dias
e arranjou com um estrangeiro
que se dissesse recém chegado
de uma viagem de dez dias a Atenas.
Sólon perguntou-lhe quais as novidades de lá;
o homem, instruído sobre o que responder, disse:

`Nada, exceto o enterro de um moço,
acompanhado pela cidade toda;
era, segundo dizem,
o filho de um homem ilustre,
o mais distinto dos cidadãos por suas virtudes;
este não se achava presente,
constava que estava de viagem
havia muito tempo'.

`Que homem desventurado',
exclamou Sólon.
` Como se chamava?'

`Ouvi o nome',
respondeu o homem;
` mas só me lembro
que se comentava muito
de sua sabedoria e equidade'.

Assim cada resposta ia levando
Sólon ao medo;
por fim, todo conturbado,
declarou seu nome ao estranho
e perguntou se não diziam ser o morto
o filho de Sólon.

O homem respondeu que sim.

Então Sólon começou a dar murros na cabeça
e fazer e dizer tudo o mais
que nestes transes se costuma.

Tales, porém,
tomou-o pelo braço, rindo,
e disse:

`Aí está, Sólon,
o que me afasta do casamento e da procriação;
são estas coisas que transtornam
até um homem inabalável como tu.
Vamos, não te desalentes com esta notícia,
pois é falsa'"
(8).

Quanto a Anaxágoras, aquele que introduziu a filosofia em Atenas, e apontava para o céu para indicar a sua pátria, o mesmo Plutarco atribui a este filósofo toda a formação do caráter de Péricles, o homem mais importante da História Grega depois de Alexandre o Grande, o qual, ademais, conforme vimos, também foi educado por outro filósofo na pessoa de Aristóteles.

O testemunho de Plutarco sobre Anaxágoras é bastante eloqüente, encontrando-se nas"Vidas Paralelas dos Homens Ilustres" quando biografa a vida de Péricles. Diz Plutarco que

"quem, todavia,
mais estreitamente se ligou a Péricles,
formando-o de sentimentos altivos,
superiores à sedução da demagogia,
quem, em suma, o elevou às alturas
e ergueu a dignidade de seu caráter,
foi Anaxágoras de Clazômenas.

A este os seus contemporâneos o apelidaram de
`A Mente',
ou por lhe admirarem o saber imenso
no ramo das ciências naturais,
manifestamente excepcional,
ou por ter sido o primeiro
a atribuir o princípio da ordem universal
não ao acaso, nem ao destino,
mas a uma mente pura e sem mescla que,
em meio à mistura geral,
reúne à parte as substâncias homeômeras.

Votando a este homem
uma desmedida admiração
e forrado da chamada
ciência dos corpos celestes
e de altas especulações,
Péricles, aparentemente,
não só mantinha uns sentimentos altivos,
uma linguagem elevada,
muito longe do gosto vulgar,
mas também um semblante composto
que nunca o riso desmanchava,
um andar pausado,
um aprumo nas vestes,
que emoção nenhuma perturbava nos discursos,
bem como uma impostação de voz imperturbável
e todos os mais traços destes
que impressionavam a toda a gente.

Certa vez, por exemplo,
insultado e destratado na praça
por um indivíduo desqualificado e sem educação,
suportou-o calado o dia inteiro,
enquanto cuidava de seus negócios urgentes;
à tarde voltou para casa sem alterar-se,
enquanto o homem o seguia de perto,
enxovalhando-o com toda a sorte de palavrões;
quando estava para entrar,
como já caía a noite,
mandou um de seus servos tomar uma lanterna
e escoltar o homem até entregá-lo em sua casa.

Mas nem só estes proveitos colheu Péricles
no convívio com Anaxágoras;
também superou o terror dos fenômenos celestes
que a superstição produz naqueles que,
por ignorância,
se deixam transtornar e confundir
pelos assuntos divinos;
o estudo da natureza remove a ignorância e,
em lugar da superstição timorata e inflamada,
cria uma piedade confiante,
de boas esperanças"
(9).

Testemunhos como estes deixam entrever que o objetivo dos primeiros filósofos ao contemplarem a natureza não pode ser superficialmente classificado como uma simples extravagância. No próprio modo de expressar-se de Plutarco notamos uma associação entre a contemplação da natureza e uma forma superior de educação do homem. De fato, na passagem que acabamos de citar, Plutarco primeiro menciona o estudo da natureza que Péricles conduzia sob a orientação de Anaxágoras:

"votando (Péricles) a este homem,
(Anaxágoras) ,
uma desmedida admiração,

e forrado da chamada ciência dos corpos
celestes e de altas especulações",

para logo em seguida associar tudo isto a um padrão elevado de comportamento, traços tipicamente resultantes de uma educação:

"não só mantinha sentimentos altivos,

uma linguagem elevada,

mas também todos os demais traços destes
que impressionavam a toda a gente".

Um testemunho semelhante nos é dado por Platão no diálogo conhecido como Timeu, associando a contemplação da natureza com que se iniciou a filosofia Grega com a ordenação do pensamento humano:

"De todas as especulações
que hoje se fazem sobre o universo,
nenhuma jamais teria sido feita
se os homens jamais tivessem visto
nem os astros, nem o Sol, nem o céu.
Pois o dia e a noite,
uma vez vistos,
assim como os meses e as sucessões dos anos,
nos conduziram ao número,
nos deram a noção do tempo
e nos levaram à busca da natureza do universo.
Por meio destas coisas teve início a filosofia,
da qual pode-se dizer que nenhum bem maior
jamais foi nem será concedido ao gênero humano.
Esta, na verdade,
foi a principal de todas as razões
para a existência de nossos olhos,
não havendo nenhuma outra razão maior do que esta.
Inútil será que nos lembremos das demais,
sendo, como são,
tão pequenas diante desta.
O motivo pelo qual Deus concedeu a visão aos homens
foi o seu pré-conhecimento de que,
vendo no céu os movimentos periódicos
da inteligência divina,
pudéssemos fazer uso deste conhecimento
para ordenar os pensamentos que também há em nós,
os quais têm parentesco com aquele
tanto quanto podem tê-lo
as coisas desordenadas com as ordenadas.
Desta maneira, por meio deste aprendizado,
poderíamos participar da retidão dos pensamentos
que se encontram na natureza e ordenar,
por meio deles, os nossos próprios,
que sem isso não cessam de errar"
(10).

Nestes testemunhos de Plutarco e de Platão afirmam-se implicações notáveis entre contemplação e pedagogia, desde a época dos primeiros pré-socráticos. Embora não se tratasse da contemplação no sentido mais profundamente elaborado posteriormente por Aristóteles,- tratava-se apenas da contemplação da natureza-, esta não era a trivialidade que poderia nos parecer num primeiro momento, mas algo em que estava envolvida toda a formação do homem.

Antes de mostrarmos como esta forma de contemplação haveria de evoluir até chegar a Aristóteles, queremos fazer algumas breves considerações no sentido de trazer à luz como já na contemplação da natureza está contido um dos mais profundos desafios que se pode colocar diante do homem.



Referências

(1) Aristóteles: Metafísica, L. I, C. 3; 983 b6.
(2) Abbagnano, Nicolas: Historia de la Filosofia; Barcelona, Montaner y Simon, 1954; vol. I, pg. 13. (3) Ibidem; pg. 13.
(4) Kirk,G.S. e Raven, J.E.: Os filósofos pré-socráticos; Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian; pgs. 73-74. Platão: Teeteto, 174 A. Aristóteles: Política, L. I, C. 11; 1259 a 9.
(5) Abbagnano, Nicolas: o.c.; pgs. 36-7.
(6) Cícero, Marcus Tulius: Tusculanae Disputationes, V, 3, 8.
(7) Aristóteles: Política, L. I, C. 4.
(8) Plutarco: Vidas Paralelas dos Homens Ilustres; Sólon, C. 6; pgs 46-7. (9) Ibidem; Péricles, C. 4, 5, 6.
(10) Platão: Timeu, 47 a-c.