III.3.

Comentário sobre a contemplação da natureza nos primeiros pré-socráticos.

Conforme acabamos de anunciar, vamos fazer algumas considerações no sentido de mostrar que tipos de desafio pode a inteligência encontrar já na simples contemplação da natureza. Se não se é capaz de perceber isto de imediato, apesar de estarmos mergulhados na natureza o tempo todo, é apenas porque estamos habitualmente preocupados com insignificantes problemas do dia-a-dia que desviam toda a atenção de nossa inteligência do espetáculo extraordinário que nos circunda.

Para tentarmos compreender o alcance desta afirmação, vamos considerar o ato mais trivial de qualquer estudante, o ato de vir à escola. Consideremos, ademais, um estudante habitualmente preocupado, um estudante de escola noturna.

Antes de vir à escola, para retemperarmos nossas forças e não sentir o incômodo de assistir à aula com fome, jantamos em nossas casas.Este simples ato já é por si um verdadeiro espetáculo.

Para tomarmos o alimento, a natureza teve que elaborar um sistema digestivo bastante complexo para ser capaz de digerir precisamente aqueles mesmos alimentos que ela própria, por outro lado, oferece a todos abundantemente.

Recolher estes alimentos esparsos pelo mundo para produzir uma simples janta seria uma tarefa penosíssima. Mas tudo isto, naquele momento, já tinha sido resolvido. Centenas de pessoas haviam estudado agricultura, haviam plantado nos lugares mais diversos cada um dos alimentos que iriam ser utilizados em nossa janta, outra multidão os colheu, centenas de homens os transportaram, outros os conservaram, e outros, finalmente, se especializaram em saber distribuí-los e vendê-los, deixando-os localizados em lugares de fácil acesso para que nós os adquiríssemos.

Assim, naquele momento, um mundo imenso de pessoas na verdade estava se preocupando conosco, e a própria natureza também, que sabiamente preparava as chuvas para a lavoura e fornecia ao nosso corpo as enzimas necessárias à digestão justamente daqueles alimentos que ela própria produzia.

Nós, porém, ali sentados, não prestamos atenção a nada disso. Só queríamos sair correndo para não chegar atrasados à escola.

Quando saímos de casa, porém, outro espetáculo não menos fantástico estava preparado.

Alguém tinha construído um elevador para nosso uso, e o tinha instalado exatamente no lugar onde era necessário para nosso pronto e imediato transporte. Para que o elevador estivesse ali, quantas pessoas não tinham trabalhado! Quanto carvão não teve que ser usado para produzir seu aço, quanta madeira não teve que ser plantada para construir suas portas, quantos operários e engenheiros não reelaboraram este aço e esta madeira para transformá-la em um elevador; quantos outros operários e engenheiros não tiveram que prever na planta do edifício todo o trabalho dos colegas que fabricavam o elevador. Mas depois, alguém continuava bombeando ininterruptamente energia elétrica de muito longe para que ele funcionasse com apenas um toque de nosso dedo; e para que este alguém pudesse fazer isto, milhares de outros homens tiveram que represar um rio e criar um lago artificial, para fazer o que, ademais, tiveram antes que criar uma cidade operária nas proximidades do campo de obras da represa!

A rua, ademais, estava calçada. Outras pessoas, sabe-se lá quantas, tinham se preocupado com isto também. A rua estava calçada, e estava também asfaltada, para fazer com que um ônibus pudesse trafegar para nossa comodidade. Sem que o pedíssemos, não apenas um ônibus, mas os mais diversos ônibus passavam regularmente à nossa disposição para nos levar não a um só lugar, mas a qualquer lugar que quiséssemos. Para isto milhares de pessoas tiveram que estudar mecânica, projetar os ônibus, construir os ônibus, vender os ônibus, fazer a manutenção dos ônibus, dirigir os ônibus, explorar petróleo, refinar petróleo, transportar gasolina, educar motoristas, educar o trânsito, sinalizar o trânsito, e não só tinham feito tudo isso como o continuavam fazendo incessantemente para que pudéssemos tomar o ônibus naquele momento ou a qualquer momento.

Naquele momento o Sol se punha. O Sol também fazia parte do espetáculo. Fazia séculos que o Sol brilhava todos os dias, e por causa disso é que podíamos enxergar todas as coisas, mas o que é incrível, porém, é que nós não percebemos ou pensamos nisto um só momento.

Estávamos preocupados, como sempre, com um insignificante problema pessoal, infinitamente menor do que tudo isso, teoricamente muito menos capaz de chamar a atenção de qualquer ser inteligente por mais obtuso que fosse, mas que na verdade era exatamente o que estava conseguindo tirar toda a nossa atenção daquele espetáculo fantástico: o temor de um atraso pessoal de alguns minutos.

Como é possível que uma coisa tão minúscula e tão insignificante impeça para a maioria das pessoas a percepção de uma coisa destas? Pois se é compreensível que todos tenham o seu momento patológico na vida, o fato é que, quando lecionamos e falamos destas coisas em salas de aula onde há alunos se preparando para o Magistério, vários dos quais contando com mais de trinta anos de idade, percebemos que era, na verdade, a primeira vez em todas as suas vidas que se davam conta do espetáculo de que falava Pitágoras.

Mas, chegando à escola, não paramos para perceber também que não estávamos chegando sozinhos a esta nobre instituição. Para que pudéssemos aprender alguma coisa, todo este aparato fenomenal que nos permitiu chegar à escola foi igualmente mobilizado para trazer dos lugares mais diversos dezenas ou centenas de outras pessoas para fazerem funcionar a escola normalmente enquanto pudéssemos estudar tranqüilamente. O nosso pequeno objetivo de nos dirigirmos à escola assim encontrava resposta em um aparato de escala mundial, mas nem nós, nem nenhum dos funcionários da escola pensavam nisto. Nós estávamos preocupados com o atraso; os funcionários com o salário que iam receber no fim do mês.

Como nós não observávamos o que acontecia à nossa volta, subimos as escadas correndo. Encontramos então não apenas um corpo de funcionários, mas também um corpo de professores que estavam sendo preparados desde a sua infância, recrutados das mais diversas cidades e educados por milhares de outros professores para que pudessem acumular um vasto conhecimento e tudo isto, enfim, para dar uma aula de 50 minutos às 20:00 horas.

Como é possível que um tão vasto complexo de forças naturais, das quais esta discussão é apenas uma insignificante fração, pudesse estar tão adequadamente ajustada para um objetivo tão pequeno? E que fêz aquele aluno em toda a sua vida para merecer semelhante coisa em troca? Como se não bastasse, fazia mais de trinta anos que ele nem sequer se dava conta de tudo isto, e iria passar mais outros quarenta e morrer assim, reclamando da imensidão de seus problemas, se não despertasse, só por alguns minutos, apenas durante aquela aula.

Quem não é capaz de entrever a admirável beleza que existe por detrás de tudo isto, e o inexplicável sono em que vivemos no nosso quotidiano?

Quando ouvimos, portanto, de um pré-socrático ter feito da contemplação da natureza a razão de sua vida, devemos admirar como ele conseguiu fazer a vida inteira aquilo que mal conseguimos fazer durante alguns minutos e ainda por cima com a ajuda alheia.

Mas, se persistíssemos na observação do mundo à nossa volta, começaríamos a perceber coisas ainda mais dignas de atenção. A natureza é, por si só, um espetáculo. Mas este espetáculo difere dos demais em um aspecto muito intrigante. Nos espetáculos humanos são os expectadores que vão ao espetáculo. Mas no espetáculo da natureza, foi ele mesmo que, depois de pronto, produziu o expectador, como se isto também fosse parte do espetáculo. Ela parece ter produzido um ser capaz de tomar consciência de tudo isto, como se esta natureza estivesse querendo se elevar acima dela própria e admirar-se a si mesma. Neste ponto o espetáculo chega ao seu máximo, e os expectadores se tornam também, deste modo, os protagonistas principais do espetáculo.

Que quer dizer este exemplo?

Em primeiro lugar, que fica claro que a atitude contemplativa dos pré-socráticos em relação à natureza não era uma contemplação visual, mas uma atividade da inteligência. Não estivemos, de fato, neste discurso, nos referindo à beleza visual da natureza, mas a uma outra beleza que somente pode ser vista pela inteligência. É apenas neste sentido que a natureza é capaz de constituir o desafio profundo para o espírito humano de que falamos acima.

A natureza, de fato, somente é capaz de chamar poderosamente a atenção do homem quando somos capazes de perceber como ela, apesar de não ser inteligente, parece participar da mesma espécie de racionalidade de que é dotado o espírito humano. Os movimentos da natureza que nos circundam parecem ter em si finalidades inteligentes, assim como quando os homens fazem uma obra de arte ou executam alguma atividade que necessite do uso da razão. É deste efeito que esta atividade dos pré-socráticos tirava o seu fascínio, como também a tornava uma fonte de educação da inteligência, conforme vimos na citação do Timeu de Platão.

Mas, ademais, a atitude de contemplar a natureza não é algo que surge no homem já em sua forma mais plena e acabada. Todos aqueles que ouviram esta preleção ficaram com a lembrança do que ouviram, mas afundaram novamente para sempre no pavor de se atrasarem e na preocupação com os seus salários. Nem continuaram no que viveram, nem aprofundaram o que viram. A contemplação dos primeiros pré-socráticos é, portanto, algo que tem que ser aprendido, cultivado, disciplinado e aperfeiçoado, ou seja, em outras palavras, é objeto de educação. Era objeto de educação dos filósofos entre si. A contemplação da natureza, no sentido em que tentamos explicar, foi, pois, o primeiro grande objeto de educação entre os filósofos.

Mas ainda pode-se perguntar: por que motivo? Por que este foi o primeiro objeto de educação entre os filósofos? Por que este e não outro?

Porque, diriam os filósofos pré-socráticos, ao contrário de tantas outras, esta é uma qualidade característicamente humana. E nós, diriam eles, queremos desenvolver no homem as características que ele tem enquanto homem, e não apenas enquanto animal.

De fato, tomemos alguns exemplos. Educar o homem para a vida militar, como era naquela época a essência da educação em Esparta, não é desenvolver no homem uma qualidade característicamente humana. A vida militar é para o homem um modo de defender sua integridade corporal. Qualquer animal faz isto; a vida militar apenas faz o mesmo de um modo mais sofisticado.

Educar o homem para uma determinada profissão como engenharia, agricultura, medicina e outras mais, também não é desenvolver no homem uma qualidade característicamente humana, no sentido em que acabamos de explicar. Os animais também fazem suas tocas, procuram alimentos, tomam suas rudimentares providências quando estão doentes ou feridos. Através da construção, do plantio, dos remédios, o homem não faz algo de essencialmente diverso; mudou apenas o grau de sofisticação no que é comum a todos os animais. A educação para o mercado de trabalho, que visa principalmente através do labor a obtenção de casa, alimento e remédios, não difere essencialmente no homem da vida animal em geral, mas apenas circunstancialmente pelo grau de perfeição.

Educar o homem nas boas maneiras, nas menores cortesias e no trato social também não é desenvolver no homem uma qualidade essencialmente humana. Grande parte dos animais vive em bandos ou sociedades primitivas, como as alcatéias de lobos, os bandos de elefantes, as colônias de formigas e as sociedades da abelhas, e tantos outros.

Mas ser capaz de compreender o espetáculo impressionante da natureza, contemplá-lo em toda a sua profundidade, estar consciente dele a todo momento, e compreender sua vastidão diante de um ato da inteligência humana, isto está acima da capacidade de qualquer outro animal, exceção feita ao homem. Ademais, tudo na natureza parece ter um sentido; seria de se esperar, com isto, que houvesse também um sentido na sua obra mais perfeita, que é o homem; deveria haver, então, algum motivo para que a natureza tivesse dotado o homem de alguma qualidade especificamente apenas a ele pertencente.

É neste sentido, pois, que estes filósofos pré- socráticos estavam querendo educar o ser humano; senão, por mais que trabalhassem, estariam apenas educando um animal mais domesticável do que os demais.

Não nos consta que algum pré-socrático tivesse dado estas justificativas e estas explicações; pode ser que isto se deva a que a maioria de seus escritos se perderam; mas, se eles não a deram, pelo menos ela se encontra nos escritos de Tomás de Aquino.

De fato, quando Tomás explica na Summa contra Gentiles que a felicidade última do homem não pode consistir nos atos das virtudes morais, uma das razões que ele dá para isto é a seguinte:

"A felicidade é algo próprio do homem.

Portanto, sua felicidade última
deverá ser procurada naquilo
que é mais próprio do homem
por comparação a todos os animais.

Ora, não é este o caso das virtudes morais,
pois os demais animais participam em algo
da liberalidade ou da fortaleza;
mas do ato da inteligência
nenhum animal participa em nada.

Portanto, a felicidade última do homem
não pode consistir nos atos morais"
(11).

Este argumento, ademais, não é próprio de S. Tomás. Tampouco ele o retirou dos Evangelhos ou da tradição cristã. Trata-se de um argumento que provém da filosofia grega e é típico dela. Sua origem imediata é a Ética de Aristóteles: foi ele que disse no princípio da Ética que o bem final do homem consiste na sua operação própria (12), que existe uma operação própria do homem porque ele é algo existente segundo a natureza e portanto é impossível que a isto não se siga uma operação própria (13), que esta não pode consistir na vida nutritiva ou aumentativa, que é comum com as plantas (14), nem na sensitiva ou na deleitação sensível, que é comum com os animais (15), nem nas faculdades humanas que podem ser reguladas pela inteligência, mas na própria inteligência (16).



Referências

(12) In libros Ethicorum Expositio, L. I., l. 10, 119.
(13) Idem, L. I, l. 10, 121. (14) Idem, L. I, l. 10, 124. (15) Idem, L. I, l. 10, 125. (16) Idem, L. I, l. 10, 126.