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Entre as opiniões sobre a felicidade humana, aquela que
coloca a felicidade na riqueza é a menos racional de todas, menos
inclusive do que a anterior (31).
Pois os prazeres do corpo, ainda que se ordenem do ponto de
vista da ordem natural a outros fins, o homem pode pelo menos desejá-los
na ilusão de serem um bem em si. Mas nenhum homem pode desejar a riqueza
como um bem em si; ele sempre a quer por causa de outro. Não pode, pois,
ser o fim último da vontade humana (32).
A riqueza pode ser buscada, mas não como fim último. Um
sistema educacional que buscasse a riqueza como seu fim último estaria
indo não só contra a ordem da natureza como também estaria frustrando no
homem seus anseios mais profundos; seria, para a natureza humana, uma
verdadeira aberração.
Mas é exatamente assim que estão construídos grande parte
dos sistemas educacionais modernos; são instrumentos de desenvolvimento
econômico e de geração de riqueza nas mãos do Estado. Na introdução a
este trabalho já citamos, pelas palavras de C. W. Abramo, um exemplo de
como isso ocorre :
"O fundamental para a formulação
das políticas educacionais
é a existência de uma política industrial
de longo prazo,
que especifique as metas de produção
em algumas áreas chaves.
Disto decorre a necessidade de formar anualmente
milhares de engenheiros, de químicos industriais, etc.,
com determinadas habilidades.
Daí derivam as exigências aos egressos
dos cursos secundários e assim por diante,
em cascata, até o primeiro ano do primeiro grau" (33).
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Pode-se argumentar que o fim de um sistema educacional como
este descrito por Cláudio W. Abramo não é a riqueza para o indivíduo,
mas para a nação; enquanto indivíduo, ele pode procurar a educação tendo
em vista outros fins. Mas a isto pode-se responder com o Comentário à
Política que afirma:
"A finalidade da república corretamente ordenada
é (a mesma que) o fim último do homem (34).
A virtude de toda a cidade
e a virtude de cada cidadão
são da mesma natureza,
tanto em si, como na sua ordenação à operação;
não diferem senão como o todo em relação à parte
e como o maior difere do menor,
pois a virtude da cidade é um agregado
das virtudes parciais dos cidadãos,
e por isso, a virtude do indivíduo
e de toda a cidade consistem no mesmo (35).
É manifesto que a felicidade de um só homem
e a felicidade da cidade
são da mesma e uma só natureza,
já que todos os que falam sobre a felicidade
é isto que parecem dizer.
De fato, todos aqueles que colocaram
a felicidade do homem estar na riqueza,
estes também dizem que será feliz a cidade
em que houver abundância de riquezas (36).
Ora, uma cidade não pode ordenar-se
de modo último à riqueza,
pois a própria riqueza se ordena a outros fins (37)".
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Segundo S. Tomás de Aquino, portanto, ordenar o sistema educacional de
uma nação ao desenvolvimento econômico e à produção de riqueza como ao
seu fim último significa desvirtuar a natureza do homem e da sociedade.
É, porém, o que querem, sob o aplauso de muitos, grande parte dos
educadores e homens públicos famosos.
Vejamos o caso de Anísio Teixeira, figura de primeira
grandeza na história da educação brasileira na primeira metade do século
XX, homem verdadeiramente extraordinário, dotado de inteligência clara e
idéias abertas, educador abnegadíssimo, um autêntico apóstolo da
instrução pública, um cidadão que honraria qualquer nação do mundo
moderno. Quem lhe poderia negar estas qualidades sem ser preconceituoso?
No entanto, foi ele próprio que escreveu na Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos o parágrafo que se segue:
"Participei, em 1929,
na Universidade de Colúmbia,
do primeiro curso que ali se ministrou
sobre economia da educação.
O professor Clark nos deu então,
em sua primeira aula,
uma definição de educação que guardo até hoje
e à qual sempre me refiro
para convencer certos espíritos
de que a educação não é apenas
um processo de formação e aperfeiçoamento do homem,
mas o processo econômico
de desenvolver o capital humano da sociedade" (38).
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Novamente, é a mesma idéia que aflora: o fim último do sistema
educacional é um objetivo econômico. Anísio Teixeira diz no texto citado
que a educação "não é apenas o processo de formação e aperfeiçoamento do
homem"; com isto pareceria à primeira vista que talvez ele reconhecesse
dois fins últimos para a educação, dos quais o econômico seria apenas um
deles. Mas a continuação do mesmo texto parece desmentir esta
interpretação:
"A definição que o professor Clark nos deu, em 1929,
era a de que a educação intencional,
ou seja, a educação escolar,
é o processo pelo qual se distribuem adequadamente
os homens pelas diferentes ocupações da sociedade.
A educação escolar, dizia ele,
é o processo pelo qual a população se distribui
pelos diferentes ramos
de trabalho diversificado da sociedade" (39).
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Em "Educação e Democracia" encontramos outro texto de Anísio Teixeira
que completa a idéia anterior:
"Precisamos sair de nossas escolas,
com seus problemazinhos de ordem e moralização,
para sentirmos o problema da educação que é,
conforme vimos,
um problema de preparação de técnicos
em todos os graus e ramos,
destinados a servir um período da idade do homem
de base profundamente científica
e caracterização acentuadamente técnica.
Hoje todos têm que produzir" (40).
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Acabamos de ver como dois educadores brasileiros pretendem
que a educação seja instrumento para a produção de riqueza. Muitos
professores, entretanto, têm ainda assim a ilusão de que este objetivo
existe apenas no plano político; no plano individual isto não parece
significar necessariamente que tenhamos que dar ao estudante o ideal da
riqueza, apesar de este ser explicitamente já o ideal da sociedade.
Daremos ao jovem apenas a oportunidade de aprender uma profissão; com
ela promoveremos a prosperidade da sociedade, mas isto não implica ter
que ensinar ao jovem que a riqueza seja o fim último de sua vida
pessoal. Pode haver professores que entrem no sistema escolar inclusive
com o propósito de ensinarem o contrário. Se algum de seus alunos,
portanto, sair do sistema escolar com a idéia oposta, isto poderá
parecer a estes professores, do ponto de vista do sistema escolar, um
acaso, devido não à influência da escola, mas à influência geral da
sociedade. Esta, de fato, é a impressão que costumam ter, a este
respeito, os professores que dentro do sistema de ensino educam os
jovens, do primário à Universidade. No entanto, esta impressão de
casualidade, quando analisada novamente no plano da política econômica,
desaparece. Vejamos, neste sentido, o que se pode ler no capítulo que
trata do crescimento econômico de um livro-texto padrão de
Macroeconomia:
"A sede de crescimento econômico
tornou-se quase uma obstinação sistemática
nos anos recentes.
As Faculdades e as Universidades
introduziram novos cursos
e criaram institutos especiais
só para tratar do assunto.
Inúmeros livros têm aparecido,
bem como conferências, discursos,
e artigos são levados a efeito
em quantidades cada vez maiores.
Entretanto, o tópico "crescimento"
é extremamente amplo
e abrange muitas espécies de fenômenos
bastante distintos.
Devemos, entretanto, distinguir aqui
pelo menos duas categorias gerais.
Uma se refere ao crescimento
de uma economia já desenvolvida.
Esta forma de crescimento
é um fenômeno mais simples
e pelo menos é plausível
que possa ser analisada por instrumentos
puramente econômicos.
A outra forma de crescimento
refere-se à questão que trata da passagem
de uma economia de "subdesenvolvimento"
ao estágio de "desenvolvimento".
Trata-se de um tipo de alteração
que está associada a alguns dos problemas
mais preementes de natureza social,
política e ideológica do mundo moderno.
Esta forma de desenvolvimento econômico
abrange inúmeros outros aspectos
da organização cultural e social.
Um aspecto importante consiste
em alterar a motivação não econômica da sociedade
para uma motivação econômica,
isto é, das formas habituais
ou costumeiras do comportamento,
de dominância política ou religiosa em assuntos econômicos,
a um conceito racional, centralizado em bens,
e medido pelo bem estar pessoal e social.
Estas e outras alterações básicas,
que envolvem a total transformação da cultura,
exigem também os conceitos,
as teorias e as visões do sociólogo,
do cientista político,...
...e dos educadores" (41).
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Este texto afirma claramente que o desenvolvimento
econômico dos países subdesenvolvidos exige o trabalho de educadores no
sentido de alterar as motivações dos cidadãos que compõem a sociedade
para um
"comportamento centralizado em bens"
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em um esforço que
"envolve a total transformação da cultura".
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É assim que tem sido organizado o sistema escolar e, quer queiram, quer
não queiram, é para isto que têm trabalhado os professores da maioria
das escolas.
Em uma entrevista concedida à revista Veja em 1989, Jean
Luc Lagardére, empresário francês proprietário de uma editora que,
segundo a revista, publica um terço dos livros da Europa, manifesta
perspectivas idênticas para o trabalho educacional:
VEJA: "No caso do Brasil, qual é,
na sua opinião, o maior entrave
à retomada do crescimento?"
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LAGARDÈRE: "Existe o problema da dívida brasileira.
A inflação também é uma dificuldade importante.
Porém ainda mais importante para o Brasil
é a educação: formar homens preparados.
Logo após a Segunda Guerra Mundial,
o que mais entravava o desenvolvimento na França
não era a falta de recursos,
mas a falta de homens.
O Brasil deveria dedicar um grande esforço
a formar homens com idéias modernas
e com a disciplina necessária
aos empreendimentos na indústria
e ao desenvolvimento tecnológico.
Um investimento de base,
que é o investimento na educação superior e tecnológica,
pode ter sido insuficiente.
Existem atividades que são estratégicas
e que devem caber ao Estado,
como a educação" (42).
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As idéias que Lagardère aqui utiliza são as mesmas que as dos textos
anteriores. Ele vê na educação um instrumento para
"os empreendimentos na indústria
e o desenvolvimento tecnológico".
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Vê nela também
"um investimento de base",
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especialmente
"o investimento na educação
superior e tecnológica",
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expressões tomadas de empréstimo à terminologia
econômica. Vê nela também uma
Estratégia se diz por relação a um objetivo que está além da estratégia;
este objetivo, no caso acima, está na política de crescimento econômico.
Idéias como estas se disseminaram de tal modo na sociedade
contemporânea que podem ser encontradas em quase toda parte sem
aparentemente gerar contestação. É o que transparece em uma pequena
notícia publicada no Jornal de Recursos Humanos do jornal
O Estado de São Paulo:
"O final do século parece estar apontando
novos parâmetros de liderança.
A educação traçará o mapa do poder
no século XXI.
Não será mais a força da capacidade industrial,
mas sim a competência em gerar novos conhecimentos
que irá determinar as nações líderes
no próximo milênio.
A resposta para explicar o surgimento
e a sustentação do poder
das nações chamadas os Tigres Asiáticos
gravita necessariamente em torno de um ponto
comum a todos eles: a capacitação de seus habitantes.
No futuro a riqueza das nações virá mais
do conhecimento do que
da produção de bens e serviços.
Daí a urgência de uma nova política
de educação para as nações" (43).
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De que nova política de educação está falando este texto? De uma
política que oriente o sistema educacional no sentido de ter como fim
último a riqueza. É a idéia que há em comum em todos os textos já
citados acima; suas proveniências das mais diferentes fontes, todas elas
correntes na sociedade contemporânea, mostra o quão profundamente se
alojou esta idéia nos homens de hoje e o quanto ela lhes parece natural.
No entanto, diz Tomás de Aquino, este não pode ser nem o
fim último do homem, nem o fim último da educação. Pretender uma coisa
destas é um atentado contra a natureza humana. E se isto parece ser tão
natural aos homens, tal fato não faz mais do que revelar o quanto eles
se afastaram do conhecimento de sua própria natureza. Se, depois, com o
tempo e o desenrolar de suas vidas eles descobrem que não há sentido em
fazer aquilo para o qual foram preparados durante anos, e, ademais,
descobrem que também não sabem fazer nada mais que possa fazer sentido,
não é sem causa que isto lhes veio a acontecer, e grande parte da culpa
deste fato se deveu justamente aos educadores.
É evidente que com a presente argumentação não se deseja
condenar a busca do desenvolvimento econômico, tarefa não só necessária
como também irrealizável sem o concurso do trabalho do educador. Coisa
muito diferente é transformar a busca do desenvolvimento econômico, um
aspecto necessariamente secundário e circunstancial da educação, na meta
final do sistema educacional. Conforme afirma Aristóteles no VIIº da
Política,
"Ninguém nega que os bens do homem
se dividem em bens exteriores,
bens do corpo e bens da alma,
e que o homem, para ser feliz,
deve possuir a todos.
A controvérsia a este respeito
reside na determinação da medida e do excesso,
pois os homens se contentam facilmente
com a posse de qualquer grau de virtude,
por menor que seja,
enquanto que para coisas como a riqueza,
o poder, a glória e outras tais
não sabem impor limites
nem encontrar excessos
para os seus desejos" (44).
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Ora, a ausência de limites é uma das principais características daquilo
que é desejado como fim último. Conforme já vimos, os bens que são fins
últimos são para serem utilizados ao máximo e sem limitações; só se
utilizam medidas e limites com aqueles bens que são meios para se
alcançarem os fins. A constatação, portanto, de que os homens desejam
ilimitadamente riqueza e desenvolvimento econômico e se satisfazem quase
que de imediato com os bens da alma não pode ser sinal de ordenação
feita segundo a sabedoria. Isto significa que, não importa se explícita
ou implicitamente, a riqueza se tornou o fim último do homem e os bens
da alma passaram a simples instrumentos para se chegar àquela meta, numa
total inversão da ordem encontrada na natureza humana. É algo que não
poderia acontecer em educação. Se acontece e se existem sistemas
educacionais assim organizados, não há como defendê-los de serem
atentatórios à natureza humana.
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