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O ser não se diz do mesmo modo de todos os entes. Já
vimos que há entes mais e menos imateriais, e os mais imateriais
participam mais plenamente do ser do que os menos imateriais.
Da mesma maneira, há diversos graus de apreensão do
ser por parte da inteligência; quanto mais abstratamente a
inteligência apreende o ser, tanto mais puro é o conhecimento que
ela tem do ser.
O conhecimento das coisas divinas, que primam pela
imaterialidade, portanto, não é puro no homem apenas por parte da
imaterialidade do objeto, mas admite gradações de acordo com a
maior ou menor participação deste conhecimento da natureza de seu
objeto.
Daí que a fé, sendo conhecimento das coisas divinas,
pode crescer não apenas pela firmeza e pela constância, mas
também pela pureza; e desta pureza também vive o justo que vive
pela fé.
Para crescer em pureza, a fé conta com o auxílio de
alguns elementos de que não dispõe o filósofo; um deles são os
próprios dados da Revelação, que nos instruem sobre muita coisa
que está além das possibilidades de investigação do filósofo,
como o mistério da Trindade. Partindo destes dados como de
princípios provenientes de uma ciência superior à filosofia, a fé
pode chegar a um conhecimento das coisas divinas mais puro do que
o da filosofia.
Temos na tradição cristã um belíssimo exemplo da
pureza do conhecimento da fé no tratado sobre a Santíssima
Trindade escrito por Ricardo de São Vitor, um conjunto admirável
de seis livros, conhecido apenas como De Trinitate (22). Embora
ele se baseie, como em seu princípio e fundamento último, nos
dados da Revelação, não obstante isso gerações de cristãos
prepararam na verdade esta obra, assim como gerações de filósofos
prepararam as de Aristóteles; ela é, em primeiro lugar, um
prolongamento do VII do Didascalicon de Hugo de S. Vitor (23);
esta obra de Hugo de S. Vitor, por sua vez, se baseia no De Trinitate de Santo
Agostinho (24), que foi o ponto culminante de todo o
aprofundamento sobre a questão trinitária havido nos quatro
primeiros séculos do cristianismo e em que estiveram envolvidos
os dois primeiros concílios ecumênicos da Igreja. Tudo isto
convergiu em Ricardo de São Vitor para uma das mais sublimes
exposições da vida divina que jamais se escreveram, mas que
Ricardo de São Vitor afirma ter sido escrita para mostrar em que
sentido os justos são ditos viver da fé:
"`O meu justo vive da fé'",
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diz Ricardo de S. Vitor no início do prólogo do De Trinitate,
citando ao mesmo tempo nesta
frase ao apóstolo Paulo e ao profeta
Habacuc.
continua Ricardo,
"é ao mesmo tempo
apostólica e profética.
O apóstolo diz o que o profeta prediz,
pois o justo vive da fé;
e se assim é,
ou melhor,
porque assim é,
devemos nos elevar com frequência
aos mistérios da nossa fé.
Sem a fé, de fato,
é impossível agradar a Deus.
Pois onde não há fé,
não pode haver esperança.
Onde não há esperança,
não pode haver caridade.
Pela fé, portanto,
somos promovidos à esperança,
e pela esperança progredimos à caridade.
Qual seja, porém,
o fruto da caridade,
poderás ouvi-lo
da própria boca da verdade:
`Se alguém me ama,
será amado pelo meu Pai,
e eu o amarei,
e me manifestarei a ele'. |
Do amor, portanto,
provém a manifestação,
da manifestação a contemplação,
e da contemplação o conhecimento.
Quão aplicados, pois,
não nos convém ser à fé,
da qual procede o fundamento de todo bem
e através da qual se alcança o firmamento?
Se somos filhos de Sião,
levantemos aquela sublime escada da contemplação,
tomemos asas como de águia
pelas quais nos possamos
destacar das coisas terrenas
e nos levantar às coisas celestes.
Pensemos nas coisas do alto,
não nas coisas da terra,
onde Cristo está sentado
à direita do Deus;
para isto, de fato,
Cristo nos enviou o seu Espírito,
para que conduzisse o nosso espírito de tal modo
que para onde o Cristo ascendeu com o corpo,
ascendamos nós pela mente" (25).
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Ascendamos pela mente, diz Ricardo de S. Vitor; quem ascende
ascende para o alto, que é Deus, o qual sendo maximamente ser, é
maximamente imaterial e puro. Portanto, Ricardo de S. Vitor nos
convida aqui a crescermos na pureza da fé. Á medida em que esta
pureza cresce, diz Tomás de Aquino, também se estende às demais
potências da alma, pois, segundo ele, a pureza da fé causa a
pureza do coração:
"as coisas que estão na inteligência
são princípios das coisas que estão no afeto,
na medida em que o bem do intelecto
move o afeto;
de onde que a purificação do coração
é um efeito da fé" (26).
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Disto também é testemunha São Pedro, quando, nos Atos dos
Apóstolos, falando aos judeus a respeito dos pagãos, assim lhes
disse:
"Deus não fêz distinção alguma
entre eles e nós,
pois purificou os seus corações
pela fé". |
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