|
Pelo que já expusemos sobre a fé, apesar de tratar-se
de um conhecimento que alcança seu objeto movido pela vontade,
pode-se perceber nela notáveis semelhanças com a contemplação da
sabedoria descrita pelos filósofos. Diferenças mais marcantes
começam a aparecer quando, examinado mais atentamente o conteúdo
do que é proposto pela fé, somos levados a concluir que apenas a
vontade não é suficiente para mover a inteligência ao
assentimento da fé; de fato, se dependesse apenas da vontade, a
fé seria impossível.
Vimos que a fé diz respeito a objetos que primam pela
sua imaterialidade e que, por isso mesmo excedem o alcance dos
sentidos e da imaginação, somente podendo ser alcançados pela
abstração da inteligência. Examinando, porém, melhor o seu
conteúdo, verificamos que a fé igualmente nos revela coisas a
respeito deste objetos que estão para além do alcance da
evidência não só dos sentidos, mas também da inteligência humana,
ainda que ela possuísse o hábito da sabedoria tão perfeito quanto
possível. Ora, se a inteligência é o que há de principal na
natureza do homem, segue-se daqui que a fé diz respeito a coisas
que ultrapassam a barreira do que é conatural ao homem, por mais
que se leve a sua natureza aos limites de sua perfectibilidade.
Uma coisa é, de fato, que depois de anos de estudo se
chegue à firme certeza de que existe um ser inteligente e
imaterial que é a causa do ser de todas as coisas e que excede na
perfeição de seu próprio ser a tudo quanto existe além dele; que
a felicidade do homem consiste em assemelhar-se a esta causa
primeira; e que ela dispôs todas as coisas de modo a favorecer
aqueles que assim procedem. Outra coisa muito diferente, porém,
são as afirmações da fé segundo a qual somos amados pela causa
primeira como seus filhos; que quando oramos a causa primeira nos
ouve como um pai; e que ela nos espera após o término desta vida
como a um ente querido para nos fazer felizes por toda a
eternidade. Não há número de anos de estudo que sejam suficientes
para se chegar à evidência de afirmações como estas. Ao
contrário, quem quer que tenha verdadeiramente considerado a
natureza do ser da causa primeira tal como nos reporta a
metafísica, diante da impossibilidade de se produzir uma
evidência filosófica para estas afirmações, não pode deixar de se
surpreender pela certeza com que são formuladas pela fé.
De fato, que é o ser humano diante da imensidão do
Universo que não precisamos descrever? É menos do que um grão de
poeira. E o que é o Universo inteiro diante da perfeição da causa
primeira? Menos ainda do que o homem diante do Universo.
Certamente a causa primeira sustenta todas as coisas
no ser e sabe, por ser inteligente, que existem as coisas de que
ela é causa; mas daí para a afirmação de que quando oramos a
causa primeira nos ouve como um pai vai uma diferença descomunal.
Que dizer, então, de afirmações segundo a qual Jesus
Cristo era a causa primeira, crucificada por ordem de Pôncio
Pilatos? Ou daquela segundo a qual na causa primeira,
perfeitamente una, subsistem desde toda a eternidade três pessoas
que compartilham uma só divindade, que se conhecem e se amam com
uma felicidade que supera o alcance de qualquer entendimento?
Que esta causa primeira nos ame a ponto de ter se
deixado crucificar pelos homens e que esteja nos esperando após o
término desta vida não apenas para fazer nos felizes levando as
possibilidades de nossa natureza intelectiva aos limites de sua
perfectibilidade, mas comunicando-nos uma outra felicidade, não a
máxima que é possível à nossa inteligência, mas a sua própria,
aquela que há nela mesma em virtude da Trindade de suas pessoas,
é algo muito maior e mais extraordinário do que se um homem
qualquer, de um momento para outro, soubesse que tivesse herdado
o Reino da Inglaterra ou mesmo o mundo inteiro. Não há, porém,
vontade humana capaz de, sozinha, fazer a inteligência assentir a
afirmações desta natureza com a firmeza e a constância que as
Sagradas Escrituras atribuem à fé. Ninguém, por mais que o
queira, a não ser que se trate de um louco, mas neste caso a sua
fé não lhe trará nenhum proveito, será capaz de acreditar firme e
perseverantemente ter herdado o Reino da Inglaterra se não tiver
alguma evidência adicional de que tal fato realmente se deu. As
afirmações da fé, entretanto, estão além dos sonhos mais
extraordinários que o homem possa conceber, muito além da herança
do trono da Inglaterra. É necessário, portanto, para crer
realmente nestas coisas, algo a mais do que o simples movimento
da vontade. Além da vontade humana, a coerência da doutrina
sagrada e os milagres operados pelos profetas e por Cristo como
confirmação destes ensinamentos, embora venham nisto em auxílio
do homem, também não são suficientes: de fato, diz Tomás de
Aquino, "dos que vêem um mesmo milagre e ouvem o mesmo
ensinamento, um crê e o outro não" (27). Não é o que acontece
diante de um teorema de matemática ou de uma lição de História.
Este algo mais que é necessário para crer verdadeiramente nestas
coisas, diz Tomás de Aquino, é o auxílio da graça:
"Deve-se colocar uma outra causa interna,
que move interiormente os homens
a assentir interiormente às coisas que são da fé.
Esta causa não pode ser apenas
o livre arbítrio do homem,
porque como o homem,
assentindo às coisas que são da fé,
se eleva sobre a sua natureza,
é necessário que isto lhe ocorra
por um princípio sobrenatural
movendo-o interiormente,
que é Deus.
E por isso a fé,
quanto ao assentimento,
que é o principal ato da fé,
provém de Deus
interiormente movendo pela graça" (28).
|
Desta maneira, não é apenas a vontade que move a inteligência
para alcançar o conhecimento da fé; além da vontade, diz Tomás de
Aquino, é necessário também o
"instinto interior
de Deus que convida" (29).
|
A estas palavras de S. Tomás aplicam-se perfeitamente
estas outras de Hugo de S. Vitor:
"Nestas coisas o conselho do homem,
sem o auxílio divino,
é enfermo e ineficiente.
É necessário, portanto,
levantar-se à oração,
e pedir o seu auxílio,
sem o qual nenhum bem poderá ser alcançado.
Isto é,
é necessário pedir a sua graça,
a qual,
para que tivesses chegado até aqui
para pedi-la,
era ela que já te iluminava,
e daqui para a frente será
quem haverá de dirigir
os teus passos para o caminho da paz,
e de cuja única boa vontade depende
que sejas conduzido ao efeito da boa operação.
Não serás obrigado por ela,
serás ajudado.
Se apenas tu operares,
nada realizarás;
se apenas Deus operar,
nada merecerás.
Aquele que corre por esta via,
busca a vida" (30).
|
A graça, diz Tomás de Aquino, pode agir no homem de
diversos modos. A que é suficiente para crer é aquela descrita na
Prima Secundae da Summa Theologiae:
"Não é uma qualidade infundida
na alma por Deus,
mas apenas um movimento da alma,
na medida em que a alma do homem
é movida por Deus
para conhecer ou querer alguma coisa" (31).
|
Neste texto S. Tomás afirma que a graça pode agir no homem tanto
movendo a inteligência como a vontade. Resta saber em qual destes
movimentos consiste a graça necessária para crer.
Nas Sagradas Escrituras temos testemunhos não apenas
de que a graça pode mover a vontade, mas também iluminar a
inteligência do homem. Após a ressurreição, Jesus caminhou longo
tempo pela estrada de Emaús conversando com dois apóstolos sem
que estes o reconhecessem; depois de terem entrado em casa,
durante a ceia, quando Jesus abençoou o pão, diz a Escritura que
"seus olhos se abriram e o reconheceram;
Ele, porém,
desapareceu diante de seus olhos". |
Mais ainda do que nesta passagem, diz S. Paulo na Epístola aos
Coríntios:
"O que os olhos não viram,
os ouvidos não ouviram,
e o coração do homem não percebeu,
isso Deus preparou
para aqueles que O amam.
A nós, porém,
Deus o revelou pelo seu Espírito,
pois o Espírito sonda todas as coisas,
até mesmo as profundidades de Deus.
Quem, pois, entre os homens
conhece o que é do homem
senão o espírito do homem que está nele?
Da mesma forma,
o que está em Deus,
ninguém o conhece,
senão o Espírito de Deus.
Nós não recebemos o espírito do mundo,
mas o Espírito de Deus,
para que conheçamos
os dons da graça de Deus". |
Entretanto, a iluminação direta e intensa da própria inteligência
pela graça parece ser mais característica dos que já vão
crescidos na fé do que daqueles que nela se iniciam. Naqueles que
principiam na fé, a inteligência é ilustrada principalmente pelo
que é proposto exteriormente e a graça move, pelo menos de modo
principal, mais diretamente a vontade do que a inteligência.
Isto concorda tanto com a expressão de que se utiliza
Tomás de Aquino quando descreve a graça de crer como aquele
"instinto interior de Deus que convida", pois quem convida mais
se dirige à vontade do que à inteligência, como com um texto de
Hugo de S. Vitor em que ele descreve o crescimento da fé:
"Segundo o crescimento da fé", |
diz Hugo de S. Vitor,
"encontramos três gêneros de pessoas que crêem.
Há alguns fiéis que alegam crer
apenas pela piedade,
os quais todavia não compreendem
se se deve crer ou não crer pela razão;
nestes, apenas a piedade faz a eleição.
Há outros que aprovam pela razão
o que crêem pela fé;
nestes a razão acrescenta sua aprovação.
Outros, finalmente,
pela pureza do coração e da consciência
já começam a saborear interiormente
aquilo que crêem pela fé;
nestes a pureza da inteligência
apreende a certeza" (32).
|
Com isto concordam também as palavras de Dionísio Areopagita que
descrevem as disposições necessárias para receber o Batismo e
principiar a praticar os mandamentos divinos:
"Qual é o ponto de partida", |
diz Dionísio,
"para a prática dos mandamentos divinos?
É este:
Preparar nossas almas
para ouvir a palavra sagrada,
acolhendo-a com a melhor disposição possível;
estar aberto à atuação de Deus;
desejar o caminho
que nos leva até a herança
que nos aguarda no Céu,
e receber a regeneração sagrada
(do Batismo)" (33).
|
Este texto de Dionísio Areopagita não fala da fé, mas do Batismo.
Entretanto, as Sagradas Escrituras associam o Batismo com a fé:
"Quem crer e for batizado, diz Jesus, será salvo" (Mc 16,16);
"Os coríntios que ouviam Paulo", dizem os Atos dos Apóstolos,
"abraçavam a fé e recebiam o Batismo" (At. 18,8). De modo que as
disposições para receber o Batismo têm grandes afinidades com as
disposições para receber a fé, operadas em nós pela graça. Ora,
as disposições descritas por Dionísio Areopagita são
principalmente disposições mais da vontade do que da
inteligência.
O que não significa, porém, que a graça, movendo a
vontade, não cause por redundância também a iluminação da
inteligência. O homem, de fato, quando ouve a verdade da fé, o
mais das vezes costuma estar cego também para o entendimento de
verdades que não estão acima das possibilidades da luz natural da
inteligência; este obscurecimento lhe é causado não por um
defeito da inteligência, mas pelas paixões e hábitos adquiridos
pela vontade. Deste modo, movendo-se a vontade, a inteligência se
abre para o entendimento de verdades de ordem natural que antes
ela não via, e com isto dispõe-se para o assentimento das
verdades da fé, por causa da grande coerência que as verdades da
fé possuem para com as verdades da ordem natural. É por isto que
a este efeito,podem-se aplicar as seguintes palavras das Sagradas
Escrituras:
"O Sol,
que antes estava entre nuvens,
apareceu radiante". |
Comentando esta mesma passagem, assim se expressa S. Tomás de
Aquino:
"O Sol, isto é,
a inteligência do homem,
está entre nuvens
quando está entregue às coisas terrenas;
refulge e resplandece, porém,
quando for afastado e removido do amor
do que é terreno" (34).
|
E diz muito significativamente Tomás, que a inteligência do homem
refulge e resplandece não quando for afastada do que é terreno,
mas do amor do que é terreno.
Num sentido oposto, assim se manifesta o apóstolo S.
Paulo :
"Manifestamos a verdade,
e com isto nos recomendamos à consciência
de todos os homens diante de Deus.
Mas se, (apesar disto),
o nosso Evangelho permaneceu encoberto,
ficou encoberto para aqueles a quem
o deus deste mundo obscureceu a inteligência,
a fim de que não vejam brilhar a luz do Evangelho". |
Do que se pode deduzir que, quando move a vontade, a graça pode
causar por redundância uma iluminação da inteligência, que
usualmente se encontra obscurecida nos homens por muitas causas
que não são de natureza intelectiva. Deste modo, a atuação da
graça na vontade não se resume apenas a convidá-la a produzir o
assentimento da inteligência, mas também a fazer com que a
vontade se mova de um tal modo que se produza por redundância uma
iluminação da inteligência, num efeito que é o inverso do que
descreve o apóstolo Paulo.
É por isso que o mesmo apóstolo acrescenta, duas
linhas adiante:
"De fato,
o Deus que disse à luz
que brilhasse no seio das trevas,
brilhou Ele próprio nos nossos corações,
para fazer brilhar
o conhecimento de sua glória". |
De modo geral, pois, nos princípios da vida espiritual
a graça move a fé mais agindo sobre a vontade do que diretamente
sobre a inteligência; um dos efeitos deste movimento é uma
espécie de consolação, que é uma deleitação conseqüente ao
repouso da vontade no objeto da fé. À medida em que a vida
espiritual progride e a graça passa a iluminar mais intensa e
diretamente também a inteligência, manifesta-se igualmente sob o
aspecto de uma especial pureza, que da inteligência se estende às
demais faculdades da alma.
Diz a Escritura, porém, que o Espírito Santo "sopra
onde quer" (Jo. 3,8); e, portanto, se assim o quiser, pode mover
intensamente a inteligência atuando diretamente sobre ela mesmo
no princípio da vida espiritual. Neste caso, o que ocorre no mais
das vezes é que a inteligência se abre para a percepção do estado
lastimável em que se encontra a própria alma; isto nela é
conseqüência de uma fagulha de entendimento das coisas divinas,
produzida pela graça. Produzem-se com isto aquelas conversões que
causam tão profunda impressão nos homens, como a do apóstolo S.
Paulo. Esta profunda impressão que tais conversões causam provém
da energia com que repentinamente o homem parece estar disposto a
lutar contra si mesmo e romper com seu pecado. Isto, por sua vez,
ocorre por ter sido a inteligência iluminada diretamente, e não
por redundância de um movimento da vontade; a inteligência passa
com isso a entender coisas que os hábitos adquiridos da vontade
mais prefeririam que não tivessem sido entendidos, e o homem
passa a ter que impô-las sobre as faculdades apetitivas.
Menos geralmente, os que no início da vida espiritual
são movidos intensamente pela graça também através do
entendimento são pessoas que, por algum motivo bastante especial,
já conduziam uma vida de virtude, como o foram, no início do
Cristianismo, muitos entre os judeus e também, posteriormente,
vários dos filósofos gregos que aceitaram a fé cristã; nestes
casos a graça move diretamente a inteligência a um maior
entendimento da profundidade dos mistérios da fé, embora, para
estas pessoas, na expressão de Hugo de S. Vitor, "antes que elas
tivessem chegado até aqui, a graça já os iluminava". Deve ter
sido este o caso dos magos que vieram do Oriente, guiados por uma
estrela, até Belém, adorar Jesus nascido no presépio (Mt. 2,1-
12). Foi este o caso, também, no Brasil recém descoberto da
segunda metade dos anos 1500, de um índio que surgiu,
repentinamente, já no fim de sua vida, próximo às praias do
litoral paulista. As circunstâncias deste fato, e o modo como
este índio veio a receber o Batismo das mãos do bem aventurado
José de Anchieta, um dos primeiros missionários que aportaram no
Brasil colônia, foram registradas por Pero Rodriguez, provincial
jesuíta contemporâneo de Anchieta:
"Indo o Padre José uma vez por esta praia",
|
diz Pero Rodriguez,
"se desviou do caminho, sem ocasião alguma,
mas como que levado por outrem,
e se meteu um pouco pelo mato.
Encontrou com um índio velho,
assentado ao pé de uma árvore,
o qual primeiro armou a prática, dizendo:
`Acaba já de vir, Padre,
que muito tempo há
que aqui te estou aguardando'.
Perguntou-lhe o padre pelo nome, terra e aldeia.
Respondeu que sua aldeia estava sobre o mar,
e outras coisas das quais claramente entendeu
que aquele índio não era natural da comarca de S. Vicente,
nem de toda a costa do Brasil,
mas que viera ter ali,
trazido por braço mais que humano,
da parte do Oeste,
da contra costa da província do Brasil.
Perguntou-lhe mais a que viera,
e o que era que dele queria,
pois o estava ali aguardando;
respondeu o índio que vinha ouvir a vida boa,
pois esta é a frase dos índios com que significam
a Lei de Deus e o caminho da salvação.
Examinou a padre miudamente a sua vida
e achou que não tivera muitas mulheres,
que nunca fizera guerra senão para se defender,
pelas quais coisas e outras semelhantes
julgou que nunca pecara mortalmente contra a lei natural,
e que tinha muito conhecimento natural das coisas
e do autor da natureza.
Quando o padre lhe ia declarando
os principais mistérios da nossa fé,
o índio respondia:
`Assim entendia eu no meu coração,
mas não o sabia declarar'.
Finalmente o padre o instruiu bastante,
e o batizou com água da chuva,
que se conservava nas folhas dos cardos montezinhos,
e lhe pôs o nome de Adão,
que tanto se viu regenerado
em Jesus Cristo pelo santo Batismo,
com as mãos postas e os olhos no céu,
deu muitas graças a Deus,
com semblante mui alegre.
Agradeceu também ao padre a caridade que lhe fizera,
e como quem não esperava mais do que esta ditosa hora,
nem tinha mais que negociar na vida,
deu sua bendita alma a Deus nas mãos do mesmo padre,
e se foi para o Céu,
cujo corpo enterrou o padre, cobrindo-o com areia.
Caso por certo raro e digno de admiração,
e matéria para dar muitos louvores
ao Criador e Redentor dos homens" (35).
|
|