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Vimos, pois, que a fé é um conhecimento que alcança
seu objeto movido pela vontade; distingue-se por uma especial
firmeza e constância, causados no entendimento pela vontade, que
podem crescer de um modo incomum a outras formas de conhecimento.
Mas, além destes atributos, a fé se distingue também por uma
pureza particular. Tal como a firmeza e a constância, a qualidade
da pureza está também no entendimento, mas difere destas por não
ser causada pela vontade.
Entre as diversas formas de conhecimento, a
contemplação da sabedoria também se distingue pela pureza. De
fato, S. Tomás de Aquino afirma no Comentário ao X da Ética que
"a filosofia possui
na contemplação da sabedoria
deleitações admiráveis quanto à pureza.
A pureza de tais deleitações provém
de serem acerca de coisas imateriais" (18).
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Nesta passagem S. Tomás afirma que a contemplação da sabedoria é
um conhecimento puro porque diz respeito a coisas imateriais; ele
associa a pureza à imaterialidade.
O mesmo pode-se dizer do conhecimento da fé, pois a fé
diz respeito principalmente a coisas que são maximamente
imateriais, isto é, a Deus e às coisas que se ordenam a Deus.
Ademais, a Sagrada Escritura diz que a fé é
"o argumento das coisas
que não se vêem". |
Toma-se aqui a palavra argumento pelo efeito do argumento; de
fato, é através da argumentação que a inteligência é levada a
aderir a alguma verdade; por isto a firme adesão da inteligência
à verdade da fé é chamada pela Sagrada Escritura de
argumento (19).
Mas o mais importante desta definição é a sua segunda parte,
segundo a qual a fé diz respeito àquilo que não se vê. A fé é
argumento daquilo que não se vê não porque por alguma
circunstância qualquer não foi visto, mas porque, por sua própria
natureza, não pode ser visto. E é precisamente nisto que consiste
a grandeza da fé e a sua pureza. Sendo de coisas que por natureza
não podem ser vistas, a fé obriga a inteligência a se elevar a
objetos que estão além das possibilidades dos sentidos, a objetos
que, por sua própria natureza, são maximamente inteligíveis. Não
é, pois, por um simples capricho ou pelo prazer de testar
continuamente o homem que Deus pede para que ele creia e viva da
fé no que ele não pode ver, acrescentando que, "se ele se
afastar, não lhe será mais do seu agrado" (Heb. 10, 38). Ao
contrário, Ele faz isso para o nosso próprio bem, conforme mais
adiante o atesta também a mesma carta aos Hebreus:
"Nossos pais nos educaram
segundo a sua própria conveniência;
Deus, porém, o faz para o nosso bem,
para nos comunicar a sua santidade". |
Pois, de fato, não são os fatos narrados nas Sagradas Escrituras
que são o objeto principal da fé, isto é, aquilo em que Deus quer
que o homem principalmente creia e viva desta fé; estes fatos
históricos foram de natureza tal que puderam ser vistos pelos
homens quando aconteceram. É por isso que Hugo de S. Vitor se
pergunta:
"Como pôde S. Pedro ter tido fé
na paixão de Cristo,
se ele a viu com os seus próprios olhos
e a fé é de coisas que não se vêem?
Deveríamos dizer que ele teve
o conhecimento da paixão de Cristo
e não a fé?
Ou poderíamos dizer abusivamente:
Creio no que vêem os meus olhos?"
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Ao que ele próprio responde, logo a seguir:
"O mérito de S. Pedro não foi
o de ter visto a paixão de Cristo,
mas o de ter acreditado ser Deus
aquele homem que viu pendendo na cruz.
A fé sobre que se alicerça o edifício espiritual
é sempre de coisas que não se podem ver" (20).
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Se o homem pudesse, portanto, ver com os olhos as coisas que são
objeto da fé, supondo que com isto tudo lhe seria mais fácil, em
vez disto ajudar o homem, faria ao contrário com que perdesse
toda a pureza que a fé é capaz de trazer à inteligência e lhe
destruiria os próprios alicerces sobre que se fundamentam suas
possibilidades de crescimento espiritual.
Na verdade, S. Diádoco, bispo de Fócia no século V,
fez uma das afirmações mais impressionantes que já apareceram
sobre a fé. A fé, dizem as Sagradas Escrituras, diz respeito às
coisas que não se vêem; mas S. Diádoco, como um daqueles justos
que vivem pela fé, percebeu pela sua experiência pessoal uma
conseqüência que não estava imediatamente contida naquela
expressão; de fato, diz S. Diádoco, não apenas a fé é das coisas
que não se vêem, mas, mais ainda,
"a fé ensina a desprezar
as coisas que se vêem" (21).
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De fato, as coisas que se vêem são aquelas que podem cair sob o
domínio da imaginação; se a fé ensina a desprezar as coisas que
se vêem, é porque ensina a desprezar o uso da imaginação, fazendo
com que a inteligência se eleve à pureza da abstração das coisas
inteligíveis.
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