X.19.

Contemplação e Ensino. III.

Confirmando abundantemente a interpretação de Hugo de S. Vitor à parábola do bom samaritano, as Sagradas Escrituras são bastante manifestas em afirmar que o ensino é, de fato, a mais sublime de todas as ocupações a que pode se dedicar o homem.

Esta afirmação pode parecer surpreendente, e até mesmo paradoxal, pois, por tudo quanto viemos falando até o momento, deveríamos ter concluído que a mais sublime de todas as obras é a contemplação; e, de fato, assim é, a menos que neguemos tudo quanto foi dito desde o início deste trabalho. Disto porém deve- se concluir que o ensino a que se referem as Sagradas Escrituras como sendo a mais sublime de todas as obras não é qualquer tipo de ensino, mas aquele modo de ensino que procede da contemplação como a água da fonte.

A este respeito S. Tomás de Aquino afirma que o ensino, quando considerado em si mesmo, é algo que pertence mais à vida ativa do que à contemplativa (142), porque aquele que ensina necessita da ação exterior para poder fazê-lo (143) e porque, ademais, o ensino faz parte das obras de misericórdia que pertencem à vida ativa (144).

Entretanto, o princípio do ensino é a contemplação do mestre (145), isto é, a própria vida contemplativa (146), porque para ensinar é preciso levar a outrem uma verdade anteriormente meditada (147) e aquele que ensina necessita contemplar mais ainda do que aquele que se dedica apenas à contemplação (148). De fato, conclui Tomás, ensinar é um ato da sabedoria, pois é sinal do homem sábio o ser capaz de ensinar (149).

Coisa semelhante afirma S. João da Cruz, advertindo aqueles que ensinam que

"Este exercício é mais espiritual do que vocal.
Embora se exerça por palavras de fora,
não tem força nem eficácia senão pelo espírito interior.
De onde que, por mais alta que seja a doutrina,
de si não causa ordinariamente mais proveito
do que o que tiver de espírito.
E é por isso que se diz:

`Tal mestre, tal discípulo'.

E é por isso que vemos geralmente,
pelo menos tanto quanto podemos julgar neste mundo,
que quanto melhor é a vida (dos que ensinam),
tanto maior é o fruto que tiram;
(quanto aos demais),
embora tenham dito maravilhas,
logo se esquecem"
(150).

Quando, pois, as Sagradas Escrituras afirmam ser o ensino a mais sublime de todas as obras, esta afirmação não contradiz a excelência da vida contemplativa; trata-se, de fato, de um ensino que provém de uma superabundância da contemplação.

Vemos a afirmação da excelência do ensino claramente atestada na profecia de Daniel. No livro de Daniel há uma profecia sobre o fim dos tempos e o Juízo Final; nela Daniel fala dos bem aventurados, e abre um destaque especial para aqueles que "ensinaram a muitos". Segundo suas palavras, no fim dos tempos

"Os sábios resplandecerão
como o fulgor do firmamento,
e os que tiverem ensinado a muitos para a justiça
serão como estrelas,
para sempre,
eternamente".

Dan. 12, 3

A mesma coisa diz Jesus no Evangelho; Ele não diz que será grande no Reino dos Céus aquele que tiver observado os mandamentos, mas aquele que, além de os ter observado, os tiver ensinado:

"Aquele que violar
um só destes menores mandamentos
e assim o ensinar aos homens,
será chamado o menor no Reino dos Céus;
aquele, porém, que os praticar e os ensinar,
este será chamado grande no Reino dos Céus".

Mt. 15, 19

Quão profundamente penetrou este ensinamento de Jesus na alma dos apóstolos mostra-nos um incidente ocorrido logo nos primeiros dias do Cristianismo. Houve, na primeira comunidade cristã, um problema de má distribuição de alimentos entre as viúvas de origem grega; os gregos se queixaram aos apóstolos, mas os apóstolos preferiram não intervir diretamente na questão; em vez disso nomearam sete diáconos para se interessarem pelo problema, pois, no dizer dos apóstolos, eles precisavam dedicar o melhor de seus esforços

"à oração
e ao ministério da palavra",

At. 6, 4

ou seja, à contemplação e ao ensino.

De fato, já vimos como dentre todas as coisas que o Cristo pediu aos homens, sua última recomendação foi justamente a de ensinar. Suas últimas palavras sobre a terra foram uma ordem dada aos apóstolos de ensinarem a todos os povos, e a promessa de sua presença entre eles até o fim dos tempos:

"Ide, pois",

disse o Cristo,

"e ensinai a todos os povos,
ensinando-lhes a observar
tudo quanto vos mandei;
e eis que eu estarei convosco
todos os dias,
até a consumação dos séculos".

Mt. 28, 19-20

São as próprias palavras com que se encerra o Evangelho. e isto é tanto mais significativo quanto sabemos que os homens costumam recomendar no fim as coisas que julgam ser mais importantes e que lhes são mais queridas ao coração. São estas as palavras com que se encerram os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. O último Evangelho, o de João, não poderia terminar de modo diferente. Ele não se encerra reportando estas palavras, mas com um diálogo entre Jesus e Pedro em que o Cristo lhe diz que esta é a prova de amor que ele pede dos que o amam. Pois, quando se despediu de São Pedro, Cristo perguntou-lhe três vezes:

" `Simão, filho de João,
tu me amas mais do que estes?'

`Sim, Senhor',
disse-lhe Pedro,
`tu sabes que eu te amo'.

Jesus lhe disse:
`Apascenta os meus cordeiros'.

Uma segunda vez lhe disse:
`Simão, filho de João,
tu me amas?'

`Sim, Senhor', disse Pedro,
`tu sabes que eu te amo'.

Disse-lhe Jesus:
`Apascenta as minhas ovelhas'.

Pela terceira vez disse ele:
`Simão, filho de João,
tu me amas?'

Entristeceu-se Pedro
porque pela terceira vez
lhe perguntava:
`Tu me amas?',
e lhe disse:

`Senhor, tu sabes tudo,
tu sabes que eu te amo'.

Jesus lhe disse:
`Apascenta as minhas ovelhas'.

Jo. 21, 15-17

Constatamos, assim, que todos os Evangelhos terminam, de um modo ou de outro, falando de Jesus que ordena ou exorta aos apóstolos que ensinem. Eles queriam, ao proceder desta maneira, mostrar-nos o quanto isso fosse importante para o Cristo. Para Jesus, ensinar é a maior prova de amor. São João Crisóstomo, no século V, refletiu muito sobre estas palavras e conseguiu, como poucos, compreender-lhes todo o seu alcance:

"O Mestre pergunta ao discípulo se o ama,
não para saber que resposta daria.

Que necessidade teria desta resposta
aquele que penetra os corações?

A pergunta foi para nos ensinar
o quanto lhe importa o cuidado do seu rebanho.

Podia certamente Jesus ter dito a Pedro:

`Se me amas, pratica o jejum,
dorme no chão duro, guarda altas vigílias,
protege os oprimidos, seja pai para os órfãos,
protege as suas mães como se lhe fosses o marido'.

Mas, na verdade,
tudo isso deixou Cristo de lado
e apenas lhe disse:

`Apascenta as minhas ovelhas'"
(151).

Nesta passagem Jesus não fala propriamente de ensinar, mas de apascentar as suas ovelhas. Mais adiante, porém, João Crisóstomo diz que o cuidado para com o rebanho de Cristo é algo que se realiza principalmente pelo ensino. E João quer deixar tão claro que é realmente assim que afirma também que o ensino é mais importante do que o bom exemplo e mais importante inclusive do que os milagres:

"Ninguém ignora",

diz S. João Crisóstomo,

"que o corpo da Igreja está mais sujeito
a enfermidades do que a própria carne,
se corrompe mais depressa
e se restabelece mais lentamente.

Porém, enquanto os que curam nossos corpos
inventaram uma série de instrumentos para tanto,
no que diz respeito ao cuidado das almas,
além do exemplo,
não há outro caminho para a saúde a não ser o ensino.

Se este remédio falhar,
todos os demais serão inúteis.

É certo que para melhor ordenar a vida,
outra vida bem ordenada
pode despertar o desejo de imitá-la;
mas, quando a alma sofre a enfermidade
de um ensinamento já errôneo,
não há outro remédio a não ser
usar copiosamente da palavra.

Mesmo que houvesse alguém que operasse milagres,
mesmo assim, a palavra seria altamente necessária,
e temos disto um exemplo no apóstolo São Paulo,
que fêz uso dela,
apesar de em todos os lugares ser admirado por seus milagres.

-`Mas João',"

interrompe o interlocutor do diálogo,

"`se a palavra é tão importante,
por que lemos
na Segunda Epístola aos Coríntios
que o próprio São Paulo
não ocultava a sua pobreza no falar,
como também confessa que é leigo na matéria?'

É isto",

responde João Crisóstomo,

"é isto que fêz a perdição de muitos
e os tornou incapazes de ensinar verdadeiramente.
As pessoas chamam de ignorante
não apenas àqueles que não se adestraram
nas charlatanices da eloqüência,
mas também àqueles que não sabem defender a verdade.

Ora, São Paulo não se diz leigo em ambas as coisas,
mas apenas em uma delas,
e para deixar isto bem claro,
faz uma clara distinção, dizendo:

`Na verdade, sou imperito no falar;
não o sou, porém, na ciência'.

II Cor. 11, 6

Se estivéssemos exigindo
a suavidade de Isócrates,
a majestade de Demóstenes,
a gravidade de Tucídides,
a sublimidade de Platão,
então terias razão em citar o apóstolo S. Paulo.

Mas tudo isso deixo de lado;
que a expressão seja pobre,
que a composição das palavras
seja simples e corrente;
mas o que a ninguém se pode permitir
é ser leigo no exato conhecimento
das verdades da fé.

Em que o bem aventurado apóstolo São Paulo
superou a todos os demais apóstolos?

Que fez ele em Tessalônica,
em Corinto, e na mesma Roma?

Não passava dias e noites inteiras,
sem interrupção,
na explicação das Sagradas Escrituras?

Que ninguém, pois,
para acobertar a si próprio,
pretenda arrancar deste bem aventurado Apóstolo
aquilo que foi a sua máxima excelência
e a sua coroa de glória"
(152).



Referências

(142) Quaestiones Disputatae De Veritate, Q. 11 a. 4.
(143) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 181 a. 3 ad 3.
(144) Quaestiones Disputatae De Veritate, Q. 11 a. 4 s.c. 2.
(145) Idem, Q. 11 a. 4 ad 3. (146) Idem, Q. 11 a. 4 ad 4.
(147) Summa Theologiae, IIa IIae, Q.181 a.3 arg 3.
(148) Quaestiones Disputatae De Veritate, Q.11 a.4 arg 3.
(149) Summa Theologiae, IIa IIae, Q.181 a.3 arg.2.
(150) S.João da Cruz: Subida do Monte Carmelo; L. III, C. 45.
(151) S. João Crisóstomo: De Sacerdotio; L. II, C. 1-2; PG
(152) Ibidem; L. IV, C. 5-6; PG