X.18.

Contemplação e Ensino. II.

Tudo isto quanto dissemos lança uma luz nova sobre o que seja, na perspectiva cristã, o ensino das coisas divinas. Jesus confiou aos homens a missão de ensinar; mas esta missão de ensinar é, através da Igreja unida ao Cristo, uma participação da missão de ensinar que o próprio Cristo tomou sobre si.

Isto fica particularmente visível em uma outra parábola que Jesus certa vez contou a respeito do amor ao próximo.

São Lucas conta que um estudioso da Lei de Moisés, tendo ouvido Jesus falar da necessidade de amar ao próximo como a si mesmo, perguntou-lhe quem era este próximo.

Jesus então respondeu:

"Um homem descia de Jerusalém a Jericó,
e caíu no meio de assaltantes que,
após havê-lo despojado de suas vestes e espancado,
foram-se, deixando-o semi morto.

Casualmente,
descia por este caminho um sacerdote;
viu-o e passou adiante.

Igualmente um levita,
atravessando este lugar,
viu-o e prosseguiu.

Certo samaritano em viagem, porém,
chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão.
Aproximou-se, cuidou de suas chagas,
derramando óleo e vinho,
depois colocou-o em seu próprio animal,
conduziu-o à hospedaria e dispensou-lhe cuidados.

No dia seguinte, tirou dois dinheiros
e deu-os ao hospedeiro, dizendo:

`Cuida dele,
e o que gastares a mais,
em meu regresso te pagarei'.

Qual dos três",

pergunta então Jesus,

"em tua opinião,
foi o próximo do homem
que caíu nas mãos do assaltante?"

Luc. 10, 30-36

Esta parábola , à primeira vista, parece ser tão clara e de sentido tão evidente, que sequer parece ser uma parábola, mas apenas um exemplo a ser imitado. Jesus parece querer dizer que, quando vemos o próximo em dificuldade, podemos fingir que nada vemos e passar adiante, ou então podemos parar o que estamos fazendo e, por amor do próximo, socorrê-lo. A parábola, pois, parece querer ensinar que todos nós devemos agir como o bom samaritano; ademais, foi assim que, mais adiante, o Evangelho de Lucas narra que o estudioso da Lei de Moisés diz ter entendido o significado desta parábola (Luc. 10,39), e é assim que todos parecem entendê-la quando a lêem.

No entanto, diz Hugo de S. Vitor, é evidente que há um outro sentido mais profundo nesta parábola proposta por Jesus, um sentido que não foi apreendido pelo estudioso da Lei de Moisés.

A começar pelas cidades entre as quais se diz ter sido o itinerário do viajante assaltado: "Um homem desceu de Jerusalém a Jericó". Jerusalém é a cidade mais alta da Palestina, situada no alto do Monte Sião, e seu nome significa "A Cidade da Paz". Era, ademais, cidade sagrada para os judeus, em que se situava o Templo de Salomão. Jericó, por outro lado, é a cidade mais baixa do Oriente Médio; na verdade, sabe-se hoje que é a cidade mais baixa de todo o planeta, situada como está ao lado do Mar Morto em uma depressão a trezentos metros abaixo do nível do mar em uma região de clima sufocante.

Jerusalém, pois, diz Hugo de S. Vitor, significa a "contemplação das coisas do alto" (129); a viagem significa o pecado, e Jericó "a miséria mundana" (130) ou mesmo o inferno:

"Este homem, portanto",

diz Hugo de S. Vitor,

"que descia de Jerusalém a Jericó
e foi assaltado pelos ladrões
designa o próprio gênero humano"
(131).

O homem que abandona as coisas do alto e segue pelo caminho que conduz a Jericó é assaltado no caminho pelos ladrões; é despojado de suas vestes, espancado e abandonado semi morto. Estes ladrões, diz Hugo, "são os demônios" (132), que despojaram o homem das "vestes da imortalidade e da inocência" (133) e o feriram gravemente pelo pecado.

De fato, continua Hugo, Deus havia feito o homem

"à sua imagem e semelhança,
conforme diz o primeiro capítulo do Gênesis.

Fê-lo à sua imagem segundo a inteligência,
à sua semelhança segundo o amor,
para que, dirigindo-se a Deus por ambas estas coisas,
alcançasse a felicidade.

Mas o demônio,
invejando a felicidade do homem,
contra estes dois bens primordiais
conduziu o homem a dois males principais.

Feriu o homem
que tinha sido feito à imagem de Deus
segundo a inteligência
com a ignorância do bem;
tendo ele também sido feito à semelhança de Deus,
feriu-o com a concupiscência do mal.

Desta maneira, depois de despojá-lo e ferí-lo,
abandonou-o semi morto na estrada"
(134).

O sacerdote e o levita que passaram e viram o homem ferido e despojado de suas vestes, continua Hugo,

"são os Pais do Antigo Testamento,
(isto é, os profetas e os homens justos
que viveram antes de Cristo),
que passaram pelo estado da vida presente
vivendo santamente,
mas que não conseguiram curar
o gênero humano ferido pelo pecado"
(135).

Já o samaritano, homem natural de um povo que vivia ao norte da Palestina e que era odiado pelos judeus, que vendo ao pobre homem, moveu-se de compaixão, aproximou-se dele e cuidou de suas feridas derramando sobre elas óleo e vinho, representa o próprio Cristo, rejeitado e crucificado pelos judeus, que veio socorrer ao homem caído pelo pecado

"tanto pelos seus ensinamentos
como expiando sua culpa na cruz"
(136).

A hospedaria à qual o samaritano conduziu o pobre homem, continua Hugo, é a Igreja, à qual Cristo confiou a salvação dos homens, e o estalajadeiro são todos aqueles que nela governam e ensinam. Somente no dia seguinte, porém, é que o samaritano confiou o homem aos cuidados do estalajadeiro, isto é,

"depois de realizado primeiro
o mistério da Redenção"
(137).

Ao confiar à Igreja os cuidados para com os homens feridos pelo pecado, Cristo entregou-lhe "dois dinheiros", isto é,

"a ciência e a graça de ensinar
o Antigo e o Novo Testamento"
(138).

"E tudo o que gastares a mais",

acrescenta o Cristo,

"em meu regresso eu te pagarei".

"Isto significa",

continua ainda Hugo,

"que aqueles que ensinam, ao tratarem do doente,
não apenas pregam aquilo
que está nos dois Testamentos,
mas ensinam também muitas outras coisas
que elaboram de acordo com o escrito nestes Testamentos
para que sejam manifestadas aos outros.

O Cristo distribuíu-lhes a graça de ensinar, e assim,
com os homens aos quais devem doutrina,
não gastam apenas o dinheiro que lhes foi confiado pelo Cristo,
isto é, narrando a simples letra dos dois Testamentos,
mas ensinando incessantemente inúmeras outras coisas que,
mediante o auxílio da graça,
são elaboradas pela contemplação
e diligentíssimamente dispostas pelo coração.
Desta maneira, no dia do Juízo,
quando o Senhor voltar,
dará o prêmio a cada um segundo os seus méritos"
(139).

Esta é, portanto, a interpretação de Hugo de São Vitor à parábola do bom samaritano; não pouca coisa de importância pode-se concluir dela.

A parábola do bom samaritano foi ensinada por Jesus para responder a uma pergunta sobre a prática do mandamento do amor ao próximo. Aquele que, historicamente, a ouviu pela primeira vez, entendeu que Jesus queria com ela dizer que amar ao próximo significa agir como o bom samaritano e compadecer-se das feridos e dos doentes. Esta interpretação é correta, pois, ao ouvi-la da boca do estudioso da Lei, Jesus lhe respondeu dizendo que, assim como ele a tinha entendido, "fosse e fizesse o mesmo" (Luc. 10, 37).

Mas, segundo Hugo de São Vitor,a maneira mais elevada de amar ao próximo não consiste em agir como o bom samaritano, mas sim como o estalajadeiro. E isto não se pode fazer sem pressupor a hospedaria, que é a Igreja, e o Cristo, que é o bom samaritano. Neste outro modo mais elevado de amar ao próximo é ao Cristo que cabe a parte principal, o homem apenas auxiliando-o em sua missão e completando o que ele iniciou. A missão de Cristo é, neste caso, "a obra da restauração humana" (140), feridos como estão os homens pela ignorância do bem e pelo desejo do mal.

Mais ainda, porém, insinua Hugo de São Vítor na sua interpretação da parábola do bom samaritano. Segundo ele, o homem pode cooperar com esta missão do Cristo maximamente pelo ensino. Não se trata. ademais, de qualquer forma de ensino, mas daquele ensino que procede da contemplação, pois diz Hugo que a tarefa de ensinar foi confiada à Igreja através da graça, a qual normalmente se adquire através da oração e da contemplação que procede da caridade. Aqueles que assim ensinam foram muito bem descritos por S. Gregório Magno, alguém cujos escritos Hugo de S. Vitor admirava de modo especial:

"Aquele (a quem incumbe ensinar)
deve ser próximo de cada homem pela compaixão
e avantajar a todos na contemplação;
isto é, que com suas entranhas de piedade
faça suas as enfermidades dos outros
e que, elevando-se às alturas da contemplação,
se sobreponha também a si mesmo,
desejando as coisas invisíveis;
de modo que nem por aspirar ao que é celeste
faça pouco caso das fraquezas do próximo,
nem por atender às debilidades do próximo
deixe de aspirar ao que é celeste"
(141).



Referências

(129) Hugo de São Vitor: Allegoriae utriusque Testamenti; NT, L. IV, C.12; PL 175, 814-15.
(130) Ibidem; loc. cit..
(131) Ibidem; loc. cit..
(132) Ibidem; loc. cit..
(133) Ibidem; loc. cit..
(134) Ibidem; loc. cit..
(135) Ibidem; loc. cit..
(136) Ibidem; loc. cit..
(137) Ibidem; loc. cit..
(138) Ibidem; loc. cit..
(139) Ibidem; loc. cit..
(140) Hugo de S. Vitor: De Sacramentis Fidei Christianae; Prólogo; PL 176, 183.
(141) S.Gregório Magno: Regula Pastoralis; L.II,C.5; PL 75, XXX.

"Não desejo passar em silêncio",

diz Hugo de S. Vitor,

"que entre os escritos dos santos
devem ser acolhidos com particular estima
os de S. Gregório Magno,
que me parecem entre todos os mais doces
e os mais repletos de amor pela vida eterna".

Didascalicon, L.V, C.7
PL 176, 794-5