X.16.

A contemplação da verdade.

Santo Tomás de Aquino faleceu a 7 de março de 1274. Três meses antes de sua partida, a 6 de dezembro de 1273, parou repentinamente de escrever. Estava então para terminar a Summa Theologiae, a mais importante das obras que nos deixou, na qual combinava, em um plano mais maduro e elaborado, o rigor e a profundidade com que nas Quaestiones Disputatae havia analisado até os menores detalhes e sob uma variedade impressionante de aspectos os mais difíceis temas de filosofia e Teologia, com a capacidade de síntese que havia demonstrado na Summa contra Gentiles, na qual, diante de uma quantidade pode-se dizer como que astronômica de argumentos filosóficos e teológicos, havia conseguido colocar em evidência a interrelação existente entre todos eles, trazendo com isto à luz a existência de uma unidade no mundo criado que é uma imagem da unidade divina.

Na Summa Theologiae S. Tomás combinou ambas estas características de um modo tão perfeito que não é mais possível saber qual das duas é a predominante; ademais, a obra seguiu fielmente um plano que tinha sido traçado por inteiro seis ou sete anos antes, e que S. Tomás havia exposto logo nas primeiras páginas da Summa que agora estava prestes a concluir.

O plano geral da Summa consistia em dividí-la em três partes. Em uma primeira parte, Tomás trataria a respeito de Deus, considerado em si mesmo. Para completá-la, Tomás gastou aproximadamente dois anos de trabalho. Em uma segunda parte, dividida em duas, Tomás trataria a respeito do homem, considerado não em si mesmo, mas enquanto que, por natureza, tende a Deus; para completar esta segunda parte, Tomás demorou mais dois ou três anos. Na terceira parte, Tomás trataria do Cristo, enquanto homem, que é o caminho pelo qual o homem chega a Deus. Tomás diz que na terceira parte trataria do Cristo, enquanto homem, porque do Cristo, enquanto Deus, isto é, do Verbo de Deus, ele já havia tratado na primeira parte. Foram mais dois anos de trabalho (109).

Tomás estava acabando a terceira e última parte da Summa Theologiae; já havia escrito a respeito de Cristo, estava terminando a parte referente aos Sacramentos e preparava-se para completar a obra com uma descrição do paraíso quando repentinamente cessou seus trabalhos e não quiz escrever mais uma só linha, nem da Summa, já praticamente pronta, nem de nenhum outro livro. Deixou bem claro, ademais, que não se tratava de uma decisão de momento; não iria deixar de escrever durante algum tempo, mas definitivamente não escreveria mais nada nunca mais.

Na verdade, depois disto Tomás ainda escreveu algumas poucas linhas, mas apenas por questões circunstanciais e de momento, como uma carta ao abade do mosteiro de Monte Cassino, em que, a pedido deste abade, Tomás dirimia uma pequena controvérsia que havia surgido a respeito de como deveria ser interpretada uma passagem de uma obra de S. Gregório Magno. Mas a questão em si quase não tinha importância, e esta carta foi mais uma delicadeza de Tomás para com o abade de Monte Cassino do que um verdadeiro opúsculo de Teologia que ele tivesse pretendido escrever. Daquela série de obras que Tomás tinha empreendido com tanto empenho para ensinar aos homens as coisas divinas, obras que em sua natureza transcendem circunstâncias e momentos, épocas e civilizações, Tomás não escreveu mais uma só linha. A Summa Theologiae, que terminaria com a descrição do paraíso, acabou nomeio do tratado dos Sacramentos, já completa a parte referente à Eucaristia. Do que poderia vir depois de Tomás acabar a Summa Theologiae, nem sequer é possível fazer suposição.

Dois fatos notáveis são de se assinalar nesta cessação tão repentina. O primeiro é que ensinar e escrever não era para Tomás uma atividade secundária ou mesmo a atividade principal entre outras; ao contrário, era a própria razão de sua missão, sua única atividade externa com que se relacionava com o mundo à sua volta. Até a véspera do dia 6 de dezembro Tomás não havia dado jamais qualquer sinal de desânimo; ele mesmo, antes disso, com toda probabilidade, nunca deve ter pensado sequer na possibilidade de um dia parar de ensinar e de escrever. Ao contrário, é de se supor que trabalhava com um entusiasmo e um zelo sempre crescente.

Fato mais notável ainda é que, apesar de ter cessado de escrever praticamente por completo após o dia 6 de dezembro, não destruí nenhuma das obras que havia escrito, nem desaconselhou a ninguém a leitura das obras que já havia produzido. Nem sequer quiz corrigi-las; não apontou nelas a existência de nenhum erro que talvez tivesse reconhecido, seja no particular, seja mesmo de um modo genérico. Muito ao contrário, quando, pouco antes de falecer, recebeu a Eucaristia pela última vez, praticamente afirmou em público que nada conseguia encontrar no que havia escrito até então em que pudesse ter errado, e que todo o trabalho que tinha empreendido havia sido feito por amor a Jesus Cristo:

"Recebo-te,
penhor do resgate de minha vida",

foram as palavras de Tomás ao receber a sua última Eucaristia,

"recebo-te, viático de minha peregrinação.

Por amor de ti estudei, velei, trabalhei;
preguei-te e ensinei-te.

Nada disse contra ti,
mas se o fiz, foi sem saber;

não persisto obstinadamente nos meus juízos;

se falei mal em relação a este e aos outros Sacramentos,
deixo tudo à correção da Santa Igreja Romana,
em cuja obediência saio agora deste mundo"
(110).

Se ele tivesse, ademais, reconhecido erros no que havia escrito, poderia facilmente tê-los retratado; não faltava o exemplo deixado por Santo Agostinho, a quem Tomás conhecia profundamente bem. Santo Agostinho no final de sua vida escreveu um livro em que fazia uma lista de opiniões que ele, outrora, já convertido e mesmo já bispo da Igreja, havia sustentado de boa fé mas que agora, já próximo ao fim da vida, percebia dever retratá-los (111). Santo Tomás de Aquino tinha citado este livro várias vezes em suas obras e ainda hoje ele é bem conhecido pelos teólogos. Se Tomás tivesse encontrado erros no que havia escrito, certamente lhe viria imediatamente à mente a idéia de escrever um texto de Retratações, a exemplo do que já havia feito outrora Santo Agostinho. Nada havia de estranho nesta possibilidade, e com ela S. Agostinho havia dado um exemplo de humildade que ficaria para sempre na Igreja; S. Afonso de Liguori, um teólogo posterior a Tomás de Aquino que ainda em vida assombrou o mundo pelos seus conhecimentos de Moral, seguindo o exemplo de Agostinho, não só não teve receio, como, ao contrário, sentiu mesmo a obrigação de admitir em público que havia errado lá onde os melhores teólogos não viam erro algum e elaborou listas de retratações em suas últimas obras. Se assim o quisesse, pois, o caminho estava aberto e bem presente diante do espírito de Tomás; Tomás, porém, depois de ter cessado de escrever, nada corrigiu do que havia escrito nem mencionou a hipótese de poder vir a fazê- lo.

Que aconteceu, pois, no dia 6 de dezembro de 1273 para se dar tão repentina mudança? Diz João Ameal, com base nas biografias originais:

"Tomás estava celebrando Missa,
na capela de São Nicolau,
quando bruscamente se operou nele
uma grande mudança,
que impressionou a todos os assistentes.
Finda a Missa, não voltou a escrever,
e deixou por acabar
a terceira parte da Summa Theologiae"
(112).

Em seu trabalho Tomás contava com o auxílio de Frei Reginaldo de Piperno, que lhe fazia as vezes de secretário. Depois do dia 6, passado algum tempo, frei Reginaldo se convenceu que Tomás não havia deixado de escrever por alguma indisposição passageira. Algo mais profundo havia acontecido. Certo dia tomou coragem e lhe perguntou:

"Mestre,
como abandonais uma obra tão vasta,
que empreendestes para a glória de Deus
e iluminação do mundo?"
(113)

Reginaldo quer chamar Tomás à razão. Mostra-lhe a desproporção que havia entre qualquer que fosse o motivo que ele tivesse para parar de escrever e a importância de o continuar fazendo. Ele conhecia bem a Tomás; sabia que Tomás era homem profundamente racional, e que a uma pergunta como esta ele jamais teria respondido com uma evasiva, mas ter-lhe-ia apontado um contra argumento refletido. Mas que contra argumento Tomás poderia dar diante de algo tão evidente:

"uma obra tão vasta,

(como não havia até então
nos anais da história),

empreendida para a glória de Deus
e a iluminação do mundo"?

Tomás não era alguém sobre quem tivessem domínio paixões desordenadas; tampouco era bobo; foi uma das mentes mais lúcidas que já existiram; meia palavra para ele era suficiente, e estas poucas frases de Frei Reginaldo já eram muito mais do que o necessário para obrigar Tomás a mover o mundo inteiro se preciso fosse para voltar a escrever.

No entanto, Frei Tomás respondeu à pergunta, e Reginaldo ouviu algo que, no dizer de João Ameal, "merece ficar histórico nos anais do pensamento humano":

"Não posso mais, Reginaldo",

respondeu Tomás,

"porque todas as coisas que escrevi
parecem-me, unicamente, palha.

Peço-te, por Deus onipotente,
pela fé que guardas à nossa Ordem,
e pela caridade que tens agora para mim,
que não transmitas a ninguém,
enquanto eu viva, o que te disser.

Tudo o que escrevi até hoje parece-me,
unicamente, palha,
em comparação com o que vi e me foi revelado.

Não penses, meu filho,
em te entristeceres com isso.

Poderia, ainda, sem dúvida,
fazer novos progressos na ciência e ser,
pela doutrina, útil aos outros.

Mas, por meio da revelação que me foi feita,
o Senhor impôs-me silêncio,
visto eu não poder mais ensinar, como sabes,
depois que lhe aprouve revelar-me
o segredo de uma ciência superior.

Desta maneira, a mim, tão indigno,
Deus concedeu mais do que aos outros doutores
que tiveram vida mais longa:
deixo mais cedo do que os outros esta vida mortal,
e entro consolado na vida eterna.

Consola-te, pois, meu filho,
porque estou inteiramente consolado"
(114).

Eis o testamento espiritual de S. Tomás de Aquino, conclui João Ameal, o mais belo testamento (115).

Dali a poucos dias Tomás veio a falecer. Conforme suas palavras, embora lhe tivesse sido revelada uma ciência superior, não poderia mais escrever; sem razão para ficar entre nós, Tomás partiu para a glória celeste.

A ciência superior a que Tomás se referiu, diante da qual tudo o que ele havia escrito não passava de palha, não era a contemplação direta da causa primeira; era a verdade de que S. João fala no seu Evangelho, que vem por intermédio do Espírito Santo e que torna os homens livres. Esta verdade não podia ser a própria causa primeira, pois o próprio S. João assim o afirma:

"Ninguém jamais contemplou a Deus",

I Jo. 4,12

e também

"Ninguém jamais viu a Deus:
o Filho Unigênito,
que está no seio do Pai,
este no-lo deu a conhecer".

Jo. 1,18

A verdade de que João fala é aquela que é fruto do dom da sabedoria, pela qual o Espírito Santo incendeia a caridade ao amor de Deus. No dizer de Pedro Lombardo, o Mestre das Sentenças da época de Tomás de Aquino,

"Esta sabedoria de que tratamos
não é aquela sabedoria de Deus
de que fala Santo Agostinho
no capítulo primeiro do XIV do De Trinitate,
que é o próprio Deus.

É uma sabedoria do homem,
a qual, todavia,
é segundo Deus,
e é o seu verdadeiro e principal culto.

Se a mente do homem se torna capaz
de cultuar a Deus por seu intermédio,
o homem se torna sábio,
não pela própria luz de Deus,
mas por uma participação daquela que é
a maior de todas as luzes"
(116).

Para entender melhor o que isto significa, devemos lembrar que, quando falamos do ser, afirmamos que o ser não se predica univocamente de todos os entes. Ao contrário, há entes que são mais e menos intensamente ser do que outros, e há também um ente, causa do ser de todos os demais entes, que possui em si a plenitude de todas as possibilidades do ser. Todos os demais entes possuem apenas em parte aquilo que este ser primeiro possui inteiramente. Conforme a maior ou menor participação do ser desta causa primeira, os demais entes são mais ou menos ser, começando pela matéria primeira, pura potencialidade ao ser que nem sequer pode existir por si mesma.

Os corpos materiais são mais ser do que a matéria primeira; eles existem em si mesmo e seguem os primeiros princípios do ser sem possuir, entretanto, a evidência dos mesmos.

A inteligência humana não apenas segue estes princípios, mas possui a evidência deles; não pode, entretanto, apreender as coisas inteligíveis a não ser partindo da apreensão do que é material por meio dos sentidos.

As inteligências separadas são capazes da apreensão direta do inteligível, o que lhes abre possibilidades imensas para as quais a inteligência humana pode fazer apenas parcas conjecturas.

Chega-se, finalmente, à causa primeira, em que não há mais diferença entre o ser e o inteligir; ela é, por isso mesmo, pelo seu inteligir, a causa do ser de todas as coisas.

Pelo fato do ser e o inteligir na causa primeira serem o mesmo, assim como todos os entes participam em maior ou menor grau do ser da causa primeira, participam também em maior ou menor grau do seu caráter inteligível. Deste modo, em todas as coisas, o ser se converte com o verdadeiro, e, por conseqüência, assim como há entes que são mais e menos intensamente ser do que outros, assim também há verdades que são mais e menos intensamente verdadeiras do que outras.

A verdade de que é capaz a inteligência humana é aquela cuja evidência se reduz à evidência dos primeiros princípios do ser, as quais são também os primeiros princípios do intelecto; trata-se, na realidade, de uma verdade extremamente estreita e limitada, um reduzidíssimo ponto de verdade diante das possibilidades da verdade. Por mais que a inteligência humana trabalhe e se aperfeiçoe, é-lhe impossível, no que dependa de sua própria natureza, passar além dos limites da evidência destes primeiros princípios; o conhecimento filosófico e a contemplação de que falavam os gregos, por mais sublimes que sejam, não passam do conhecimento humano que se fundamenta na evidência destes princípios levado ao limite extremo de sua perfectibilidade.

Mas o conhecimento que resulta do pleno exercício do dom da sabedoria, embora não seja a evidência de Deus, tem a sua força e evidência fundamentada em uma participação do ser mais elevada do que a correspondente ao plano da evidência dos primeiros princípios. Não é uma nova verdade, mas uma maior participação da verdade que não pode mais ser reduzida à evidência dos primeiros princípios. Não pode, por isso mesmo, ser alcançada pelo raciocínio, que não transcende a evidência destes primeiros princípios; e não é, também, a própria visão de Deus, embora nos transmita um conhecimento de Deus impossível de ser alcançado pelo exercício da filosofia.

Não se trata, entretanto, apenas de uma elevação do modo de conhecimento humano ao modo de conhecimento das substâncias separadas. De fato, a tradição cristã reporta que através deste modo de conhecimento também o mistério da Santíssima Trindade se manifesta de uma maneira mais clara à inteligência humana, coisa que está acima das possibilidades de qualquer natureza criada.

Trata-se, pois, de um modo de conhecimento que tem em comum com a fé muitas de suas características. Por ser irredutível ao modo de evidência dos primeiros princípios do intelecto, é algo manifestamente acima da natureza humana e infundido por Deus na alma, tal como a fé, impossível sem o auxílio divino. Ademais, tal como ocorre com a fé, manifesta-nos coisas que estão acima das possibilidades de qualquer natureza criada, por mais elevada que seja, como é o caso da mais límpida manifestação do mistério da Trindade, de onde que não se trata apenas de uma elevação da mente humana acima de sua própria natureza, mas de uma verdadeira participação de uma natureza e uma vida que somente pertence a Deus. E, finalmente, assim como a fé, não obstante a clareza deste modo de conhecimento, é nos transmitido através dele um conhecimento de Deus que não no-Lo mostra tal como Ele é. Diz, de fato, S. João:

"Caríssimos,
desde já somos filhos de Deus",

participantes, portanto, daquelas coisas que só a Deus pertencem,

"mas o que nós seremos
ainda não se manifestou.

Sabemos que por ocasião desta manifestação,
seremos semelhantes a Ele,
porque o veremos tal como Ele é".

I Jo. 3,2

Pode-se dizer, pois, que este modo de conhecimento produzido pelo dom de sabedoria é o próprio conhecimento da fé, elevado, porém, a um modo sobre humano de realização.

São João da Cruz descreve na Subida do Monte Carmelo este modo de conhecimento, acrescentando, no fim de sua exposição, tratar-se de algo concedido por Deus àqueles que muito o amam. Eis o que ele nos fala a este respeito:

"Há uma espécie de revelações,
que são o descobrimento de verdades ao entendimento,
que em regra não se podem chamar de revelações,
mas de notícias intelectuais ou inteligências,
pois consistem em Deus dar a entender à alma verdades nuas,
tanto a respeito de coisas temporais
como também de espirituais,
mostrando-as clara e manifestamente à alma.

Para falar apropriadamente desta inteligência
de verdades nuas que se dá no entendimento,
seria preciso que Deus me pegasse na mão e movesse a pena;
porque, sabe, amado leitor, que excede toda a palavra
o que em si mesmas elas são para a alma.

Este gênero de verdades nuas não é como ver
coisas corporais com o entendimento;
mas consiste em entender e ver
com o entendimento verdades de Deus.
Este gênero de notícias se distingue de duas maneiras:
umas acontecem à alma acerca do Criador,
outras acerca das criaturas.

E, embora uma e outras sejam muito saborosas para a alma,
não se pode, porém,
comparar o deleite causado pelas que são de Deus,
nem mesmo há vocábulo ou termo com que se possa dizer;
pois são notícias do mesmo Deus e deleite do mesmo Deus e,
como diz Davi,

`Não há como Ele coisa alguma'.

Salmo 39, 6

Pois estas notícias acontecem diretamente a respeito de Deus,
sentindo-se altissimamente algum atributo de Deus,
ou seja a sua onipotência, ou seja a sua fortaleza,
ou a sua bondade e doçura, etc.;
e todas as vezes que se sente,
grava-se na alma aquilo que se sente.
E porque é pura contemplação a alma vê claramente
que não há poder para dizer algo daquilo,
a não ser alguns termos genéricos, que a abundância
do deleite e do bem que ali sentiram faz dizer às almas
por quem aquilo passou;
mas não de forma que se possa acabar de entender
o que a alma saboreou e sentiu.

Tendo Davi passado por algo disto,
disse-o em palavras comuns e gerais:

`Os juízos de Deus',

isto é, as virtudes e os atributos
que sentimos em Deus,

`são verdadeiros e justificados em si mesmos,
mais desejáveis do que o ouro
e muito mais do que a pedra preciosa,
e mais doces do que o favo de mel'.

Salmo 18, 10-11

E lemos que em uma altíssima notícia
que Deus deu de si mesmo a Moisés
uma vez que passou diante dele,
este só disse o que se pode dizer com termos comuns;
pois, passando o Senhor por ele naquela notícia,
Moisés prostrou-se muito à pressa na terra,
dizendo:

`Imperador, Senhor,
Deus misericordioso e clemente,
paciente e de muita misericórdia e verdadeiro,
que guardas a misericórdia que prometes a milhares'.

Ex. 34, 6-7

De onde se vê que não podendo Moisés de Deus declarar
o que de Deus conheceu em uma só notícia,
disse-o prolixamente com todas aquelas palavras.
E, embora nessas notícias a alma diga palavras,
ela bem vê que nada disse daquilo que sentiu;
pois vê que não há nome acomodado para nomear aquilo.
Assim S. Paulo,
quando teve aquela alta notícia de Deus,
não curou de dizer mais senão que não era lícito ao homem
tratar destas coisas (II Cor. 12,4).

Estas notícias divinas a respeito de Deus
nunca são de coisas particulares;
pois são respeitantes ao Sumo Princípio,
e portanto não se podem dizer em particular,
a não ser que alguma verdade,
a respeito de coisa menos que Deus,
ali se visse juntamente;
mas aquelas respeitantes a Deus por forma alguma.
E estas altas notícias de Deus só as pode ter
a alma que chega à união de Deus,
porque elas são a mesma união.
E embora não seja manifesta e claramente como na glória,
é, no entanto, notícia tão subida e alta
que penetra a substância da alma.
E algumas destas notícias feitas por Deus na substância da alma
de tal maneira a enriquecem que não só uma chega
para a alma deixar de uma vez todas as imperfeições
que ela não tinha podido tirar em toda a sua vida,
mas ainda a deixa cheia de virtudes e de bens de Deus.

E são para a alma tão saborosas e de tão íntimo deleite que,
com uma só, dar-se-ia por bem paga de todos os trabalhos,
por inumeráveis que fossem, que em vida tivesse padecido;
e fica tão animada e tão cheia de brio
a padecer muitas coisas por Deus,
que lhe é particular paixão ver que não padece muito.

A alma não pode chegar a estas altas notícias por meio
de qualquer comparação ou por imaginação sua,
pois estão acima de tudo isto;
e assim, sem habilidade da alma as opera Deus nela.
E por vezes, quando ela menos pensa e menos pretende,
é que Deus costuma dar à alma estas notícias.
E porque estas notícias se dão de repente
e sem alvedrio da alma,
ela nada tem a fazer nelas para as querer ou não querer,
senão ficar-se humilde e resignada a seu respeito,
que Deus fará a sua obra quando e como quiser.

Não digo que nestas notícias se haja negativamente,
como temos ensinado em relação às demais apreensões da alma,
pois, conforme dissemos,
estas fazem parte da união à qual vamos encaminhando a alma,
pelo que ensinamos a desnudar-se e a despojar-se
de todas as outras.

Estas mercês são feitas por um amor muito particular de Deus
para com aquela alma,
por essa alma lhe ter também um amor muito desapropriado.

Isto é o que o Filho de Deus quiz dizer por São João
quando disse:

`Aquele que me ama
será amado de meu Pai,
e eu o amarei e me manifestarei
a mim mesmo a ele'.

Jo. 24, 20" (117).

Conforme acabamos de ler, no final desta longa passagem, São João da Cruz, para esclarecer melhor o que havia explicado antes, cita as palavras de Jesus segundo as quais Ele se manifestaria àqueles que o amassem (Jo. 24, 20). Trata-se do mesmo a que Ele se referia quando prometeu àqueles que seguissem seus mandamentos que receberiam o Espírito Santo e que, através dele, conheceriam a verdade (Jo. 8, 31). Sua manifestação e a manifestação da verdade se referem à mesma realidade; e, de fato, foi o próprio Jesus que afirmou no Evangelho de João:

""Eu sou o caminho,
a verdade
e a vida.
Ninguém vai ao Pai
senão por mim".

Jo. 14, 6

Esta manifestação de Jesus ou da verdade não é, entretanto, como poderia parecer num primeiro exame, uma manifestação do Verbo de Deus ou da verdade que é o Verbo de Deus tal como Ele é na Trindade eterna. Trata-se de algo que está aquém disto; é um conhecimento infundido por Deus na alma que se segue a uma superabundante participação da vida divina que tem seu fundamento na caridade:

"Não vos chamo mais de servos",

diz Jesus,

"porque o servo não sabe
o que seu amo faz;
mas eu vos chamo de amigos,
porque tudo o que ouvi do Pai,
eu vos dei a conhecer".

Jo. 15, 15

Este conhecimento, tudo o que o Cristo ouviu do Pai, no dizer de João, não é o próprio Verbo de Deus, mas algo produzido na alma pela essência divina comum às três pessoas da Santíssima Trindade. Assim como a caridade é associada à pessoa do Espírito Santo, por ser representativa na alma do Espírito Santo que na Santíssima Trindade procede do Pai e do Filho por modo de amor, assim também este conhecimento é associado à pessoa do Verbo ou da verdade por ser representativo na alma da pessoa do Filho que na Santíssima Trindade é gerado do Pai por modo de sabedoria.

Isto não significa, porém, que o Cristo seja caminho para Deus apenas por modo de contemplação infusa pelo Espírito Santo, e que não o seja também pela sua humanidade e pelos méritos de sua paixão e morte com que nos obteve a redenção. Na mesma passagem em que Jesus acabava de explicar ser Ele o caminho, a verdade e a vida, Felipe o interrompe e lhe pergunta:

"Senhor,
mostra-nos o Pai
e isto nos basta".

Jesus então lhe responde de um modo que Felipe não esperava:

"Há tanto tempo estou convosco,
e tu não me conheceste, Felipe?

Quem me viu, viu o Pai.

Como podes dizer:
mostra-nos o Pai?

Não crês que eu estou no Pai
e o Pai está em mim?

Crede-me, eu estou no Pai
e o Pai está em mim.

Crede-o, ao menos,
por causa destas obras".

Jo. 14, 8

Jesus, pois, não se refere aqui às mais sublimes manifestações do dom de sabedoria de que Ele fala logo em seguida quando diz que se manifestaria àqueles que o amam e que, neste dia, embora

"o mundo não mais me verá,
vós me vereis,
porque eu vivo e vós vivereis;
neste dia compreendereis
que eu estou no Pai
e vós em mim e eu em vós".

Jo. 14, 19-20

Nesta última passagem Ele volta a falar da plena manifestação do dom de sabedoria; mas quando Ele disse a Felipe

"há tanto tempo estou convosco
e tu ainda não me conheces, Felipe?
Quem me viu, viu o Pai.
Como podes dizer: Mostra-nos o Pai?",

Ele está falando a Felipe da simples fé no mistério da Encarnação do Verbo, em que se incluem, por extensão, todas as graças que procedem da Redenção e as virtudes dos Sacramentos.

Por esta resposta de Jesus a Felipe ter um sentido tão claro e estar dentro do contexto da interpretação que Jesus faz de sua afirmação de ser caminho, verdade e vida, deve entender-se com isto que ambos os sentidos estão incluídos no significado daquela primeira afirmação.

Pelos méritos da Paixão de Cristo vai-se a Deus como que por modo de uma causalidade eficiente; diz isto expressamente Tomás de Aquino, quando afirma que pela paixão de Cristo foi operada nossa salvação por modo de eficiência (118); pelo conhecimento do Cristo que procede da caridade em nós infundida pelo Espírito Santo vai-se a Deus por um certo modo de causalidade formal, infundindo-se no homem a filiação divina por uma semelhança com a pessoa do Verbo, Sabedoria de Deus.

Tudo isto que aqui descrevemos não se é uma ambição impossível para os homens; com o auxílio da graça, todos os homens podem chegar a tanto, as Sagradas Escrituras testemunhando que na comunidade à qual o apóstolo João escreveu sua primeira carta isto era algo comum.

De fato, na primeira carta de João, ele escreve o seguinte a seus destinatários:

"Vós, porém, recebestes a unção
do (Espírito) Santo,
e todos possuís a ciência.

Eu não vos escrevo
porque ignorais a verdade,
mas porque a conheceis.

A unção que recebestes dEle,
permanece em vós,
e não tendes necessidade alguma
de que alguém vos ensine;
mas como sua unção vos ensina sobre tudo,
assim como ela vos ensinou,
permanecei nEle.

Permanecei nEle,
para que, quando Ele se manifestar,
sejamos semelhantes a Ele
e o vejamos tal como Ele é".

I Jo.2,20-21,27-28;3,2

São palavras muito claras, que quase dispensam comentário, com exceção, talvez, daquela em que João afirma que havia muitos naquela comunidade que não necessitavam mais que alguém os ensinasse, pois a unção do Espírito Santo já tudo lhes ensinava. O que João queria dizer com isso? São estas palavras que devam ser usadas por um apóstolo que recebeu de Deus o dever de ensinar aos homens o desejo de aprender e a humildade da primeira bem aventurança para que possam buscar a Deus? Em vez de pessoas assim, tais palavras não estariam fazendo de seus leitores pessoas convencidas? Não, ao contrário; deve-se subentender aqui que os leitores de João eram pessoas que conheciam as Sagradas Escrituras; João estava então lhes fazendo ver, com um finíssimo jogo de palavras, como estavam se cumprindo no Cristo as profecias do Antigo Testamento, em particular aquela em que Jeremias, muitos séculos antes, havia anunciado o estabelecimento de uma Nova Aliança:

"Naqueles dias,
diz o Senhor,
esta será a Aliança
que farei com a casa de Israel:

Colocarei a minha Lei nos seus corações,
e a imprimirei nas suas mentes;

serei para eles o seu Deus,
e eles serão para mim o seu povo.

Ninguém mais ensinará o seu próximo,
e o seu irmão,
dizendo-lhe:

`Conhece o Senhor'.

Porque todos me conhecerão
diz o Senhor,
desde o menor de todos
até ao maior entre eles.

E eu lhes perdoarei as suas iniquidades,
e não me lembrarei mais dos seus pecados".

Jer. 31, 33-34

Deste modo, na comunidade à qual dirigiu a sua primeira carta, João nos afirma ter encontrado pessoas que haviam recebido a unção do Espírito Santo e possuíam uma ciência tal que realizavam a profecia de Jeremias.

Nas suas segunda e terceira cartas, S. João faz afirmações que são deixadas em uma formulação mais genérica, pois estas duas últimas cartas são escritos curtíssimos, de poucas linhas, e em sua brevidade não oferecem a possibilidade de uma interpretação mais precisa pelo contexto. É difícil, por isso, determinar o sentido exato que João quiz dar às suas expressões da segunda e terceira epístolas. Mas não se pode deixar de considerar que as mesmas palavras de que João aqui se utiliza possuem, na primeira epístola, e mais ainda, no seu Evangelho, uma obra quase uma centena de vezes mais extensa do que estes dois brevíssimos bilhetes, significados que não deixam margem a dúvidas.

Da comunidade à qual dirigiu a sua segunda carta, João diz o seguinte:

"Muito me alegrei por ter encontrado
alguns dos teus filhos que vivem na verdade,
segundo o mandamento que recebemos do Pai".

II Jo. 1, 4

E para a comunidade à qual destinou a terceira carta, João escreveu as seguintes linhas:

"Muito me alegrei com a chegada dos irmãos
e com o testemunho que deram
de como viver na verdade.

Não há alegria maior para mim
do que saber que os meus filhos
vivem na verdade".

III Jo. 1, 3-4



Referências

(109) A cronologia das obras de Tomás de Aquino se encontra na maioria das obras importantes de introdução ao seu estudo, assim como nas introduções das edições latinas citadas na bibliografia constante no final deste trabalho.
(110) Guillelmus de Tocco: Vita Sancti Thomae Aquinatis, C. 58.
(111) S. Agostinho: Retractationes libri II, PL 32, 583-658.
(112) Ameal, João: São Tomás de Aquino; Porto, Livraria Tavares Martins, 1956; pg. 144.
(113) Ibidem; pg. 145, segundo o depoimento de Bartolomeu de Cápua no processo de canonização.
(114) Ibidem; pgs 144-146, citando Tocco e o depoimento de Bartolomeu de Cápua no processo de canonização. Também Guillelmus de Tocco, o.c., C. 63.
(115) Ibidem; pg.146.
(116) Petrus Lombardus: Sententiarum Libri IV; L. III, d. 35, 4; PL 192, 828.
(117) S. João da Cruz: Subida do Monte Carmelo; II, c. 25-26.
(118) Summa Theologiae, IIIa, Q.48 a.6.