X.11.

As bem aventuranças e a contemplação.

Uma das passagens mais belas do Evangelho é, sem dúvida, o texto das bem aventuranças, reportado por S. Mateus:

"Vendo Jesus as multidões,
subiu ao monte e sentou-se.

Rodearam-no os discípulos,
e ele pôs-se a ensiná-los, dizendo:

Bem aventurados os pobres de espírito,
porque deles é o Reino dos Céus.

Bem aventurados os mansos,
porque possuirão a terra.

Bem aventurados os que choram,
porque serão consolados.

Bem aventurados os que tem fome e sede de justiça,
porque serão saciados.

Bem aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.

Bem aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.

Bem aventurados os pacíficos,
porque serão chamados filhos de Deus".

Mt. 5, 1-9

Estas sete bem aventuranças não são elogios dispostos ao acaso; ao contrário, pode-se facilmente ver que nelas foi descrito todo o itinerário da vida espiritual. As duas últimas bem aventuranças descrevem a vida contemplativa; nelas são descritos dois modos de contemplação. As três primeiras descrevem as disposições iniciais daqueles que hão de chegar à vida contemplativa.

O Reino dos Céus é daqueles que são pobres de espírito, diz a primeira bem aventurança. Acrescentando à palavra pobre a expressão de espírito, Jesus quer dizer com isto que não está se referindo àquela pobreza constituída pela falta de posses materiais. Os bens materiais e o dinheiro são bens corporais, não são riquezas do espírito; o espírito é rico pelas virtudes e pelo conhecimento, coisas que, no mais das vezes, a maioria dos homens julga já possuí-los suficientemente e por isso mesmo não se preocupa em buscá-las.

Com as riquezas materiais costuma acontecer o contrário; a maioria dos homens, ainda que possua grandes fortunas, geralmente se julga ainda carente de bens materiais e procura avidamente obtê-los em maior abundância.Por mais pobres, porém, que sejam na alma, agem como se se julgassem suficientemente ricos de espírito.

Os pobres de espírito, portanto, aos quais a primeira bem aventurança promete o Reino dos Céus, são aqueles que se reconhecem como tais. Não podem ser aqueles que são apenas de fato pobres de espírito, pois a indigência de bens da alma é algo que, no dizer das Sagradas Escrituras, depois da queda do primeiro homem, se abateu sobre toda a humanidade:

"Todos pecaram",

diz a Sagrada Escritura,

"e estão privados da glória de Deus;
não há quem entenda,
não há quem busque a Deus;
todos se transviaram,
todos se corromperam".

Rom. 3, 23; 3, 11-12

Apesar destas expressões se aplicarem a toda a humanidade, a maioria dos homens age como se elas se aplicassem apenas aos outros. Mas os pobres de espírito de que fala a primeira bem aventurança, à diferença da maioria dos homens, são aqueles que conseguem reconhecer-se a si próprios nestas palavras. São pessoas que sabem que não sabem e sabem que não são virtuosos, e que, ademais, não podem ser convencidos facilmente do contrário pelas ilusões de que o mundo está repleto. Neste sentido, a pobreza de espírito é a humildade diante da verdade. Desta humildade diz Hugo de S. Vitor que é

"O princípio de todo o aprendizado" (67),

e logo em seguida nos dá uma descrição de como é o homem que é humilde diante da verdade:

"Não se envergonha de aprender de ninguém;

não querendo parecer sábio antes do tempo,
não se envergonha de aprender dos demais o que ignora;

aprende de todos de boa vontade o que desconhece;

torna-se mais sábio do que os outros,
querendo aprender de todos;

não despreza nenhum conhecimento,
nenhuma escritura, nenhuma lei,
se estiver à disposição;

se, com isto, nada lucrar,
também nada terá perdido;

é humilde e manso,
inteiramente alheio aos cuidados do mundo
e às tentações dos prazeres,
solícito em aprender de boa vontade de todos;

não presume de sua ciência,
não quer parecer douto,
mas deseja vir a sê-lo;

busca os ditos dos sábios,
e tem ardentemente os seus vultos
diante dos olhos da mente,
como um espelho"
(68).

Quem é assim, pode começar a buscar o Reino dos Céus; a primeira bem aventurança promete que o Reino dos Céus será deles.

Estas pessoas se posicionam diante da vida, das pessoas, do Universo e do próprio Evangelho, quando se lhes apresenta, como diante de um mistério; elas percebem que em todas as coisas está contido algo que está além da compreensão que elas podem ter. É a atitude oposta à da maioria das pessoas: todos sabem que não conhecem tudo o que há no mundo, não há quem seriamente afirme o contrário; mas a quase totalidade das pessoas agem como se desconhecessem apenas os detalhes e que a essência do Cosmos já tivesse sido perfeitamente bem compreendida por eles. É assim que se sentem capazes de julgar e opinar sobre tudo quanto se lhes apresenta, e, ao fazerem isso, embora admitam diante dos outros que se trata apenas de sua opinião pessoal e que os demais tenham o direito de divergir, diante de si mesmos estão convictos de que aquela é a verdade definitiva.

Os pobres de espírito não são assim; quando lêem aquela passagem de Isaías que diz

"Os meus pensamentos
não são os vossos pensamentos,

nem os vossos caminhos
são os meus caminhos,
diz o Senhor.

Quanto o céu sobe em elevação à terra,
tanto elevam-se os meus caminhos acima dos vossos,
e os meus pensamentos acima dos vossos",

Is. 55, 8-9

eles apreendem imediatamente o seu alcance, e que se trata de algo que se aplica a eles próprios, embora ainda não entendam do que se trate.

São pessoas, portanto, que desejam ardentemente aprender, não os detalhes, mas as essências.

É assim que Santo Atanásio, o primeiro biógrafo de Santo Antão de quem já fizemos citação, descreve os seus primeiros passos de sua ascensão a Deus:

"Ele soube, ainda quando jovem,
que havia na aldeia um ancião
que desde a sua juventude levava na solidão
uma vida de oração.

Quando Antão o viu,
`teve zelo pelo bem',
e se estabeleceu imediatamente
na vizinhança da cidade.
Desde então, quando ouvia
que em alguma parte havia uma alma esforçada,
ia, como sábia abelha, buscá-la,
e não voltava sem havê-la visto.
Só depois de haver recebido,
por assim dizer,
provisão para a sua jornada de virtude,
regressava.

Assim vivia Antão e era amado por todos.

Submetia-se com toda sinceridade
aos homens piedosos que visitava,
e se esforçava por aprender
aquilo que em cada um avantajava em zelo
e prática religiosa.

Observava a bondade de um,
a seriedade de outro na oração;
estudava a aprazível quietude de um
e a afabilidade de outro;
fixava sua atenção nas vigílias observadas por um
e nos estudos de outro;
admirava um por sua paciência,
e outro pelo jejuar e dormir no chão;
considerava atentamente a humildade de um
e a paciência e a abstinência de outro,
e em uns e outros notava especialmente
a devoção a Cristo e o amor que mutuamente se davam.

Então se apropriava do que havia obtido de cada um
e dedicava todas as suas energias a realizar em si
as virtudes dos outros.

Não tinha disputas com ninguém de sua idade,
nem tampouco queria ser inferior a eles no melhor;
e ainda isto fazia de tal modo
que ninguém se sentia ofendido,
mas todos se alegravam com ele.

E assim todos os aldeões e os monges
com os quais estava unido
viram que classe de homem era ele
e o chamavam de amigo de Deus,
estimando-o como a filho ou irmão"
(69).

Ao descrever deste modo o início da vida ascética de S. Antão, Santo Atanásio nada mais fêz do que descrever as disposições a que se refere a primeira das sete bem aventuranças e o princípio da vida espiritual; sem estas disposições não se pode chegar ao Reino de Deus, promessa da primeira bem aventurança.

Santo Agostinho interpretou a primeira bem aventurança como referindo-se à humildade. No Sermo Domini in Monte ele diz:

"O temor de Deus convém aos humildes,
dos quais se diz:
Bem aventurados os pobres de espírito".

Hugo de S. Vitor, nas Allegoriae Utriusque Testamenti, é do mesmo parecer:

"Bem aventurados os pobres de espírito,
porque deles é o Reino dos Céus:
há os que são ricos de espírito
e há os que são pobres de espírito.
Os ricos de espírito são os soberbos;
os pobres de espírito, os humildes".

E também, no que diz respeito a S. Tomás de Aquino, encontramos na Summa Theologiae ele ter escrito que

"Pelo fato de que alguém tema perfeitamente a Deus,
segue-se que não busque
engrandecer-se a si próprio pela soberba,
o que pertence à pobreza de espírito,
segundo a qual pode entender-se
a ausência de um espírito soberbo"
(70).

A segunda bem aventurança é também uma das disposições iniciais para se chegar ao Reino de Deus. A ela se promete a posse da terra. A posse da terra é uma expressão típica da Lei de Moisés; no livro do Êxodo narra-se como Moisés havia libertado, com o auxílio divino, o povo judeu do cativeiro do Egito; a esta libertação seguiu-se uma longa peregrinação através do deserto do Sinai, durante a qual Moisés freqüentemente anunciava à multidão a posse de uma terra prometida por Deus, além do rio Jordão, para a qual dirigia o povo judeu. As coisas do Velho Testamento, porém, são símbolos das coisas do Novo, e a terra prometida de que fala Moisés é, na linguagem de Jesus, novamente um símbolo para o Reino dos Céus. A primeira bem aventurança era a humildade diante da verdade; a segunda bem aventurança, a dos mansos que possuirão a terra, é o respeito diante do próximo, seja ele quem for.

As pessoas mansas, de fato, são aquelas que não revidam as ofensas; imaginam primeiro o que pode ter levado o pensamento dos outros à agressão. Seja o que os outros façam com elas, os mansos respeitam incondicionalmente as pessoas destes outros, ressaltando aquilo que nelas há de dignidade. Ainda que estes outros forem loucos, não desprezarão por isso de antemão o que disserem, mas examinarão antes o conteúdo do que dizem. Com isto estão em uma disposição excelente para aprenderem, porque freqüentemente a verdade surge pela primeira vez na vida dos homens revestida das roupagens mais estranhas, e por isso mesmo costuma ser desprezada de antemão pelos homens. Aquele que, por esta razão, não for movido de antemão pelo respeito irrestrito a todos os homens, muito provavelmente desprezará junto com os homens a quem tiver desprezado a possibilidade de entrar na terra prometida.

As pessoas que cumprem as disposições da primeira e da segunda bem aventuranças, quando se vêem diante do Evangelho, no qual, para um espírito sincero, a primeira coisa que nos atinge é sempre a parte moral, passam a chorar pelos pecados que cometeram em sua vida passada antes de terem conhecido os ensinamentos do Cristo. Choram e procuram emendar-se; com o passar do tempo, o esforço por se emendarem dos vícios vai-se tornando nelas o germe das primeiras virtudes. Cumpre-se com isto a terceira bem aventurança, que promete aos que choram que serão consolados; é uma promessa antecipada da graça do Espírito Santo que lhes será concedida nas últimas bem aventuranças, pois no Evangelho de S. João o Espírito Santo é chamado de Consolador (Jo. 14, 26; 15, 26).

Quando a virtude se torna no homem uma segunda natureza, vem a quarta bem aventurança, a da fome e sede de justiça. Justiça nesta passagem não significa aquela virtude específica de que falam Aristóteles e Tomás de Aquino nos seus tratados de Ética. Por justiça, na quarta bem aventurança, as Sagradas Escrituras designam a santidade, pois no Velho Testamento a expressão utilizada para designar os homens santos consiste em chamá-los de homens justos. Fome e sede de justiça, portanto, é a fome e sede de santidade. Ela surge quando os hábitos das virtudes se consolidam e despertam no homem uma inteligência mais clara e mais certa de que existe algo maior do que as próprias virtudes. Este algo maior do que as próprias virtudes, ademais, por efeito da própria prática das virtudes, passa a ser apreendido não mais como um ideal distante, mas como um bem efetivamente possível ao homem. A partir daí o desejo deste bem deixa de ser um daqueles desejos remotos entre tantos outros para se transformar claramente na aspiração dominante do homem; ela se torna uma verdadeira fome e sede de santidade, e os que alcançam esta fome e sede de santidade amparados pelo lastro das três primeiras bem aventuranças, contam com a promessa do Evangelho de que, se perseverarem, serão saciados.

Na seqüência das bem aventuranças, conforme veremos, a sexta e a sétima descrevem a vida contemplativa.

Mas entre estas e a quarta há uma outra pela qual muitos freqüentemente não querem passar; é a quinta, a dos misericordiosos que alcançarão misericórdia. A misericórdia de que aqui se fala não é uma disposição a uma obra de misericórdia circunstancial, daquelas que todas as pessoas educadas fazem quando um aflito as procura e elas tentam consolá-lo. Tampouco se refere às pessoas que por terem muito dinheiro e serem criaturas de boa índole doam uma parte a obras de beneficiência; nem tampouco se trata daqueles que tem prazer em realizar certas obras de caridade e por isso dedicam algum tempo a elas. Trata- se, ao contrário, daqueles que compreenderam a desproporção entre as necessidades dos que precisam de auxílio e a pequenez dos seus problemas e, como que obrigados por este entendimento, não podem viver mais para aquilo que antes constituía a trama de suas vidas. É uma transição necessária à vida contemplativa, porque os problemas pessoais que afligem a maioria dos homens, mesmo daqueles que já choram pelos seus pecados, são problemas provenientes em quase sua totalidade da vida das paixões e da apreensão do individual e do particular que cai diretamente sob os sentidos. Quem vive de tais problemas, só por vivê-los, não vive pela inteligência, mas pelos sentidos. Já os problemas alheios, ainda que nos façam sofrer, nos fazem sofrer justamente quando eles nos obrigam a romper com uma vida construída sobre as paixões e as apreensões dos sentidos; eles só podem ser levados seriamente em consideração através dos óculos da razão e facilmente neles passamos do particular para o universal. Naqueles a quem a virtude obriga a se entregarem à misericórdia, portanto, a vida da inteligência vence a vida sensitiva e passional sobre que se inicia e se constrói toda vida humana, trazendo gradativamente as diversas faculdades do homem à obediência e à docilidade para com a inteligência; os que assim se dedicam à misericórdia poderão depois se entregarem de corpo e alma à contemplação. Melhor ainda será se o exercício da misericórdia segue junto com o desenvolvimento da ciência moral, tal como, entre os gregos, se encontra nas Éticas de Aristóteles, ou como entre os judeus pode ser derivada da reflexão sobre a extensa Lei de Moisés, entre os judeus, ou ainda como se encontra na moral cristã.

Não faltam, porém, aqueles que supõem ser possível pular para as duas últimas bem aventuranças sem passar pela quinta. Deles pode-se dizer o que escreve um teólogo contemporâneo que se oculta sob o pseudônimo de Ardens, em um pequeno livro à primeira vista sem maiores pretensões:

"As pessoas deveriam entender bem,
que amar é sempre o sofrimento
de quem se sacrifica.

Isto acontece quando um dia,
quem ama,
privando-se de alguma coisa,
e sofrendo por isso,
a dá,
e a alegria de dar
se torna muito maior do que o sofrimento.

Sinto que as pessoas,
pensando nisso,
tenham medo.

Parecem-me que não compreendem mais
a misericórdia,
e talvez ninguém lhes tenha,
jamais,
falado a respeito.

O seu amor não é mais um querer dar,
mas um querer conservar para si.

Não é mais o verdadeiro amor.

O amor verdadeiro
chama-se doação,
viver totalmente para os outros.

A liberdade é fruto do amor verdadeiro.

A liberdade significa
não mais possuir nada
que se possa perder"
(71).

Esta doutrina não é outra que a do próprio Jesus, de quem os Atos dos Apóstolos dizem que ele sempre ensinava que

"Dar é maior felicidade do que receber".

At. 20, 35.

Não faltam também os que não negam a necessidade da quinta bem aventurança para se chegar à vida contemplativa, mas que supõem eles próprios já terem passado suficientemente por ela por tudo quanto já realizaram em suas vidas até aquele momento; movidos por razões como esta, pensam que nada mais justo seria para eles do que agora passarem ao repouso da contemplação das coisas de Deus.

É fácil, porém, perceber que aqueles que assim pensam estão imensamente longe do caminho das bem aventuranças evangélicas. As bem aventuranças não são estágios pelos quais devemos passar para, depois de acabados nossos períodos de estágio em cada uma, prosseguirmos adiante deixando as anteriores para trás. Ao contrário, as bem aventuranças são cumulativas. Cada uma das seguintes não é algo que entra no lugar da anterior, substituindo-a, mas algo que se acrescenta às anteriores, fazendo com que as anteriores se aprofundem pelo acréscimo das seguintes. A misericórdia da quinta bem aventurança, portanto, é para sempre e sempre para mais, ou não é mais a quinta bem aventurança. Não é algo pelo qual temos que passar para depois podermos descansar na contemplação das coisas divinas; ao contrário, é algo que pela contemplação das coisas de Deus é levado a um extremo.

As implicações deste ensinamento são evidentes. Quem não quiser passar, e quem de fato não passar pela misericórdia, não será chamado à contemplação das coisas de Deus:

"Se alguém",

diz S. João,

"vê o seu irmão na necessidade
e lhe fecha o coração,
como permanecerá nele o amor de Deus?

Filhinhos,
não amemos de palavras nem de língua,
mas por ações e em verdade:
nisto reconhecemos que somos da verdade".

I Jo. 3, 17-19

Ora, quem é que não vê os homens passando necessidades, muitas, maiores, e mais merecedoras de auxílio e ocupação do que qualquer problema pessoal próprio?

Se não os vê, é porque é cego; se é cego, os olhos da alma não se poderão abrir para a contemplação. Se não é cego, o que seus olhos vêem o obrigarão a uma reconstrução da própria vida dentro da bem aventurança da misericórdia, ou então as faculdades da alma não acompanharão a apreensão da inteligência. Seja qual for o caso, será um incapaz para a vida contemplativa.

O exercício da misericórdia é, assim, o gargalo que retém as pessoas que, em uma concepção errônea, buscam a santidade ignorando que a caridade, aquele amor que produz a contemplação, se estende também ao próximo. É destes que no Juízo Final Jesus diz:

"Eu estava com fome,
e não me destes de comer.

Eu tive sede,
e não me destes de beber.

Fui forasteiro,
e não me recolhestes.

Estava nu,
e não me vestistes.

Doente e preso,
e não me visitastes".

Mt. 25, 42-3.

Ouvindo isto, os homens, no juízo final, em vez de entenderem o que se lhes diz, ou mesmo de negarem que isto se lhes aplique, o que supõe o entendimento, são tomados de surpresa: Quando? perguntam eles.Não se lembram; não fazem idéia. De fato, passaram a vida com os olhos da inteligência fechados às evidências mais simples:

"Senhor, quando é que te vimos
com fome ou sede,
forasteiro ou nu,
doente ou preso,
e não te servimos?"

Mt. 25, 44

Esta é a resposta de como quem diz: deve haver um engano; isto é impossível que tenha se verificado; nunca aconteceu tal coisa. Se tivesse acontecido, o teríamos visto; se o tivéssemos visto, teriamo-nos lembrado. Mas esta atitude de surpresa é a própria evidência de que passaram a vida como cegos, norteados apenas pelos sentidos e pelas paixões, incapazes de abrirem os olhos para a luz da inteligência e da graça.

Jesus ainda lhes explica:

"Em verdade eu vos digo,
todas as vezes que o deixastes de fazer
a um destes pequeninos,
foi a mim que o deixastes de fazer".

Mt. 25, 45

Poder-se-ia perguntar: Mas se eles estavam cegos, não seriam inocentes? Como então estão sendo julgados? Perguntas deste tipo não são novas, nem as suas respostas. Alguns fariseus, ouvindo considerações semelhantes por parte de Jesus, já naquele tempo lhe haviam feito uma pergunta similar:

"Também nós estamos cegos?"

Jo. 9, 40

A isto Jesus lhes respondeu:

"Se fosseis cegos,
não teríeis culpa;
mas, como dizeis:
`nós vemos!',
vosso pecado permanece".

Jo. 9, 41

Que significa esta resposta? Significa que os cegos que não têm culpa são apenas aqueles que se enquadram dentro da primeira bem aventurança; estes, porém, não permanecem muito tempo em sua cegueira.

Jesus faz também outro comentário semelhante na Evangelho de S. Mateus:

"A vinda do Filho do Homem",

diz Jesus,

"será como nos tempos de Noé.

Pois nos dias antes do dilúvio
todos comiam e bebiam,
casavam-se e davam-se em casamento,
até o dia em que Noé entrou na arca.

E eles nada perceberam
até que veio o dilúvio e arrastou a todos.

Assim acontecerá também
na vinda do Filho do Homem".

Mt. 24, 37-39

O que chama a atenção nesta passagem é o estado de espírito com que Jesus descreve os homens que hão de comparecer no Juízo Final, o mesmo dos homens que foram tragados pelo dilúvio: eles nada perceberam. E nada percebiam porque se deixavam levar pelas suas paixões e pelos seus problemas pessoais. É exatamente assim que não se alcança a vida contemplativa e se acaba por perder a própria alma.

Muito diferente é a situação dos que percebem. À medida em que passam pelas bem aventuranças, passam também pela da misericórdia e alcançam as duas últimas, nas quais se encontram descritos dois modos de contemplação que se seguem um ao outro.

Na sexta bem aventurança lemos:

"Bem aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus".

Este é aquele início de contemplação que se produz quando à fé, que segundo S. Tomás de Aquino causa a pureza do coração, se une a caridade. Por este primeiro modo de contemplação o Espírito Santo costuma conduzir os homens antes de introduzí-los na última bem aventurança. Deste primeiro modo de contemplação nos fala S. Antão em suas cartas, ao dizer:

"Oferecei-vos a Deus
como vítimas muito puras,
e fixai-o com o olhar,
pois ninguém,
como diz o Apóstolo,
se não for puro,
pode contemplar a Deus"
(72).

O olhar de que S. Antão fala é o olhar da fé, pois ver sempre se refere a uma faculdade apreensiva, não podendo pois se tratar da vontade; não pode ser também a vista corporal, que não pode ver a Deus; resta, pois, que seja a inteligência, iluminada pela fé.

Porém é muito freqüente nas cartas de S.Antão que quando ele fala dos olhos, ele acrescente "os olhos do coração"; e quando ele fala dos ouvidos, ele também acrescente "os ouvidos do coração", de tal modo que, quando não o faz, possa-se subentender o restante da expressão. Pelo acréscimo dessa expressão deduz-se que S. Antão, portanto, não fala apenas da fé, mas da fé que opera pela caridade, pois, conforme uma expressão famosa de Ricardo de S. Vitor,

"Ubi amor,
ibi oculus"
(73),

o que significa: ali onde está o amor, lá se abrem os olhos, isto é, os olhos da contemplação, que se elevam a Deus.

Os que estão na sexta bem aventurança são, portanto, aqueles que pela virtude já se purificaram da vida dos sentidos e das paixões, os que podem dizer como São Paulo

"Embora em nós o homem exterior
vá caminhando para a sua ruína,
o homem interior se renova de dia a dia;
não olhamos para as coisas que se vêem,
mas para as que não se vêem",

II Cor. 4, 16-18

nos quais a fé já é suficientemente pura para causar uma especial pureza do coração, e a caridade se une à fé fixando pelo amor os olhos de suas almas às coisas do alto.

É destes olhos que falava S. Antão quando dizia aos seus filhos espirituais:

"Não concedais, pois,
caríssimos no Senhor,
sono aos vossos olhos,
nem deixeis que as vossas pálpebras dormitem;
mas por causa daquele que vos visitou,
convém que não cedais à fadiga do combate,
até àquela hora em que vos possais oferecer a Deus
como vítimas de uma grande pureza,
pureza sem a qual não existe herança celeste"
(74).

Que querem dizer estas palavras de S. Antão, senão exortar seus filhos espirituais a perseverarem na contemplação que nos descreve Jesus na sexta bem aventurança?

Se perseverarem, de fato, nesta contemplação, eles alcançarão a sétima bem aventurança, na qual se lê:

"Bem aventurados os pacíficos,
porque serão chamados filhos de Deus".

São ditos pacíficos aqueles que são cheios de paz; ora, estes são aqueles que receberam o Espírito Santo, pois Jesus, logo após prometer a vinda do Espírito Santo, acrescentou aos apóstolos:

"Eu vos deixo a paz,
eu vos dou a minha paz.
Não é como o mundo a dá
que eu vo-la dou".

Jo. 14, 27

A paz é, portanto, um efeito da graça do Espírito Santo sobre a alma. Não é, porém, o efeito principal. O efeito principal da graça do Espírito Santo é a caridade ou uma vivência supereminente da caridade. Todavia, Tomás de Aquino ensina que a paz é o efeito próprio da caridade (75), de onde que se pode inferir que o Espírito Santo, infundindo e movendo a caridade, produz na alma, por conseqüência, também a paz, tanto mais profunda quanto maior for a caridade.

Os pacíficos, diz a sétima bem aventurança, serão chamados filhos de Deus. Já vimos a este respeito que a Epístola aos Romanos afirma que são filhos de Deus todos aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus (Rom. 8, 14). São filhos de Deus, portanto, todos aqueles que receberam o Espírito Santo.A sétima bem aventurança, porém, não se refere propriamente a estes; a sétima bem aventurança não se refere aos filhos de Deus, mas àqueles que serão chamados filhos de Deus, o que é uma significativa diferença.Serão chamados filhos de Deus aqueles que receberam tal plenitude do Espírito Santo que não só são filhos de Deus, como também esta condição se manifesta com tal evidência diante dos homens, que os próprios homens passam a chamá-los filhos de Deus.

A sétima bem aventurança se refere, portanto, àquela vivência supereminente da caridade a que já nos referimos anteriormente, infundida e movida pelo Espírito Santo. É o mesmo a que se refere Jesus logo após ter concluído o sermão das bem aventuranças, quando, como que se dirigindo aos homens que haveriam de passar por todas elas, lhes diz o seguinte:

"Vós sois a luz do mundo.

Não se acende uma lâmpada
para colocá-la debaixo da mesa,
mas sim sobre o candelabro,
e assim ilumina a quantos estão na casa.

Brilhe do mesmo modo
a vossa luz diante dos homens,
a fim de que, vendo as vossas boas obras,
glorifiquem vosso Pai
que está nos céus".

Mt. 5, 14-16

É esta vivência supereminente da caridade infundida e movida pelo Espírito Santo a que se refere a sétima bem aventurança que introduz os homens naquela forma superior de contemplação pela qual se lhes manifesta a verdade e se tornam livres.

A sétima bem aventurança, portanto, diz respeito àquela mais elevada forma de contemplação de que falam as Sagradas Escrituras.



Referências

(67) Hugo de S.Vitor: De modo discendi et meditandi; PL 176, 877.
(68) Ibidem; loc. cit..
(69) S. Atanásio: Vida de Santo Antão; C. 3-4;
(70) Santo Agostinho: De Sermone Domini in Monte, L. I, C. 4, PL 34, 1234; Hugo de São Vitor: Allegoriae utriusque Testamenti, N.T., L. II, C. 1; PL 175,763; Santo Tomás de Aquino: Summa Theologiae, IIa. IIae, Q.19 a.12.
(71) O título do livro onde se encontram tais pensamentos é ainda menos pretencioso. Cf.Ardens: Não me mate Mamãe; São Paulo, Ed. Regnum Dei, 1975.
(72) S.Antão: Carta III; conforme a tradução do Mosteiro da Virgem de Petrópolis, CIMBRA, 1986.
(73) Ricardo de S. Vitor: Benjamin Minor; C.13; PL 196,10.
(74) Santo Antão: Carta IV; III-1; tradução do Mosteiro da Virgem de Petrópolis do texto francês dos monges de Mont des Cats; CIMBRA, 1986; cf.:Epistola II ad Arsinoitas, III-1; PG 44, 981-2.
(75) Summa Theologiae, IIa IIae, Q. 29 a.3.