|
Há, pois, um outro modo de contemplação que está além
daquele descrito pelos filósofos gregos que se produz quando à fé
se une a caridade. Este modo de contemplação não se dá sem a fé,
mas é mais produto da caridade.
Entretanto, examinadas mais atentamente, a Revelação e
a Tradição cristã afirmam que do encontro da caridade com a fé se
produz apenas um princípio deste outro modo de contemplação. À
medida em que ela progride, surge um fato novo.
De fato, dizem as Escrituras,
"o caminho dos justos é
como a luz da aurora,
que vai clareando
até o pleno dia". |
Ora, quem somente conhecesse a noite e apenas tivesse visto a luz
da Lua e das estrelas, ao ver surgir palidamente os primeiros
brilhos da aurora, não poderia pensar que o Sol do pleno dia
fosse tão brilhante. Assim também, seguindo um curso comparável à
luz da aurora, para o justo que persevera em seu caminho chega o
momento em que a caridade começa a operar nele de um modo mais
manifestamente excelente e intenso do que este supunha ser
possível, mesmo levando em conta as possibilidades de crescimento
próprio das virtudes e o auxílio da graça.
É assim que o justo passa aos poucos a se ver cada vez
mais manifestamente conduzido, no operar da caridade, por um
princípio de natureza superior. A diferença pode ser comparada ao
calor produzido por um cobertor e o calor produzido por um
incêndio, e com razão as Sagradas Escrituras comparam este modo
de operação da caridade ao fogo. Este modo superior de operação
da caridade é um dos temas fundamentais do Evangelho.
É a ele que Jesus se referia quando afirmou, no
Evangelho de S. Lucas:
"Vim espalhar um fogo sobre a terra,
e que mais desejo eu,
senão que se ascenda?" |
É a isto também que João Batista se referia, quando, como que
resumindo em uma só frase os propósitos do Cristo que estava para
vir, assim o anunciava:
dizia João Batista,
"eu vos batizo com água,
para vos mover ao arrependimento;
mas depois de mim vem alguém,
que é maior do que eu,
que vos (purificará)
com o Espírito Santo e com fogo". |
Para expressar não apenas a intensidade, mas também a
superabundância da caridade que assim opera, Jesus em outra
ocasião se utilizou de uma comparação com a água:
disse Jesus,
"de seu seio correrão rios de água viva.
Dizia isto Jesus do Espírito Santo,
que haveriam de receber os que nele cressem". |
Nesta passagem a Sagrada Escritura diz o Espírito Santo ser
recebido porque se trata de uma caridade superabundante
manifestamente acima da capacidade humana, mesmo contando com o
auxílio da graça; algo assim não se pode dizer que proceda do
próprio homem; ao contrário, advindo-lhe de fora, deve, portanto,
ser dito recebido.
Diz ainda a Sagrada Escritura que quem é recebido é o
Espírito Santo, uma das três pessoas da Santíssima Trindade, não
porque seja o Espírito Santo, com exclusão das demais pessoas da
Santíssima Trindade, que move a alma humana a uma vivência
superior da caridade, mas porque se trata de um movimento
produzido por Deus em nossa alma que desempenha um papel análogo
ao do Espírito Santo na Trindade divina:
diz Tomás de Aquino,
"que as coisas que existem em nós
se reduzem em Deus
como em sua causa eficiente e exemplar;
em sua causa eficiente,
na medida em que
pela virtude operativa divina
algo é causado em nós;
em sua causa exemplar,
na medida em que aquilo que em nós
provém de Deus
é de algum modo algo que imita a Deus.
Ora, como a virtude do Pai, do Filho
e do Espírito Santo é a mesma,
assim como a mesma essência,
é necessário que tudo o que Deus produz em nós seja,
como de uma causa eficiente,
simultaneamente proveniente do Pai, do Filho
e do Espírito Santo.
O amor, porém,
pelo qual nós amamos a Deus,
é representativo próprio do Espírito Santo.
Assim, a caridade que há em nós,
ainda que seja efeito do Pai, do Filho
e do Espírito Santo,
todavia, por uma razão especial,
é dita estar em nós pelo Espírito Santo" (62).
|
Conforme já vimos acima, a caridade, qualquer que seja seu grau
de crescimento, só pode existir no homem infundida pela graça
divina; por causa disso, é correto dizer que qualquer homem que
ama a Deus pela caridade recebeu em sua alma ao Espírito Santo,
conforme o faz S. Tomás de Aquino:
"A caridade não pode existir
naturalmente em nós,
nem ser adquirida pelas forças naturais,
mas apenas pela infusão do Espírito Santo" (63).
|
No entanto, no melhor de suas passagens, a Sagrada Escritura e os
primeiros santos padres reservavam a expressão do dom do Espírito
Santo para designar aquela superabundância da caridade,
manifestamente sobrehumana, que é infundida no homem além de
todas as suas expectativas, quando ele se entrega "com todo o seu
coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com
todas as suas forças" àquela contemplação que procede da fé e da
caridade.
É assim, por exemplo, que Santo Antão, o iniciador da
vida monástica no deserto do Egito nos séculos III e IV, se
refere ao Espírito Santo em suas cartas:
"Meus filhos,
tomai este corpo de que estais revestidos,
fazei dele um altar,
e sobre este altar colocai os vossos pensamentos,
e sob o olhar do Senhor
abandonai todo mau desígnio,
elevai as mãos de vosso coração a Deus
e pedi-lhe que vos conceda
aquele grande fogo invisível
que sobre vós descerá do Céu
e consumirá o altar e suas oferendas.
Compreendei bem o que vos digo e vos declaro:
se cada um de vós não chega a odiar
o que é da ordem dos bens terrestres
e a isso renunciar de todo coração,
bem como a todas as coisas que daí dependem,
se não chega a elevar as mãos e o coração ao Céu
para o Pai de todos nós,
não é para si a salvação.
Mas se fazeis o que acabo de dizer,
Deus vos enviará um fogo invisível,
que consumirá vossas impurezas,
e devolverá vosso espírito
à sua pureza original.
O Espírito Santo habitará em vós,
Jesus permanecerá junto de nós,
e poderemos adorar a Deus como é devido" (64).
|
Do Espírito Santo disse também S. Diádoco, bispo de Fócia no
século V:
"Uma é a caridade natural da alma,
outra aquela que pelo Espírito Santo lhe é infundida.
Aquela que está em nós,
quando queremos,
se move com moderação
pelo afeto de nossa vontade;
por esta razão não é difícil para os espíritos malignos,
a não ser que nos defendamos com fortaleza,
que nos seduzam para os seus propósitos.
A divina, porém,
incendeia de tal forma a alma à caridade divina,
que vence e une entre si,
por uma infinita simplicidade e sinceridade do afeto,
todas as partes e a faculdades da alma
na bondade do desejo celeste.
A alma se torna uma fonte profunda
de caridade e de alegria,
como que grávida da graça celeste
e da virtude do Espírito Santo" (65).
|
S. Diádoco distingue neste texto uma caridade que ele chama de
natural de outra que é infundida pelo Espírito Santo. Esta
distinção não significa que apenas a segunda seja sobrenatural,
nem que a primeira não seja também infundida pelo Espírito Santo;
na verdade, ambas são sobrenaturais e infundidas pelo Espírito
Santo; entretanto, a segunda excede de tal maneira a primeira,
tão manifestamente sobrenatural e infundida pelo Espírito Santo
que ela é, que perto dela a primeira dá uma impressão de ser algo
conatural ao homem, embora de fato não o seja.
Do mesmo modo, embora todos os que nasceram para a
vida da graça pela caridade sejam filhos de Deus, pois pela graça
já participam da natureza divina, as Sagradas Escrituras chamam
de filhos de Deus de modo especial àqueles que receberam o
Espírito Santo neste grau tão eminente; de fato, diz São Paulo na
epístola aos Romanos que
"Todos aqueles que são conduzidos
pelo Espírito de Deus,
são filhos de Deus.
O próprio Espírito Santo atesta ao nosso espírito
que somos filhos de Deus". |
E o Evangelho de S. João diz que foi para isso que Jesus veio ao
mundo:
"A quantos o receberam
deu-lhes poder de se tornarem
filhos de Deus,
aos que crêem em seu nome,
e que não pelo sangue
nem pela vontade humana,
mas de Deus nasceram.
De sua plenitude,
todos nós recebemos,
graça sobre graça". |
Esta afirmação equivale à que faz S. Tomás de Aquino
quando, respondendo à pergunta a respeito de em que consiste o
Evangelho, ou a Nova Lei, responde que o Evangelho consiste, de
um modo especial, na graça do Espírito Santo:
"Cada coisa parece ser
aquilo que nela há de principal,
conforme diz Aristóteles no IX livro da Ética.
Aquilo, porém,
que é principalíssimo
na Lei do Novo Testamento,
e no qual consiste toda a sua virtude,
é a graça do Espírito Santo,
que nos é dada pela fé em Cristo.
Portanto, a Nova Lei é principalmente
a própria graça do Espírito Santo,
que é dada por Cristo aos fiéis.
Secundariamente, a Nova Lei consiste
também nos preceitos escritos,
que dispõem o homem para a graça do Espírito Santo,
como são as coisas que são necessárias saber
para manifestar a divindade e a humanidade de Cristo,
e as coisas que pertencem ao desprezo do mundo,
através das quais o homem se torna capaz da graça do Espírito Santo.
De fato, o mundo, diz a Sagrada Escritura,
isto é, aqueles que amam o mundo,
não podem receber o Espírito Santo (Jo. 14, 17)" (66).
|
Dissemos anteriormente que a Sagrada Escritura
descreve um outro modo de contemplação que está além daquele
descrito pelos filósofos gregos, que é proveniente principalmente
da caridade. Dissemos, ademais, que do encontro da caridade com a
fé se produzia apenas um início deste outro modo de contemplação.
Devemos agora dizer que é este modo supereminente de vivência da
caridade que é a causa próxima desta outra contemplação, descrita
pela ciência sagrada e que difere tão notavelmente daquela
descrita pelos filósofos gregos.
De fato, no Evangelho de S. João, Jesus prometeu aos
que seguissem os seus preceitos o conhecimento da verdade:
"Se permanecerdes nas minhas palavras", |
diz Jesus,
"sereis verdadeiramente meus discípulos;
conhecereis a verdade,
e a verdade vos tornará livres". |
Ora, a verdade é algo que pertence à inteligência, é algo que é
objeto de contemplação.
Mais adiante, porém, ele diz que se os apóstolos o
amassem, deveriam guardar os seus mandamentos, e com isto ele
lhes mandaria o Espírito Santo, a quem aqui ele chama, porém, de
Espírito da verdade:
"Se me amardes,
guardareis os meus mandamentos;
e eu pedirei ao Pai
e Ele vos dará outro consolador,
para estar convosco para sempre,
o Espírito da verdade,
que o mundo não pode receber". |
Portanto, o prêmio da prática dos mandamentos é a própria graça
do Espírito Santo, que aqui recebe o nome de Espirito da verdade.
Mais adiante, Jesus volta a falar sobre o assunto e
diz que chama ao Espírito Santo de Espírito da verdade porque ele
ensinará a verdade aos apóstolos:
"Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos,
mas por agora não estais em condições
de as compreender.
Quando, porém, ele vier,
o Espírito da verdade,
vos ensinará toda a verdade". |
O sentido de todas estas passagens é o seguinte: há uma verdade,
capaz de produzir a libertação do homem, objeto de uma
contemplação superior à descrita pelos filósofos, à qual somos
introduzidos por um modo supereminente de vivência da caridade
produzido em nós pela graça do Espírito Santo. Aqueles que se
esforçam em seguir os mandamentos de Jesus recebem esta graça do
Espírito Santo, vivem pelo Espírito e são por Ele introduzidos
nesta verdade.
Desta verdade Jesus disse diante de Pilatos:
"Para isto é que eu nasci,
e para isto é que vim ao mundo:
para dar testemunho da verdade". |
Mas Pilatos não entendeu nada; não percebeu o alcance das
palavras de Jesus; perguntou-lhe simplesmente:
mas não esperou para ouvir a resposta. Feita a pergunta, dizem as
Sagradas Escrituras, Pilatos "saíu novamente lá fora para falar
aos judeus" (Jo. 18, 38).
Na primeira epístola a Timóteo, S. Paulo também fala
da verdade, afirmando que
"Deus quer que todos se salvem
e cheguem ao conhecimento da verdade". |
O sentido primário da palavra verdade nesta passagem, entretanto,
não é inteiramente o mesmo que em Jo. 8. Por comparação com outros
lugares paralelos das epístolas paulinas, S. Paulo parece querer
se referir quando aqui fala da verdade ao conjunto dos
ensinamentos da fé tais como eram aceitos pelos homens que,
movidos pela graça, abraçavam o Cristianismo. A verdade admite
estas nuances de significado, sendo este um caso de analogia
idêntico ao da analogia do ser já descrita anteriormente neste
trabalho. Não são significados inteiramente distintos, mas graus
de uma mesma significação que uma idêntica palavra denota, que
existem inclusive dentro do próprio Evangelho de João. De fato,
em Jo. 17 Jesus diz, orando ao Pai,
"Manifestei teu nome aos que me deste,
e eles guardaram a tua palavra.
Dei-lhes a tua palavra;
santifica-os, (agora), na verdade.
A tua palavra é a verdade". |
Nesta passagem a verdade é a pregação da fé que Jesus havia feito
aos apóstolos. Dizendo ao Pai que havia dado aos apóstolos a "tua
palavra", Jesus diz que a pregação da fé é a palavra do Pai. Mas
ele também diz ao Pai:
"Todas as minhas coisas são tuas,
e todas as tuas coisas são minhas", |
de modo que, segundo Jesus, a palavra do Pai é também a palavra
do Filho.
Ora, em Jo. 8 lemos:
"Dizendo Jesus estas coisas,
muitos creram nele.
Disse pois Jesus aos que creram nele:
Se permanecerdes na minha palavra,
sereis verdadeiramente meus discípulos,
e conhecereis a verdade,
e a verdade vos tornará livres". |
Nesta outra passagem Jesus fala a pessoas que creram nele e que
permanecem em sua palavra. Segundo Jo. 17, portanto, estas pessoas
já deveriam possuir a verdade, pois ali se diz que a sua palavra
é a verdade. Mas aqui, em Jo. 8, Jesus promete àqueles que
permanecem na sua palavra que, se perseverarem, virão a conhecer
a verdade no futuro, de onde que se deduz que Jesus toma, mesmo
dentro do Evangelho de João, a mesma expressão em duas
significações diferentes. Não são, entretanto, significações
inteiramente distintas, pois a verdade que Jesus promete em Jo. 8
como coisa a ser conhecida não contém algo que já não estivesse
contido na verdade de Jo. 17. É, porém, da verdade de Jo. 8 que
Jesus afirma que tornará os homens livres, coisa apenas
imperfeitamente insinuada no contexto de Jo. 17.
Assim, quando fala da verdade, e que Deus quer que
todos os homens cheguem ao conhecimento da verdade, S. Paulo dá a
entender ter em mente um modo de ser da verdade que é apenas em
parte aquele de que fala Jo. 8. Isto, porém, não significa que as
expressões de S. Paulo, que admitem como algo anterior e
consumado a pregação do Evangelho, não suponham aquele
significado mais profundo que pode ser percebido claramente
quando Jesus, dialogando com uma samaritana, fêz afirmações muito
semelhantes às de S. Paulo. Falamos de um diálogo havido entre
Jesus e uma mulher samaritana descrito em Jo. 4, em que ambos
estavam conversando a respeito da água de um poço que havia nas
proximidades. Num certo momento do diálogo, porém, Jesus faz o
seguinte comentário que contém afirmações quase idênticas às de
S. Paulo, os termos, porém, sendo tomados segundo uma
significação mais profunda:
"Todo aquele que bebe desta água
de novo terá sede;
mas aquele que beber da água
que eu lhe der
nunca mais terá sede;
antes, a água que eu lhe der
se tornará nele
uma nascente de água jorrante
até a vida eterna.
Aproxima-se a hora, ó mulher,
e já estamos nela,
em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em Espírito e em verdade,
porque é assim que o Pai quer
os seus adoradores.
Deus é espírito,
e os que O adoram devem adorá-lo
em Espírito e em verdade". |
Não é outro o sentido deste diálogo e o de uma profecia de
Jeremias em que, com séculos de antecedência, este profeta
anunciou o estabelecimento da Nova Aliança que se faria por
intermédio do Cristo:
"Eis que virão dias,
- palavra do Senhor -,
em que estreitarei uma nova aliança
com a casa de Israel
e com a casa de Judá.
Esta será a aliança que estreitarei com Israel
depois daqueles dias,
diz o Senhor:
Porei minha lei nos seus corações,
e a imprimirei nas suas mentes;
eles me terão por Deus,
e eu os terei por meu povo.
Não necessitarão mais
estimular-se uns aos outros, dizendo:
`Conhecei o Senhor',
porque todos me reconhecerão,
pequenos e grandes,
diz o Senhor". |
Quando, muito tempo depois, Jesus veio ao mundo e se iniciou o
cumprimento desta profecia, João então pode testemunhar:
"Porque a Lei nos foi dada por Moisés,
a graça e a verdade
vieram por meio de Jesus Cristo". |
|