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A tradição cristã fala de um outro modo de
contemplação cuja diferença para aquela que é descrita pelos
filósofos pode, para alguns, parecer no início uma questão de
sutilezas; mas à medida em que ela se aprofunda, a distinção
torna-se cada vez mais evidente e inconfundível. Antes de serem
semeadas, há muitas sementes que parecem praticamente idênticas;
quando germinam, porém, ficam evidentes todas as diferenças que
se escondiam em cada uma delas já desde o início.
Esta contemplação de que nos fala a tradição cristã é
algo que pertence ao domínio da inteligência; à diferença da
contemplação dos filósofos, porém, ela nasce da virtude da
caridade. Apenas a caridade, porém, não poderia causá-la. Este
modo de contemplação se inicia quando a uma fé firme, constante e
pura se acrescenta uma caridade intensa; sua causa é mais a
caridade do que a fé.
Da existência deste modo de contemplação temos os mais
diversos testemunhos na tradição cristã.
No século V S. Diádoco de Fócia abre os seus Capítulos
sobre a Perfeição Espiritual com a seguinte afirmação:
"Toda contemplação espiritual é precedida,
como por condutores,
pela fé, pela esperança e pela caridade,
mas principalmente pela caridade.
De fato,
a fé e a esperança nos ensinam a desprezar
as coisas que se vêem.
A caridade, com elas,
une a alma às virtudes divinas,
investigando por um certo sentido da mente
as coisas que não podem ser vistas" (58).
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Do mesmo modo, no prólogo do Cântico Espiritual, S. João da Cruz
nos fala deste outro modo de contemplação que nasce da caridade:
"Embora falte a Vossa Reverência
o exercício da Teologia Escolástica
com que se entendem as verdades divinas,
não lhe falta o da Mística,
que se sabe por amor,
e em que não somente se sabem,
mas juntamente se gostam" (59).
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Nesta passagem, João da Cruz fala claramente de um conhecimento
que é causado não pelo exercício da própria inteligência, como
seria o caso da Teologia Escolástica, nem mesmo pelo exercício da
fé, que também reside na inteligência, mas de algo que reside na
vontade, que é o amor ou a caridade. Entretanto, em outro de seus
escritos faz afirmações de que se depreende não ser suficiente
apenas a caridade para produzir este modo de contemplação, sendo
necessária também a fé; de fato, na Subida do Monte Carmelo ele
repete sem cessar que a fé não é apenas um pressuposto da
caridade, isto é, apenas um meio de se chegar à caridade, mas que
também ela, isto é, a fé, juntamente com a caridade, e não apenas
através dela, é um
"meio próximo e proporcionado
para que a alma se una com Deus" (60).
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A existência de um modo de contemplação que procede do amor é
algo particularmente difícil de ser aceito por aqueles que se
habituaram ao estudo e aprenderam a conhecer as coisas apenas
através do exercício da inteligência. Quando o aceitam, porém,
pode também acontecer de com isto passarem ao extremo oposto,
isto é, o de buscarem um conhecimento que procede unicamente do
amor; entretanto, se este fosse o caso, isto é, se a contemplação
de que fala a tradição cristã não procedesse também de algum
componente intelectivo importante, não haveria tão numerosas
insistências no Evangelho a respeito da fé, mais até,
provavelmente, do que a respeito da caridade, embora fique claro
que a caridade é mais importante e que sem ela a fé é morta e de
nada vale. Se a contemplação cristã proviesse apenas da caridade,
e a fé fosse somente um pressuposto da caridade, teria bastado
que o Cristo tivesse apenas mencionado a fé uma vez ou outra, sem
necessidade de insistir tanto e a todo momento no assunto.
São Bernardo, monge cisterciense no século XII, também nos fala
da contemplação que nasce da caridade ao escrever uma carta a
Henrique Murdach, um professor que estava indeciso se ingressaria
para o Mosteiro de Claraval. São Bernardo lhe faz ver o modo de
vida que conduziam os monges em Claraval por contraposição à vida
apenas de estudo que o professor conduzia na Inglaterra:
diz S. Bernardo,
"que flutueis na oscilante corrente da fortuna,
se não conseguis firmar o pé no rochedo?
Se tomásseis uma resolução definitiva,
compreenderíeis o que está escrito:
`Os olhos não viram,
ó Deus,
além de Ti,
que coisas preparastes
para os que Te amam'. |
Dizem-me que estudais os profetas;
mas eu vos pergunto,
julgais compreender realmente o que ledes?
Em caso afirmativo,
decerto não ignorais
que quem desejar alcançar Cristo
será melhor sucedido seguindo os seus passos
do que lendo as seu respeito.
Por que deveríeis procurar na página escrita
a Palavra que agora se oferece
à vossa contemplação visivelmente?
Se provásseis aos menos uma vez
o belo trigo com que o Senhor inundou Jerusalém,
com que satisfação abandonaríeis então
aos judeus amadores da escrita
estas migalhas duras com que eles se contentam!
Prouvera a Deus que fôsseis meu condiscípulo
na escola do amor divino
em que Jesus é o mestre!
Com que agrado partilharia convosco
o pão celestial que,
ainda quente, fumegante e tenro do forno,
Cristo oferece freqüentemente aos seus pobres!
Acreditai em quem pode falar pela experiência.
Há muito mais que gostaria de dizer-vos;
porém, como necessitais agora
mais de preces do que de instrução,
que o Senhor vos abra o coração
na sua Lei e nos seus mandamentos
e vos mande em paz.
Adeus" (61).
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Não muito diferente desta carta é o diálogo travado entre Cristo
e o estudioso da Lei de Moisés quando da controvérsia sobre o
mandamento da caridade. Basta para ver isto examinar mais
atentamente o texto do Evangelho de S. Marcos.
Fizeram a Jesus uma pergunta a respeito da
ressurreição dos mortos. Um dos escribas que havia ouvido a
discussão, diz S. Marcos,
"reconheceu que Jesus respondera muito bem;
aproximou-se, então, de Jesus,
para submeter outra pergunta". |
O estudioso da Lei de Moisés, portanto, não se aproximou de Jesus
levianamente, levando-lhe uma pergunta para passar o tempo, como
quando Pilatos perguntou ao Cristo o que era a verdade, e foi
tratar de outros assuntos sem sequer esperar que Jesus
respondesse (Jo. 18, 38). Ao contrário de Pilatos, foi o respeito
motivado pelas respostas muito boas de Jesus que levou o
estudioso a submeter-lhe a sua pergunta; nestas circunstâncias
costumamos perguntar aquilo que, para a nossa alma, são as
questões mais importantes e com que mais nos preocupamos.
Então o estudioso perguntou a Jesus:
"Qual é o primeiro
de todos os mandamentos?" |
Sendo este homem um estudioso da Lei de Moisés, esta pergunta
tinha um sentido bem definido, que freqüentemente escapa ao
leitor moderno do texto dos Evangelhos. O estudioso da Lei de
Moisés, de fato, não está perguntando qual é o primeiro de todos
os mandamentos possíveis, mas qual é o maior de todos os
mandamentos mencionados nos cinco primeiros livros da Bíblia,
isto é, Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio,
conhecidos entre os rabinos judeus apenas como Torá, ou Lei, ou
ainda Lei de Moisés. A Lei, para os judeus, não eram as tábuas
dos dez mandamentos, mas todo o Pentatêuco, isto é, os cinco
primeiros livros das Sagradas Escrituras. Ora, do texto do
Pentatêuco podem ser extraídos mais de seiscentos preceitos
diversos. Moisés, porém, jamais tinha feito menção de qual fosse
o maior de todos. O que o estudioso queria saber de Jesus era,
então, qual entre aquela multidão de mais de seis centenas de
preceitos dados por Moisés fosse o mais importante de todos, uma
questão com que provavelmente ele deveria ter se ocupado durante
anos de longas reflexões. Para a surpresa do estudioso, porém,
Jesus, que sabia-se não ter sido um estudioso da Lei, não demorou
sequer um instante para refletir antes de responder; ele afirmou
que o maior de todos os preceitos era aquele que estava contido
no capítulo seis verso quatro do Deuteronômio; não mencionou de
fato a numeração de capítulo e versículo porque naquela época
esta numeração não tinha ainda sido codificada, mas citou
precisamente a passagem:
"O primeiro de todos os mandamentos
é o seguinte:
`Ouve, Israel,
o Senhor teu Deus é o único Deus,
e amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração,
com toda a tua alma,
com toda a tua mente,
e com todas as tuas forças'.
Este é o primeiro mandamento". |
A esta resposta Jesus acrescentou qual fosse o segundo
mandamento, coisa que o estudioso da Lei não lhe tinha
perguntado. Jesus encontrou o segundo maior de todos os
mandamentos no livro do Levítico, c. 19, 18:
"O segundo mandamento
é semelhante ao primeiro:
`Amarás o teu próximo
como a ti mesmo'.
Não há nenhum mandamento
maior do que estes dois",
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conclui Jesus.
Porém o mais extraordinário desta história é que ela não termina
aqui. O estudioso da Lei, ouvindo esta resposta de Jesus,
resolvendo um problema de Teologia Mosaica tão intrincado de um
modo tão seguro e tão brilhante, ficou extremamente maravilhado.
Provavelmente tratava-se de um judeu bastante sincero, não apenas
ouvinte da Lei, mas também praticante da mesma; anos de estudo e
de virtude devem te-lo conduzido aos poucos, senão à mesma
resposta que Jesus tinha dado, a alguma outra muito próxima da
dele. Quando ouviu Jesus responder deste modo, após ter ouvido
antes outras respostas bem dadas por Jesus a outros de seus
colegas, deve ter sido tomado de um visível contentamento.
Elogiou então a Jesus, não por adulação, mas com evidente
sinceridade:
"Muito bem, mestre,
disseste a verdade,
porque um só é Deus
e não há outro além dele,
e amá-lo de todo coração,
com toda a inteligência
e com toda a força,
e amar o próximo como a si mesmo
é algo maior do que todos os holocaustos
e todos os sacrifícios". |
Jesus, então, vendo o entusiasmo do comentário do estudioso,
percebendo que ele tinha assim respondido não para agradá-lo, mas
porque de fato assim o havia entendido e já havia começado a
entendê-lo antes mesmo do encontro que estava havendo entre
ambos, deu-lhe esta outra impressionante resposta:
"Tu não estás longe do Reino de Deus". |
Ora, Jesus não era alguém de contradizer-se. Ele já havia
afirmado no episódio de Marta e Maria que a contemplação era a
"melhor parte, aquela que jamais nos será tirada, na verdade, a
única coisa necessária" (Lc. 10, 38-42). No Sermão da Montanha ele
tinha exortado os homens a "buscarem em primeiro lugar o Reino de
Deus e a sua justiça, e todo o restante lhes seria
acrescentado" (Mt. 6, 33). Agora ele dizia que o maior de todos os
mandamentos era amar a Deus, e que aquele homem que tinha
compreendido isso não estava "longe do Reino de Deus". Nestas
três ocasiões, portanto, Jesus está se referindo a uma mesma
realidade.
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