12.

Estada de S. Domingos em Santa Sabina. S. Jacinto e o bem aventurado Ceslao entram para a ordem. O bem aventurado Reinaldo ungido pela Santíssima Virgem.

A Igreja de Santa Sabina, junto à qual habitavam os religiosos depois de deixarem S. Sixto, ficava sobre o Monte Aventino. Atesta uma antiga inscrição que fôra fundada sob o pontificado de Celestino I no principio do século quinto, por um sacerdote da Ilíria chamado Pedro. Erguiam-se seus muros sobre a parte mais alta e mais escarpada do monte, por cima do estreito canal onde murmura o Tibre quando se vai afastando de Roma, e as suas vagas batem contra os restos da ponte que Horácio Cocles defendeu contra Porsena. Duas ordens de colunas antigas suportam um teto sem ornamentos e dividem a igreja em três naves, terminando cada uma por um altar. Era a primitiva basílica em toda a glória da sua simplicidade. As relíquias de Santa Sabina, que sofrera o martírio por Jesus Cristo no tempo de Adriano, estavam depositadas debaixo do altar mor, tão perto do local do seu martírio quanto o permitira a tradição. Outras ossadas preciosas brilhavam ao lado das suas. A igreja ficava contígua ao palácio dos Sabelli, ocupado então por Honório III, e de onde fôra expedida a bula aprovando a ordem dos Pregadores. Das janelas dessa residência, uma parte da qual acabava de ser cedida a Domingos, alongava-se a vista pelo interior de Roma e fixava-se sobre as colinas do Vaticano. Duas sinuosas ladeiras conduziam à cidade: uma ia dar ao Tibre, a outra a um dos ângulos do monte Palatino, ao pé da igreja de Santa Anastácia. Era este o caminho que Domingos tomava para ir de Santa Sabina a S. Sixto. Nenhum outro caminho na terra conservou por mais tempo o rasto dos seus passos. Quase todos os dias descia ou subia a encosta, levando de um convento ao outro o ardor da sua caridade.

Quando o viajante entra em Santa Sabina, ainda hoje uma das obras primas de Roma, e examina com cuidado as suas devotas naves, observa em uma capela lateral uns frescos antigos. Um representa Domingos revestido do habito dos Pregadores, um mancebo ajoelhado diante. dele e, ao lado, outro mancebo estendido no chão. O rosto de ambos fica encoberto ao espectador, e contudo ambos lhe causam uma certa emoção. Estes dois mancebos são dois polacos, Jacinto e Ceslao Odrowaz. Acompanhando a Roma seu tio Ivo Odrowaz, bispo eleito de Cracóvia, e sendo levados a S. Sixto provavelmente pelo cardeal Ugolino, antigo condiscípulo de Ivo na Universidade de Paris, assistiram à ressurreição do jovem Napoleão. Pedira o bispo nessa ocasião a Domingos que lhe cedesse alguns Frades Pregadores para os levar consigo para a Polônia. Observou-lhe o santo que não tinha nenhum que conhecesse a língua e os costumes polacos, mas que se algum dos da sua comitiva quisesse tomar o hábito seria esse o melhor meio de propagar a ordem na Polônia e nos países do Norte. Jacinto e Ceslao ofereceram-se logo de seu motu próprio. Supõe-se que eram irmãos, e é fora de dúvida que pertenciam à mesma família. Os seus corações assemelhavam-se como a sua linhagem. Consagrados ambos a Deus pelo sacerdócio, honraram o seu Mestre aos olhos da sua pátria, e neles a mocidade parecia mais uma virtude. Jacinto era cônego da Igreja de Cracóvia, Ceslao prefeito ou preboste da Igreja de Sandomir. Tomaram ambos o hábito em Santa Sabina ao mesmo tempo que dois outros companheiros de viagem, conhecidos na historia dominicana pelos nomes de Henrique o Moravo, e Herman o Teutônico. A Polônia e a Alemanha, únicos países da Europa que ainda não haviam dado filhos à ordem dos Prégadores, vinham pagar-lhe nesse dia o seu tributo, sobre essa colina misteriosa que os Romanos não haviam incluído dentro do seu recinto sagrado e cujo nome significa vivenda de aves.

Quão grandes e simples são os caminhos de Deus! Ugolino Conti, italiano, e Ivo Odrowaz, polaco, encontram-se na Universidade de Paris. Passam ali juntos alguns dias da sua mocidade, depois o tempo que confirma ou destrói a amizade, como tudo o mais, abre entre os seus corações um abismo que dura quarenta anos. Ivo, promovido ao episcopado, é obrigado a ir a Roma, e aí encontra sob a púrpura o amigo de outros tempos. Levando o Cardeal um dia o seu hóspede à igreja de S. Sixto para lhe fazer conhecer um homem cujo nome nunca ouvira, nesse próprio dia a virtude desse homem brilha de improviso pelo ato mais elevado do poder, por um ato de soberania sobre a vida e a morte. Ivo, subjugado, pede a Domingos alguns dos seus Religiosos, sem sonhar que não fôra outrora a Paris e não viera agora a Roma senão para trazer a Domingos quatro nobres filhos do Setentrião, predestinados por Deus para fundar conventos de Pregadores na Alemanha, Polônia e Prússia e até mesmo no coração da Rússia.

Jacinto e seus companheiros demoraram-se pouco tempo em Santa Sabina. Assim que se acharam suficientemente instruídos nas regras da ordem, partiram com o bispo de Cracóvia. Quando passaram por Friesach, cidade da antiga Nórica, entre o Drave e o Murh, sentiram-se impelidos pelo Espírito Santo a pregar aí a palavra de Deus. Suas pregações transformaram completamente essa região. Animados pelo bom resultado, tiveram a idéia de nela erigir um convento. Conseguiram fazê-lo em seis meses e deixaram-no sob a direcção de Herman o Teutônico, já então muito conhecido. Voltando para Cracóvia deu-lhes o bispo, para dela fazerem um convento, uma casa de madeira que pertencia ao bispado. Foram essas as primícias da ordem nas regiões setentrionais. Ceslao fundou os conventos de Praga e Breslau e Jacinto, antes de morrer, fundou mesmo em Kiew casas dominicanas debaixo dos olhos dos cismáticos gregos e ao som das invasões bárbaras.

O Sul e o Norte pareciam querer disputar entre si a primazia de enviar a Domingos melhores operários. Havia em França um doutor célebre chamado Reinaldo, que ensinara o direito canônico em Paris durante cinco anos, e que era deão do cabido de Saint Aignan de Orleans. No ano de 1218 veio a Roma visitar o túmulo dos Apóstolos, propondo-se ir em seguida a Jerusalém para venerar o sepulcro do Senhor. Esta dupla peregrinação não era, porém, na sua idéia, senão o prelúdio de um novo modo de vida que resolvera abraçar.

"Inspirara lhe Deus
o desejo de abandonar tudo
para pregar o Evangelho,
e ele ia se preparando para esse
ministério sem saber ainda
de que forma o realizaria,
porque ignorava que se havia instituído
uma ordem de pregadores.

Ora, aconteceu que,
em uma conversa confidencial
que teve com um Cardeal,
abriu-lhe sobre este assunto o seu coração
dizendo-lhe que pensava em renunciar a tudo
para por toda a parte pregar a Jesus Cristo
em um estado de pobreza voluntária.

Então, disse-lhe o Cardeal:

`Pois acaba de se estabelecer
uma ordem cujo fim
é juntar a prática da pobreza
com a missão de pregar,
e está nesta cidade o fundador da nova ordem,
anunciando ele próprio a palavra de Deus'.

Reinaldo ouvindo isto apressa-se em procurar
o bem-aventurado Domingos
e a revelar-lhe o segredo da sua alma.
A vista do santo
e o encanto das suas palavras
atraíram-no.
Resolveu desde então entrar para a ordem.

Mas a adversidade que serve
para experimentar todos os santos projetos
não tardou que se metesse de permeio no seu.
Adoeceu tão gravemente que a natureza
parecia querer sucumbir aos assaltos da morte,
e os médicos desesperavam de o salvar.
O bem-aventurado Domingos,
aflito por perder um filho
de quem não chegara a gozar,
voltou-se para a divina misericórdia,
suplicando lhe com insistência,
como ele próprio o contou aos Religiosos,
que lhe não levasse um filho apenas concebido,
e que lhe concedesse vida ao menos por algum tempo.
Enquanto assim orava, a bem aventurada Virgem Maria,
Mãe de Deus e Senhora do mundo,
acompanhada de duas jovens de uma beleza sem igual,
apareceu a Reinaldo que estava acordado
mas consumido pelo ardor da febre,
e ele ouviu a Rainha do Céu dizer-lhe:

`Pede-me o que quizeres,
e eu to concederei'.

Ponderando sobre o. que havia de pedir,
uma das jovens que acompanhava
a bem aventurada Virgem
sugeriu lhe que nada pedisse,
mas que confiasse na vontade
da rainha das misericórdias,
ao que ele anuíu de boa vontade.

Então esta, estendendo a sua mão virginal,
ungiu-lhe os olhos, os ouvidos,
as narinas, a boca, as mãos,
os rins e os pés,
pronunciando ao mesmo tempo
certas palavras apropriadas a cada unção.

Eu nunca soube senão as palavras
referentes à unção dos rins e dos pés.

Disse pois ungindo-lhe os rins:

`Cinjo os teus rins
com o cordão da castidade',

e tocando-lhe nos pés:

`Unjo os teus pés para pregares
o Evangelho da paz'.

Mostrou-lhe em seguida
o hábito dos Prégadores e disse-lhe:

`Eis o hábito da tua ordem',

e desapareceu.

Reinaldo achou-se imediatamente curado,
ungido como o havia sido pela mãe
dAquele que tem o segredo de todas as curas.

Na manhã seguinte,
quando Domingos veio vê-lo
e lhe perguntou como se sentia,
respondeu que não tinha já doença nenhuma
e contou-lhe a sua visão.
Juntos e devotamente, como o julgo,
deram graças a Deus que castiga e que cura,
que fere e que sara as feridas.
Admiraram-se os médicos de umas melhoras
tão súbitas e tão inesperadas,
ignorando a mão que lhe déra o remedio".

B. Humberto
Vida de S. Domingos, n. 27.

Tres dias depois, estando Renaldo com Domingos e com um religioso da ordem dos Hospitaleiros, foi-lhe a unção milagrosa renovada na sua presença, como se a augusta Mãe de Deus ligasse a este acto uma importância considerável e desejasse realizá-lo perante testemunhas. Efetivamente Reinaldo era ali apenas o representante da ordem dos Pregadores, e a Rainha do céu e da terra contraía na sua pessoa uma aliança com a ordem inteira. Fôra o Rosário o primeiro sinal desta aliança, e como que o adorno da ordem no seu batismo: a unção de Reinaldo, indício de virilidade e de fortaleza, devia igualmente ser acompanhada de um sinal estável e comemorativo. Eis a razão porque a bem-aventurada Virgem, quando apresentou ao novo religioso o hábito da ordem, não lho apresentou como o traziam então, mas sim com uma alteração notável que carece de ser explicada.

Dissemos já que Domingos, por muito tempo cônego de Osma, continuara em França a trazer esse hábito, e adotara-o mesmo como o vestuário próprio da sua ordem. Consistia esse hábito de uma túnica de lã branca, coberta com uma sobrepeliz de linho, e por cima uma capa de lã preta. Ora, no traje que a Santíssima Virgem mostrou a Reinaldo, a sobrepeliz de linho fôra substituída por um escapulário de lã branca, isto é, por uma simples tira de fazenda, servindo para cobrir as costas e o peito e chegando de ambos os lados até à altura do joelho. Este traje não era novo. Faz-se menção dele na vida dos religiosos do Oriente, que por certo o adotaram como complemento da túnica, quando o trabalho ou calor os obrigavam a tirar a capa. Nascido no deserto de um sentimento de pudor, caindo como um véu sobre o coração do homem, o escapulário tornou-se na tradição cristã o símbolo da pureza e, por conseguinte, o hábito de Maria, a Rainha das Virgens. Ao mesmo tempo, pois, que Maria, na pessoa de Reinaldo, cingia os rins da ordem com o cordão de castidade, e preparava os seus pés para pregar o Evangelho da paz, dava-lhe no escapulário o sinal exterior dessa virtude dos anjos, sem a qual se torna impossível sentir e anunciar as coisas celestes.

Depois deste grande acontecimento, um dos mais célebres da antiguidade dominicana, Reinaldo partiu para a Terra Santa, de onde o veremos voltar um dia, e a ordem trocou a sobrepeliz de linho pelo escapulário de lã, que se tornou a parte principal e característica do seu vestuário. Quando o frade Pregador faz a sua profissão, só o escapulário é que é bento pelo superior que recebe os seus votos, e ele não pode por caso algum sair da sua cela sem o ter vestido, nem mesmo quando fôr para a cova.

Manifestou ainda a Santíssima Virgem por outra forma, na mesma época, a ternura maternal que sentia pela ordem.

"Uma tarde em que Domingos
ficara na igreja a fazer oração,
saiu de lá à meia-noite
e entrou no corredor ao longo do qual
estavam as celas onde dormiam os religiosos.

Quando acabou aquilo a que viera,
pôs-se de novo em oração
em uma das extremidades do corredor e,
olhando por acaso para a outra,
viu avançar três figuras de mulheres,
das quais a que estava no meio lhe pareceu
a mais formosa e a mais venerável.

As suas companheiras traziam
uma um vaso magnifico,
e a outra um hissope,
que ofereceu à sua soberana.

Esta ia aspergindo os religiosos
e fazendo o sinal da cruz sobre eles.

Quando porém chegou defronte da porta
de um certo religioso,
passou sem lhe deitar a benção.

Domingos, tomando nota de qual era,
avançou ao encontro da senhora
que estava deitando a benção sobre os religiosos,
e que já ia ao meio do corredor,
perto da lâmpada suspensa nesse lugar.

Prostrou-se a seus pés e,
se bem que já a tivesse reconhecido,
suplicou-lhe que lhe dissesse quem era.
Nesse tempo não se cantava
essa bela e devota antífona,
a Salve Regina,
nos nossos conventos de Roma;
só se recitava de joelhos
depois de completas.

A Senhora que deitara a benção
respondeu pois ao Bem aventurado Domingos:

`Eu sou aquela
que todas as tardes invocais,
e quando dizeis:

`Eia ergo, advocata nostra',

prostro-me diante do meu Filho
para obter a conservação desta ordem'.

Perguntou então o bem-aventurado Domingos
quem eram as duas jovens
que a acompanhavam,
ao que a bem-aventurada Virgem respondeu:

`Uma é Cecília
e a outra Catarina'.

Perguntou ainda o bem-aventurado Domingos
porque passara pela porta de um religioso
sem lhe deitar a benção,
e Ela respondeu-lhe:

`Porque não estava
em uma postura decente'.

E acabando a sua volta,
tendo aspergido e abençoado
o resto dos Religiosos, desapareceu.

O bem-aventurado Domingos
tornou a ir fazer oração
para onde estava antes e,
apenas começou,
sentiu-se arrebatado em espírito
para junto de Deus.

Viu O Senhor,
tendo à sua direita a bem aventurada Virgem,
e pareceu-lhe que Nossa Senhora
tinha um manto cor de safira.

Olhando em redor via diante de Deus
religiosos de todas as ordens
mas nenhum da sua.

Começou portanto a chorar amargamente,
e não se atrevia a aproximar-se do Senhor
nem de sua Mãe.

Nossa Senhora fêz-lhe com a mão
sinal que se chegasse.

Ele porém não ousava aproximar-se,
enquanto o Senhor por sua vez
lhe não fez também sinal.

Chegou-se então e prostrou-se diante deles,
chorando amargamente.

Disse-lhe o Senhor :

`Porque choras dessa maneira?'

Ele respondeu:

`Choro porque vejo aqui religiosos
de todas as ordens,
e não vejo nenhum da minha'.

E o Senhor disse-lhe:

`Queres ver a tua ordem?'

E Domingos replicou tremendo:

`Sim, Senhor'.

O Senhor pôs a mão sobre o ombro
da bem-aventurada Virgem,
e disse ao bem-aventurado Domingos:

`Entreguei a tua ordem à minha Mãe'.

E disse em seguida:

`Queres decididamente ver a tua ordem?'

Ele respondeu:

`Sim, Senhor'.

Nesse momento a bem aventurada Virgem
abriu o manto de que parecia estar revestida,
e estendendo-o ante os olhos
do bem aventurado Domingos,
de tal forma que chegava a cobrir
com a sua imensidade toda a pátria celestial,
fez-lhe ver debaixo dele
uma multidão dos seus Religiosos.

Prostrou-se o bem aventurado Domingos,
dando graças a Deus
e à bem-aventurada Virgem Maria, sua Mãe,
e desapareceu a visão.

Voltou a si e tocou a sineta para matinas,
e quando acabaram as matinas,
convocou os religiosos ao capítulo,
onde lhes fêz um magnífico discurso
sobre o amor e a veneração que deviam ter
pela bem aventurada Virgem,
e contou-lhes entre outras coisas a sua visão.

À saída do capítulo chamou à parte o religioso
a quem a bem aventurada Virgem
não tinha deitado a benção
e perguntou-lhe com doçura se ele
lhe não ocultara algum pecado,
porque este mesmo religioso
tinha feito confissão geral
ao bem aventurado Domingos.

Ele respondeu-lhe:

`Meu Santo Padre,
nada tenho sobre a consciência
senão que esta noite,
quando acordei achei-me a descoberto na cama'.

O bemaventurado Domingos contou ele mesmo
esta visão a Soror Cecília
e às outras freiras de S. Sixto,
como se ela se tivesse dado com outra pessoa;
mas os religiosos que se achavam presentes
deram a entender por sinais às freiras
que fôra a ele próprio que isso acontecera.

Foi nesta ocasião que o bem-aventurado Domingos
ordenou que os religiosos em toda a parte
onde se deitassem ficassem sempre
com um cinto e calçados".

Narração de
Soror Cecília, n. 7.

No segundo domingo da quaresma que se seguiu à transferência das Religiosas para S. Sixto, Domingos fêz-lhes uma prédica solene na igreja, em presença de grande concorrência de povo e expulsou o demônio do corpo de uma mulher que perturbava a assembléia com os seus gritos. Outra vez, apresentando-se na roda do convento sem ser esperado, perguntou à rodeira como estavam as irmãs Teodora, Tédrana e Ninfa, e recebendo por resposta que estavam com febre, disse à rodeira:

"Ide dizer-lhes,
da minha parte,
que lhes ordeno
que deixem de ter febre".

Narração de
Soror Cecilia, n. 9.

Com efeito a rodeira foi ter com elas e apenas lhes intimou a ordem do Santo, acharam-se curadas.

"Tinha por hábito constante o venerável Religioso
empregar o dia todo a ganhar almas,
quer por meio de assíduas pregações,
quer confessando,
ou por quaisquer outras obras de caridade.

De tarde vinha ao convento das Irmãs
e fazia-lhes na presença dos Religiosos
um discurso ou uma conferência
sobre os deveres da ordem,
porque elas nunca tiveram
outro mestre para as instruir.

Ora um dia tardou mais do que o costume,
e julgando as Irmãs que ele já não vinha,
concluíram as suas rezas
e voltaram para as suas celas.

Eis, porém, que de repente os Religiosos
tocam a sineta que dava sinal às Irmãs
de quando o bem-aventurado Domingos as vinha ver.

Foram com toda a pressa para a igreja e,
abrindo a grade,
já o encontraram sentado com os Religiosos,
esperando por elas.

O bem-aventurado Domingos disse-lhes:

`Minhas filhas,
venho da pesca
e o Senhor enviou-me um grande peixe'.

Dizia isto de frei Gaudion,
que recebera na ordem,
e que era filho único de um certo Alexandre,
nobre cidadão romano
e homem de uma grande distincção.
Fêz-lhes em seguida uma longa conferência
que as encheu de imensa consolação.

Depois disse-lhes:

`Seria bom, minhas filhas,
que bebêssemos alguma coisa'.

E chamando frei Rogério,
o guarda do celeiro,
ordenou-lhe que trouxesse
vinho e um copo.

Tendo-os o irmão trazido,
disse-lhe o bem aventurado Domingos
que enchesse o copo até acima.
Em seguida abençoou-o e bebeu ele primeiro
e depois todos os religiosos presentes.

Ora eles eram em numero de vinte cinco,
tanto clérigos como leigos,
e beberam quanto quizeram,
mas o copo ficou sempre cheio.

Depois de todos beberem,
disse o bem aventurado Domingos:

`Quero que todas as minhas filhas
bebam também'.

E chamando a irmã Núbia, disse-lhe:

`Pegai no copo
e dai de beber a todas as Irmãs'.

Foi ela com uma companheira
e pegou no copo cheio até acima,
sem que se entornasse urna só gota.

Bebeu primeiro a superiora,
depois todas as Irmãs,
tanto quanto quiseram,
repetindo-lhe a miúdo
o bem-aventurado Domingos:

`Bebei à vontade, minhas filhas'.

Eles eram então cento e quatro,
e todas beberam quanto quiseram,
e contudo o copo continuou a ficar cheio,
como se acabassem de lhe deitar o vinho,
e quando o tornaram a levar,
estava cheio até à borda.

Feito isto, disse o bem-aventurado Domingos:

`Quer o Senhor
que eu vá até Santa Sabina'.

Mas frei Tancredo,
superior dos Religiosos,
e frei Oto, superior das Irmãs,
assim como todos os religiosos
e a superiora e todas as Irmãs
se esforçaram por dissuadí-lo disso,
dizendo-lhe:

`Santo padre,
vai adiantada a hora,
é quase meta noite,
não é conveniente
que saiais daqui'.

Ele, porém,
recusou-se a ceder aos seus rogos,
dizendo:

`O Senhor quer absolutamente
que eu vá,
e Ele enviará conosco
o seu anjo'.

Escolheu pois para companheiros
frei Tancredo, superior dos Religiosos,
e frei Otto, superior das Irmãs,
e pôs-se a caminho.

Chegados à porta da igreja,
por onde haviam de sair,
eis que, conforme a promessa
do bem aventurado Domingos,
um mancebo de uma grande formosura
se apresentou a eles,
tendo na mão um bordão,
e pronto a caminhar.

Então o bem aventurado Domingos
fez passar adiante de si os seus companheiros;
o mancebo ia na frente e ele atrás,
e assim chegaram à porta
da igreja de Santa Sabina,
que acharam. fechada.

O mancebo que vinha com eles
empurrou um dos lados da porta
que se abriu imediatamente;
entrou ele primeiro,
em seguida os religiosos,
e depois de todos,
o bem-aventurado Domingos.
Saindo logo o mancebo,
a porta tornou-se a fechar.

Frei Tancredo disse
ao bem-aventurado Domingos:

`Santo padre,
quem era este moço
que veio conosco?'

E ele respondeu:

`Meu filho, era um anjo do Senhor,
que o Senhor nos enviou
para nos guardar'.

Entretanto tocou a matinas,
e os religiosos desceram para o coro
admirados de ali verem
o bem-aventurado Domingos
com os seus companheiros,
e ansiosos por saberem
como tinha entrado estando as portas fechadas.

Ora no convento havia um jovem noviço,
cidadão romano,
chamado irmão Tiago,
que vencido por uma tentação violenta,
resolvera abandonar a ordem depois de matinas,
quando se abrissem as portas da igreja.

Domingos, que disso tivera revelação,
chamou o noviço à saída de matinas,
e aconselhou-o com doçura a que não cedesse
às insídias do demônio,
mas que persistisse corajosamente
no serviço de Cristo.

O mancebo,
insensível aos seus conseIhos e rogos
levantou-se, despiu o hábito, e disse-lhe
que estava completamente resolvido
a ir-se embora.

O misericordiosíssimo superior,
movido de compaixão disse-lhe:

`Meu filho, esperai um momento
e depois fareis o que quiserdes'.

E pôs-se a rezar,
prostrado por terra.

Então se viram quais os méritos
do bem aventurado Domingos perante Deus,
e quão fácil lhe era obter dEle
tudo o que desejava.

Efetivamente,
ainda ele não tinha acabado a sua oração,
quando o mancebo se lança,
lavado em lágrimas,
a seus pés, suplicando-lhe
que lhe torne a dar o hábito,
que despira com a violência da tentação,
e prometendo-lhe que nunca mais deixaria a ordem.

O venerável superior
entregou-lhe então o hábito,
não sem o aconselhar mais uma vez
a que se conservasse firme no serviço de Cristo,
o que com efeito veio a acontecer,
porque este religioso viveu
por muito tempo na ordem
uma vida edificantíssima.

Na manhã seguinte o bemaventurado Domingos
voltou com seus companheiros para S. Sixto,
e os religiosos contaram na sua presença
a Soror Cecília e às outras freiras
o que se passara,
e o bem-aventurado Domingos
confirmou a sua narração, dizendo:

`Minhas filhas,
o inimigo de Deus queria roubar
uma das ovelhas do Senhor,
mas o Senhor livrou-o das suas mãos'.

Narração de
Soror Cecilia, n. 6.

No ano de 1595, durante o pontificado de Gregório XIII, tendo as religiosas de S. Sixto de deixar o seu retiro por causa da atmosfera doentia da campina romana, vieram-se estabelecer junto ao Quirinal, no novo mosteiro de S. Domingos e S. Sixto, trazendo consigo nessa emigração a imagem da Santíssima Virgem. S. Sixto, desmantelado e abandonado, ficou só, protegido pelas suas recordações. Nada ali atrai alguém; nem os mármores preciosos, nem os bronzes cinzelados, nem as colunas arrancadas à antiguidade profana pelo cristianismo, nem os quadros pintados sobre gessos imortais, nada enfim do que encanta os olhos. Quando o estrangeiro, voltando do túmulo de Cecília Metelia e do bosque da ninfa Egéria, entra em Roma pela via Ápia, avista à sua direita uma espécie de casebre grande e triste, dominado por um desses campanários pontiagudos, tão raros na perspectiva romana: passa por ele, porém, sem mesmo perguntar o seu nome. Que lhe importa S. Síxto o Velho? Aqueles mesmos que procuram com amor vestígios dos santos não conhecem o tesouro oculto dentro desses muros a que o tempo conservou a sua humildade. Passam pois, sem que cousa alguma os advirta, pelo local onde viveu um dos maiores homens do cristianismo, e onde operou tantos milagres. Subsistem ainda o pátio exterior, a igreja, as construções do mosteiro, a cerca e, até à revolução francesa, os mestres gerais da ordem conservaram ali aposentos. O papa Bento XIII, no século XVIII, tinha por costume ir ali passar alguns dias da primavera e outono, e restaurara a igreja que estava a cair em ruirias. Agora o corpo do mosteiro está ocupado por uma fábrica do Estado, à exceção daquela célebre sala do capítulo, onde Domingos ressuscitou três mortos. Levantou se um altar no próprio sitio, onde ele ofereceu o santo sacrifício pelo jovem Napoleão. A igreja é hoje uma das estações do clero romano, que na quarta feira da terceira semana da quaresma, vem ali celebrar o ofício solene do dia.

Santa Sabina teve melhor sorte. É verdade que desde o ano de 1273, durante o pontificado de Gregório X, deixou de ser a residência do mestre geral, que a transferiu para o convento de Santa Maria sopra Minerva no centro de Roma. O Aventino tornou-se assim. tão solitário como a via Ápia, e os próprios pássaros, seus primeiros hóspedes, já não o povoam. Uma colônia, porém, dos filhos de Domingos nunca deixou de viver à sombra dos muros de Santa Sabina, protegida também pela beleza da sua arquitetura. Vê-se na igreja, sobre um troço de coluna, uma grande pedra negra que, afirma a tradição, foi arremessada pelo demônio contra Domingos, para interromper as suas meditações da noite. Possui também o convento a estreita cela, onde às vezes se recolhia, a sala, onde deu o hábito a S. Jacinto e ao bem aventurado Ceslao e, num canto do jardim, uma laranjeira, plantada por ele, estende seus pomos de ouro à piedosa mão do cidadão e do viajante.