11.

Quarta viagem de S. Domingos a Roma. Fundação dos conventos de S. Sixto e de Santa Sabina. Milagres que acompanham estas duas fundações.

Domingos não partiu do Languedoc logo depois da dispersão dos Religiosos. A prova está num tratado que concluíu em 11 de setembro seguinte, relativamente aos dízimos que Foulques anteriormente lhe concedera. Era questão de saber até onde se estendia esse direito. Ficou assente que não se exigiria das freguesias cuja população fosse de menos de dez famílias, e escolheram-se árbitros para regular todas as dificuldades que pudessem surgir no futuro. Feito isto, Domingos galgou a pé, segundo o seu costume, a subida dos Alpes. Ia apenas acompanhado por Estevão de Metz. Perde-o a história de vista até Milão, onde o torna a encontrar à porta da colegiada de S. Nazário, pedindo hospitalidade aos cônegos. Estes receberam-no como um dos seus, por causa do hábito canônico de que se achava revestido.

O seu primeiro cuidado, assim que chegou a Roma, foi procurar um local próprio para a fundação de um convento. Do lado sul do monte Coelio, ao longo da via Ápia, em frente das gigantescas ruínas das Termas de Caracala, havia uma antiga igreja, dedicada a S. Sixto II, papa e mártir. Mais cinco papas, mártires como ele, descansavam ao seu lado nesse túmulo. De um lado da igreja, recentemente reedificada, via-se um claustro quase concluído. A solidão profunda da igreja e do claustro contrastava com os trabalhos recentes cujos vestígios se viam por todos os lados. Era evidente que ali um acontecimento inesperado interrompera a execução de uma idéia. Efetivamente, fôra a morte de Inocêncio III que suspendera a restauração desse sítio antigo e célebre. O claustro fôra por ele destinado para reunir, sob uma mesma regra, diversas religiosas que viviam em Roma em grande liberdade. Domingos, que ignorava essa circunstância, correu a pedir a igreja e o mosteiro ao soberano pontífice; Honório III fez- lhe concessão verbal deles.

Em três ou quatro meses juntou Domingos em S. Sixto uns cem religiosos. Nele sucedia uma fertilidade rápida e prodigiosa à morosidade que fôra sempre o característico do seu destino. Este homem, cuja verdadeira carreira só começara aos trinta e cinco anos, e que levara doze anos a arranjar dezesseis discípulos, via-os agora cair a seus pés como espigas maduras caindo sob a foice do segador. E nisto nada há de espantoso: por uma lei da graça e da natureza, acontece que uma força por muito tempo comprimida atua com impetuosidade quando chega a quebrar as suas prisões ou barreiras. De resto, em todas as coisas existe um certo período de maturação que faz conseguir um resultado tão pronto como inevitável. S. Sixto, situado sobre a estrada que outrora seguiam os conquistadores romanos para chegarem ao capitólio, foi durante um ano testemunha de cenas mais assombrosas do que os espetáculos aos quais os generais de Roma haviam acostumado a via Ápia. Em nenhum lugar nem em nenhuma época manifestou Domingos melhor a autoridade que Deus lhe dera sobre as almas, e nunca a natureza lhe obedeceu com mais reverente diligência. Foi este o momento triunfante da sua vida.

Primeiro que tudo, tornava-se preciso acabar o mosteiro. Enquanto se trabalhava nele, prosseguiu Domingos com as suas pregações nas igrejas e com as suas instruções no palácio do Papa. Todos os dias as suas palavras lhe atraíam algum novo discípulo,com que ele ia povoando a parte habitável do convento; saía de manhã com o seu bordão e voltava à noite com a sua presa, adiantando-se o edifício espiritual de S. Sixto ao mesmo tempo que se adiantava o edifício material. O demônio, cheio de inveja à vista de tão extraordinários progressos, quiz-lhes perturbar a alegria. Um dia, tendo os religiosos levado um arquiteto a ver uma abóbada que precisava ser deitada abaixo ou concertada, a abobada abateu-se sepultando o artista sob as suas ruínas. Apoderou-se uma grande angústia dos religiosos reunidos em volta dos escombros que cobriam o corpo do desgraçado; choravam sobre o estado incerto em que fôra surpreendida a sua alma, sobre os boatos desfavoráveis que se iam espalhar pelo povo, e a consternação tornou-os por muito tempo incapazes de tomarem uma resolução. Entretanto chega Domingos; faz retirar o corpo de debaixo do montão de pedras sob o qual jazia mutilado. Trazem-lho e ele implora Àquele que prometeu nunca recusar cousa alguma à fé. A vida, obedecendo à sua prece, vem reanimar os restos sanguinolentos estendidos diante dele.

De outra vez o procurador do convento, Jaime de Melo, caíu tão gravemente enfermo que lhe administraram os últimos Sacramentos. Os religiosos reuniram-se em volta do seu leito, protegendo com as suas orações a saída da sua alma, tristes por perderem um homem que lhes era extremamente necessário nessa ocasião, porque nenhum deles era tão conhecido em Roma como ele. Domingos, vendo o desgosto de seus filhos, manda que saiam todos do quarto; fecha a porta e, só com o doente, prorrompe numa tão fervorosa prece que retém nos lábios do moribundo a vida prestes a fugir-lhe. Em seguida chama os Frades, e entrega-lho são e salvo.

O cargo de procurador, de que estava revestido Jaime de Melo, consistia em prover com a ajuda da Providencia às necessidades imediatas de S. Sixto, porque o convento não possuía rendimentos. Vivia das esmolas recolhidas diariamente pelos Frades, de porta em porta. Uma manhã Jaime de Melo veio prevenir Domingos que não havia nada em casa para o jantar, a não ser dois ou três pães. Domingos pareceu encantado com esta notícia; mandou o procurador dividir o pouco que havia em quarenta porções, conforme o número dos religiosos, e que mandasse tocar para o jantar à hora do costume. Quando entraram no refeitório encontrou cada frade diante de si um pedacito de pão; recitaram-se as palavras da benção com ainda maior satisfação do que de costume e todos se sentaram. Domingos estava na mesa prioral com os olhos do coração erguidos para Deus. Após um momento de espera, aparecem no refeitório dois mancebos vestidos de branco, que adiantando-se até à mesa onde estava Domingos colocaram em cima dela uns pães que traziam envoltos nas suas capas.

Repetiu-se o mesmo milagre mais tarde com circunstâncias que devemos ouvir da própria boca da antigüidade:

“Quando os religiosos ainda viviam
ao pé da igreja de S. Sixto,
e eram em número de cem,
mandou um dia o bem-aventurado Domingos
o frei João da Calábria e frei Alberto Romano
pedir esmola pela cidade.
Porém debalde o fizeram
desde o meio dia até o pôr do sol.
Voltaram então para casa,
e estavam já perto da igreja de Santa Anastácia
quando uma mulher que tinha uma grande devoção
pela ordem os encontrou,
e vendo que nada traziam, deu-lhes um pão.

“Não quero”,

disse ela,

“que voltem com as mãos
completamente vazias”.

Um pouco mais longe
chegou-se a eles um homem
que lhes pediu com insistência uma esmola.
Desculparam-se de lha não dar,
por nada terem para si próprios.
Mas, continuando o homem a insistir,
eles disseram um para o outro:

“De que nos serve um pão?
Demos-lho pelo amor de Deus”.

Deram-lhe, pois, o pão,
e com isto perderam-no de vista.
Ao chegarem ao convento,
veio ao seu encontro o piedoso padre prior,
a quem o Espírito Santo já revelara
tudo o que se tinha passado
e disse-lhes com ar alegre:

“Filhos, não trazeis nada?”

“Não, padre”,

responderam eles.
E contaram
como tinham dado o pão ao pobre.
Disse-lhe ele :

“Era um anjo do Senhor;
o Senhor achará meio de dar alimento aos seus;
vamos fazer oração”.

Nisto entrou na igreja e,
saindo de lá ao cabo de algum tempo,
disse aos religiosos que chamassem
a comunidade para o refeitório.
Estes responderam-lhe:

“Mas santo padre,
como quereis que os chamemos
se não há nada que lhes dar?”

E de propósito demoravam-se
a cumprir a ordem que lhes fora dada,
a tal ponto que o bem-aventurado Padre
chamou frei Rogério, o procurador,
e ordenou-lhe que reunisse os frades para o jantar,
porque o Senhor proveria às suas necessidades.
Pôs-se então a mesa;
colocaram os copos e, dado o sinal,
todo o convento entrou no refeitório.
O bem-aventurado padre recitou a bênção e,
estando todos sentados,
frei Henrique Romano começou a leitura.
Entretanto o bem-aventurado Domingos orava,
com as mãos postas encostadas à mesa,
e eis que de repente,
conforme ele prometera
por inspiração do Espírito Santo,
dois formosos mancebos,
ministros da Divina Providência,
aparecem no meio do refeitório,
trazendo pães em duas toalhas brancas
que lhes caíam dos ombros por trás e por diante.
Começaram a distribuição pela ala inferior,
um pela direita e outro pela esquerda,
pondo diante de cada religioso
um pão inteiro de uma beleza extraordinária.
Em seguida,
quando chegaram ao bem-aventurado Domingos,
pondo da mesma forma diante dele um pão inteiro,
curvaram a cabeça e desapareceram
sem que até hoje se saiba
para onde foram nem de onde vieram.
O bem-aventurado Domingos disse aos Religiosos:

“Meus irmãos,
comei o pão que o Senhor vos envia”.

Em seguida disse aos irmãos conversos
que servissem vinho.
Estes, porém, responderam:

“Reverendo Padre,
não há nenhum”.

Então o bem-aventurado Domingos,
cheio do espírito de profecia, disse-lhes:

“Ide buscar a medida,
e servi aos Religiosos
o vinho que o Senhor lhes envia”.

Foram com efeito e encontraram a medida,
cheia até às bordas,
de um vinho excelente
que se apressaram em trazer.
E o bem aventurado Domingos lhes disse:

“Bebei, meus Irmãos,
do vinho que o Senhor vos envia”.

Comeram, pois,
e beberam quanto quiseram nesse dia,
no dia seguinte e ainda no outro.
Depois da refeição, porém, do terceiro dia,
mandou dar aos pobres
todo o pão e vinho que sobrou,
e não quiz que se guardasse
por mais tempo em casa.
Durante esses três dias
ninguém foi pedir esmola,
porque o Senhor lhes enviara
pão e vinho em abundância.
O bem-aventurado padre pregou em seguida
um tocante sermão aos religiosos,
aconselhando-os a que nunca desconfiassem da Providência,
ainda mesmo quando se encontrassem na maior penúria.
Frei Tancredo, superior do convento,
frei Oto o Romano, frei Henrique também Romano,
frei Lourenço de Inglaterra, frei Gaudêncio
e frei João o Romano e muitos outros
presenciaram este milagre,
contando-o eles depois à Irmã Cecília
e às outras Irmãs que viviam ainda
no mosteiro de Santa Maria de além Tibre.
Levaram-lhes mesmo uma porção
desse pão e desse vinho,
conservando-os elas muito tempo,
como relíquias.

Ora frei Alberto,
a quem o bem-aventurado Domingos
mandara pedir esmola com outro companheiro,
foi um dos dois religiosos cuja morte em Roma
fôra predita pelo Bem aventurado Domingos.
O outro era frei Gregório,
homem de uma formosura extrema
e de um espirito raro.
Frei Gregório foi o primeiro a reunir-se ao Senhor,
depois de receber devotamente os sacramentos.
Três dias depois, frei Alberto,
depois de também receber devotamente os sacramentos,
saía desta escura prisão para o celeste palácio”.

Narração de S. Cecília, n. 3.

Esta singela narração faz-nos penetrar no interior da família de S. Sixto, e transporta-nos melhor do que quaisquer descrições aos primitivos tempos da ordem. Por ela se vê como sem ouro nem prata se levantavam populosos mosteiros; como a fé supria a riqueza; e como era admirável a simplicidade desses homens muitos dos quais tinham vivido em palácios. Frei Tancredo, superior de S. Sixto, era um cavaleiro ilustre de nascimento que pertencera à corte do imperador Frederico II. Achava-se em Bolonha no princípio do ano de 1218 quando Domingos para lá enviou alguns frades, como a seu tempo veremos, e um dia, sem saber por que, começou a meditar no perigo que corria a sua salvação eterna. Perturbado com esta súbita lembrança, dirige uma prece à Santíssima Virgem; na noite seguinte a Virgem Maria apareceu-lhe em sonhos e disse-lhe:

“Entra para a minha ordem”.

Nisto acordou, mas tornou logo a adormecer. Neste segundo sono viu dois homens com o hábito dos Pregadores, e um deles, já velho, disse-lhe:

“Tu pedes à Santíssima Virgem
que te dirija no caminho da salvação;
vem viver conosco, e serás salvo”.

Gérard Trachet,
Vida dos Frades, L. IV, c. 14

Tancredo, que ainda não conhecia o hábito da ordem, julgou que tudo isto fôra uma ilusão. Levantou-se de manhã e pediu ao dono da hospedaria onde estava que o levasse a uma igreja para ouvir missa. O homem levou-o a uma pequena igreja, chamada Santa Maria de Mascarella, que fôra, havia pouco, concedida aos Pregadores. Apenas entrou encontrou dois frades num dos quais imediatamente reconheceu o velho que vira em sonhos. Pondo logo em ordem os seus negócios, tomou o hábito e veio ter com Domingos a Roma.

Frei Henrique, de quem também se trata na narração da irmã Cecília, era um nobre mancebo romano. Sua família, indignada por ele ter entrado na ordem, resolveu tirá-lo de lá à força. Domingos, avisado do seu intento, mandou retirar o mancebo com alguns companheiros pela via Nomentana. A família porém foi em seu alcance e chegou à beira do Anio quando Henrique acabava mesmo de o atravessar. Vendo-se ele prestes a cair nas suas mãos, elevou o seu coração a Deus e encomendou-se à sua proteção pelos merecimentos do seu servo Domingos. Imediatamente engrossaram a olhos vistos as águas da torrente e debalde tentaram atravessá-la os cavaleiros que estavam na outra margem.

Henrique, assim que eles se foram embora, voltou sossegadamente para S. Sixto. Frei Lourenço de Inglaterra, outra testemunha do milagre dos pães, era o mesmo que Domingos enviara para Paris, quando os religiosos se dispersaram. De lá voltara havia pouco com João de Navarra. Dois outros religiosos, Domingos de Segóvia e Miguel de Uzero, também voltaram de Espanha sem nada terem feito.

Entretanto Honório III prosseguia no projeto que o seu predecessor formara, de reunir num só mosteiro, sob a mesma regra, as religiosas espalhadas por diversos conventos de Roma, e deu parte disso a Domingos, como ao homem que melhor podia levar a cabo essa obra difícil. Domingos aceitou a proposta do papa, com tanta maior vontade quanto era um meio de restituir S. Sixto ao seu primitivo destino, estabelecendo ali uma comunidade de religiosas Dominicanas sobre o modelo de Notre-Dame de Prouille. Pediu somente para lhe associarem alguns cardeais afim de que estes com a sua autoridade protegessem a sua fraqueza. O papa indicou-lhe três: Ugolino, bispo de Óstia, Estevão de Fossanova, do titulo dos Santos Apóstolos, e Nicolau, bispo de Tusculum. E em troca do convento de S. Sixto deu-lhe a igreja e o mosteiro de Santa Sabina no monte Aventino, ao lado do seu próprio palácio. Faziam-se, portanto, ao mesmo tempo, preparativos em Santa Sabina e S. Sixto, em um para receber as freiras, em outro para se transferirem para lá os religiosos.

Domingos, ocupando-se deste duplo trabalho, não descontinuava por isso as suas pregações. Um dia em que devia pregar em S. Marcos, uma mulher, que tinha o filho doente, deixou tudo para o ouvir. Ao sair do sermão, achou a criança morta. A sua confiança foi tão rápida como a sua dor. Levou consigo uma criada para pegar na criança, e correu desvairada para S. Sixto, sem perder tempo em lágrimas. Quando se entrava no pátio de S. Sixto pela Via Ápia ficava à esquerda a igreja e o mosteiro, e em frente a porta de um quarto baixo e isolado a que se chamava o Capítulo. Domingos estava de pé junto a essa porta quando a desgraçada mãe chegou ao pátio. Vai direita a ele, pega na criança, põe-na aos pés do santo e com olhares e súplicas pede que lhe restitua o seu filho. Domingos entra por um instante no Capítulo, volta à porta, faz o sinal da cruz sobre a criança, abaixa-se, pega-lhe na mão, levanta-o vivo e entrega-o à sua mãe, ordenando-lhe que a todos oculte o que acaba de se passar. Mas a notícia espalhou-se imediatamente por toda Roma. O Papa quiz que do alto do púlpito se publicasse em todas igrejas este milagre. Opôs-se a isso Domingos, ameaçando que partiria para terras infiéis e abandonaria para sempre Roma. Nem por isso foi menor o brado que deu o milagre. A veneração que tinham já por ele chegou ao seu auge. Onde quer que aparecesse, seguiam-no nobres e povo, como se fosse um anjo de Deus; julgavam-se felizes em lhe poder tocar, cortavam-lhe pedaços da sua capa para guardar como relíquias, de forma que ela já lhe chegava apenas ao joelho. Às vezes os religiosos opunham-se a que lhe cortassem assim o seu fato; mas ele dizia-lhes:

“Deixai que o façam,
visto terem devoção nisso”.

Narração de S. Cecília, n. 1

Ora frei Tancredo, frei Oto, frei Henrique, frei Alberto e muitos outros presenciaram esse milagre.

Por mais resplandecente que fosse a santidade de Domingos, não chegava a remover todas as dificuldades que havia em reunir todas as religiosas romanas em S. Sixto. A maior parte recusavam-se a sacrificar a liberdade que haviam tido até ali de sair do claustro para visitar as suas famílias. Mas Deus veio em auxilio do seu servo. Havia em Roma um mosteiro de jovens, chamado Santa Maria de além Tibre, por causa da sua situação; nele se conservava uma das imagens da Santíssima Virgem atribuídas pela tradição ao pincel de S. Lucas. Esta tornara-se célebre e era venerada pelo povo, porque o papa S. Gregório o Grande suspendera o flagelo da peste levando-a em procissão pela cidade. Acreditava-se também que, havendo-a o papa Sérgio III colocado na Basílica de S. João de Latrão, ela voltara outra vez para a sua antiga morada. A abadessa desse mosteiro e todas as religiosas, menos uma, ofereceram-se voluntariamente a Domingos, e diante dele fizeram profissão de obediência, com a única condição de levarem consigo a imagem da Virgem Maria e que se a imagem abandonasse S. Sixto e voltasse outra vez para a sua primitiva igreja o seu voto de obediência ficaria nulo. Aceitou Domingos a condição, e em virtude da autoridade que acabavam de lhe dar, proibiu-as que tornassem a sair à porta do convento. Estas jovens eram da primeira nobreza de Roma, e logo que as suas famílias tiveram conhecimento daquilo a que se haviam comprometido e de todo este novo plano de reforma, vieram a Santa Maria para as dissuadir de cumprirem a sua promessa. Cegas de cólera, chamaram a Domingos um desconhecido e aventureiro. As suas palavras abalaram o ânimo das religiosas; muitas arrependeram-se do voto que haviam feito. Domingos, avisado interiormente do que se passava, foi vê-las uma manhã e, depois de ter celebrado missa e pregado um sermão, disse-lhes:

“Sei, minhas filhas,
que estais arrependidas da vossa resolução,
e que quereis abandonar o caminho do Senhor.
Aquelas, pois, que desejam continuar fiéis
que façam de novo profissão na minha presença”.

Relação de S. Cecília, n. 13

Então todas, com a abadessa à frente, renovaram o ato que as privava da sua liberdade. Domingos tirou as chaves do convento e instalou nele irmãos conversos, para o guardar dia e noite, com proibição das freiras de aí por diante falarem, a quem quer que fosse, sem testemunhas.

Estavam neste ponto as coisas quando os cardeais Ugolino, Estevão de Fossanova e Nicolau se reuniram em S. Sixto na quarta feira de cinzas do ano de 1218, isto é a 28 de fevereiro, caindo a Páscoa nesse ano a 15 de abril Por seu lado também ali se transportara a abadessa de Santa Maria do Tibre com as suas religiosas, para resignar solenemente o seu cargo e ceder a Domingos e aos seus religiosos todos os seus direitos sobre o convento.

“Estando pois o bem-aventurado Domingos
sentado com os cardeais,
achando-se presentes a abadessa e as suas religiosas,
eis que entra um homem arrepelando os cabelos
e soltando gritos lastimosos.
Perguntam-lhe o que tem,
ao que ele responde:

“Foi o sobrinho do Monsenhor Estevão
que caíu do cavalo abaixo e morreu!”

Ora o mancebo chamava-se Napoleão.
Seu tio, ouvindo esse nome,
caíu desfalecido sobre o peito
do bem-aventurado Domingos.
Ampararam-no e Domingos,
levantando-se,
deitou-lhe água benta;
deixando-o nos braços dos outros,
correu para o local onde jazia o corpo do mancebo,
todo mutilado e horrivelmente lacerado.
Ordenou que o transportassem para um quarto isolado
e que o fechassem lá dentro.
Disse depois a frei Tancredo
e aos outros religiosos
que preparassem tudo para a missa.
O bem-aventurado Domingos,
os cardeais, os frades, a abadessa e as religiosas
dirigiram-se para o lugar onde estava o altar,
e Domingos, com grande abundância de lágrimas,
começou a missa.

Quando porém chegou à elevação do Corpo do Senhor,
e que conforme o costume levantou a hóstia,
foi ele próprio arrebatado no ar,
à altura de um côvado,
vendo-o todos e todos cheios de assombro.
Acabada a missa,
voltaram para junto do corpo do defunto,
ele, os cardeais, a abadessa, as religiosas,
e todos que ali se achavam,
e quando chegou ao pé do corpo,
compôs-lhe os membros
um após o outro com as suas santíssimas mãos;
em seguida prostrou-se no chão,
orando e chorando.
Três vezes tocou na face e nos membros do defunto
para os pôr direitos,
e três vezes de novo se prostrou.
Quando se levantou pela terceira vez,
fêz o sinal de cruz sobre o morto e,
de pé do lado da cabeça,
com as mãos erguidas para o céu,
com o corpo arrebatado mais de um côvado do chão,
clamou em voz alta:

“Jovem Napoleão,
em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo,
levanta-te!”

Imediatamente, à vista de todos
quantos um tão assombroso espetáculo atraíra,
o mancebo levantou-se são e salvo,
e disse ao bem-aventurado Domingos:

“Padre, dai-me de comer e de beber”.

O bem-aventurado Domingos
deu-lhe de comer e beber
e entregou-o alegre
e sem o menor vestígio de ferimentos
ao cardeal seu tio.”

Narração de S. Cecília, n. 2

Quatro dias depois, no primeiro domingo de quaresma, as religiosas de Santa Maria de além Tibre, outras religiosas do mosteiro de Santa Bibiana e de diferentes conventos, como também algumas senhoras da sociedade, entraram para S. Sixto, onde S. Domingos lhes deu o hábito da ordem. Eram todas quarenta e quatro e entre elas havia uma religiosa de Santa Maria de além Tibre da idade de dezessete anos chamada Cecília. A ela devemos o conhecer os principais factos da vida do Santo Patriarca nessa época. Conservou-no-los ela em um relatório escrito sob a sua direção, que é uma obra prima de narração simples e verdadeira.

Na mesma noite do dia em que as religiosas entraram para S. Sixto, transportaram para lá a imagem de Santa Maria de além Tibre. De preferência se escolheu fazer isto de noite porque os romanos opunham-se a esta mudança. Domingos, acompanhado dos cardeais Estevão e Nicolau, precedido e seguido de muito povo com tochas acesas, levava a imagem sobre os ombros. Todos iam descalços. As religiosas em oração e descalças esperavam a imagem em S. Síxto em cuja igreja foi com felicidade inaugurada.

Todos estes fatos, compreendendo a viagem de França a Roma, se realizaram no espaço de cinco a seis meses, desde 11 de setembro 1217 até o princípio de março do ano seguinte. E contudo, apesar de tantas ocupações e deveres, Domingos ainda achava tempo para se entregar a obras de caridade particulares. Ia muitas vezes visitar as Reclusas, isto é, mulheres que se fechavam voluntariamente dentro de recessos nos muros e nunca saíam mais dali.

Encontravam-se pela cidade, nas encostas desertas do monte Palatino, nas profundidades das velhas torres de guerra, nos arcos quebrados dos aquedutos, sentinelas da eternidade postadas sobre essas ruínas. Domingos visitava-as ao pôr do sol; levava-lhes em seu coração um resto de forças que pusera de reserva para elas; depois de falar às turbas ia falar à solidão. Uma destas reclusas, chamada Lúcia, que vivia por tráz da igreja de Santa Anastácia, no caminho de S. Sixto, tinha um braço comido até ao osso por um cruel mal e devorador. Curou-a Domingos um dia com uma simples benção. Outra, que tinha o peito roído pelos vermes, morava numa torre defronte da porta de S. João de Latrão. Domingos confessava-a e trazia-lhe de vez em quando a Sagrada Eucaristia. Pediu-lhe ele uma vez que lhe deixasse ver um dos vermes que a mortificavam e que ela guardava em seu seio com amor, como hóspedes enviados pela Providência. Bona, assim se chamava, anuiu ao desejo de Domingos. Na mão do taumaturgo, porém, o verme transformou-se em uma pedra preciosa, e o peito de Bona ficou liso como o de uma criança.

Estava então Domingos em todo o esplendor da idade madura. O seu corpo, bem como a sua alma, haviam atingido esse termo da vida em que a idade ainda é uma perfeição e um encanto de vigor.

“Era de estatura mediana,
magro,
uma fisionomia doce um pouco corada,
o cabelo e barba de um loiro ardente,
e uns formosos olhos.
Saía-lhe da fronte
e através das pestanas
uma certa luz radiosa
que atraía o respeito e o amor.
Estava sempre alegre e amável,
exceto quando movido de compaixão
por alguma desgraça do próximo.
Tinha as mãos compridas e bem feitas,
e uma voz alta, nobre e sonora.
Nunca chegou a ser calvo,
e conservou a sua coroa religiosa perfeita,
apenas salpicada de raros cabelos brancos”.

Narração de S. Cecília, n. 14

Desta forma é que no-lo descreve Soror Cecília que o conheceu nos tempos heróicos de S. Sixto e de Santa Sabina.