10.

Nova assembléia dos Frades Pregadores em Notre Dame de Prouille, e a sua dispersão pela Europa.

Domingos partiu de Roma depois das festas da Páscoa do ano de 1218 e foi imediatamente reunir-se aos seus Religiosos. Estes haviam então atingido o número de dezesseis, a saber: oito franceses, sete espanhóis e um inglês.

Os franceses eram Guilherme Claret, Mateus de França, Bertrand de Garrigua, Tomás, Pedro Cellani, Estevão de Metz, Noel de Prouille e Oderico da Normandia. A história conservou-nos além dos seus nomes alguns traços que pintam o caráter da maior parte deles.

Guilherme Claret era natural de Pamiers, e um dos companheiros mais antigos de Domingos. O bispo de Osma, ao deixar a França, encarregara-o do governo temporal da missão do Languedoc. Conta-se que depois de consagrar à ordem mais de vinte anos da sua vida, fêz votos na Abadia de Bolbonne, pertencente aos Cistercienses, e quiz mesmo transferir para eles o mosteiro de Prouille.

Mateus de França passara a sua mocidade nas escolas de Paris. O conde de Montfort fê-lo prior de uma colegiada de cônegos, em Saint Vincent de Castres. Foi aí que Mateus conheceu Domingos e que, vendo-o um dia levantado, em êxtase no ar, se lhe entregou completamente. Foi ele o fundador do celebre convento de Saint-Jacques de Paris. O seu corpo aí jazia no coro, ao pé da cadeira que ocupara como superior do mosteiro.

Bertrand de Garrigua, assim chamado do lugar onde nasceu, pequena povoação de Languedoc perto de Alais, era um homem de uma austeridade extraordinária. Domingos aconselhou-lhe um dia que chorasse pouco sobre os seus pecados e muito sobre os dos outros. Na sua última viagem à Itália confiara-lhe o governo de Saint-Romain. Bertrand morreu em 1230, foi sepultado em Orange, em uma casa de religiosos, onde as suas relíquias operaram milagres. Estas foram transportadas em 1427, por ordem do Papa Martinho V, para o convento dos Frades Pregadores da mesma cidade.

Tomás era um cidadão distinto de Toulouse. Jordão de Saxe chama-o

“um homem cheio de graça e de eloquência”.

Vida S. Domingos, c. 1

Fêz-se discípulo de Domingos, no ano de 1215, ao mesmo tempo que Pedro Celani seu concidadão.

Pedro Celani, jovem, rico, respeitado, mais nobre ainda pelo coração do que pelo nascimento, entregou no mesmo dia a Domingos a sua pessoa e a sua casa. Foi o fundador do Convento de Limoges. Foi sempre tido em grande veneração até à sepultura, onde baixou no ano de 1259, depois de exercer nas épocas mais difíceis o cargo de inquisidor que lhe impusera Gregório IX.

Pedro de Metz vivia com Domingos em Carcassone desde o ano 1213. Foi o fundador do convento de Metz, e daí lhe vem o apelido pelo qual é conhecido na historia.

Nada se sabe de notável sobre Noel de Prouille.

Oderico da Normandia não foi padre; foi o primeiro frade converso da ordem.

Eis quais eram nessa época os elementos franceses da família dominicana. Posto que fracos em número, tiveram uma ação tão rápida e tão vasta que com verdade se pôde dizer da França que foi ela a mina e o crisol de onde saíram os Frades Pregadores. E' com jovens franceses que Domingos funda Notre-Dame de Prouille, berço da sua ordem; são dois franceses que, consagrando-se a ele, dão lugar a que se comece Saint- Romain de Toulouse; vemos Mateus de França fundar Saint-Jacques de Paris, e um outro francês, que nos é por enquanto desconhecido, São Nicolau de Bolonha. Estudando a predestinação da França, tal qual no-la revela a sua posição territorial, a sua história e a sua índole, é-nos fácil compreender a grande parte que Deus lhe dava na formação de uma ordem apostólica. Desse povo disse-se que era soldado; missionário é que se devia dizer, porque a sua própria espada é propagandista. Nenhum outro país contribuiu como este .para o aumento do domínio de Jesus Cristo no Ocidente, e desde as cruzadas o seu nome se tornara inseparável do nome de cristão na linguagem dos reinos do Oriente. No batismo recebera o dom de crer e amar com igual força, e uma magnífica posição, correspondente ao seu caráter, abria às suas conquistas todos os continentes do mundo. A França é uma nau cujo porto é a Europa, e que lança as suas ancoras em todos os mares. Podemos nós porventura admirar-nos que Deus a escolhesse para ser, na mão de S. Domingos, o instrumento principal de uma ordem destinada a uma ação universal? A Espanha todavia não foi infiel ao grande homem que criara no seu seio e, posto que toda entregue à sua paciente e gloriosa luta contra os antigos dominadores do seu solo, assim mesmo concorreu com mais de um soldado para o exército espiritual.

Foram eles os seguintes: Domingos de Segóvia, Lúcio Gomes, o bem aventurado Manés, Miguel de Fabra, Miguel de Usero, Pedro de Madri e João de Navarra.

Domingos de Segóvia foi um dos mais antigos companheiros do apostolado do Languedoc; Jordão de Saxe chama-o

“homem de uma perfeita humildade,
pequeno em ciência,
mas grande em virtude”.

Vida S. Domingos, c. 1

Conta-se dele que querendo uma mulher sem pudor experimentar a sua virtude, ele deitou-se no seu quarto no meio de tições ardentes e disse à tentadora:

“Se é verdadeiro o vosso amor,
eis o lugar e a hora.”

Ibid.

Suéro Gomes era um dos principais fidalgos da corte de Sancho I, rei de Portugal. A notícia da cruzada contra os Albigenses atraíra-o ao Languedoc onde serviu, como cavaleiro, à causa católica. Movido, porém, pela graça de Deus, reconhece que existe uma milícia melhor e tudo abandona para pregar Jesus Cristo e a sua palavra. Foi o fundador do convento de Santarém, que fica sobre o Tejo algumas léguas acima de Lisboa. O rei Afonso II honrou-o sempre com grandes provas de confiança. Morreu em 1233, glorificado com o título de Santo, por vários historiadores.

O bem aventurado Manés era irmão de S. Domingos. Ignora-se quando e como tomou o habito da ordem. Morreu em 1230, e foi sepultado em. Gumiel-d'Azan no túmulo dos seus antepassados.

Miguel de Fabra foi o primeiro leitor ou professor de teologia que a ordem teve. Ensinou no convento de Paris, foi confessor e pregador de Jaime rei de Aragão, e fundou os conventos de Maiorca e Valência. Os antigos escritores celebraram o seu zelo apostólico, os seus serviços na guerra contra os mouros, a sua assiduidade na oração e na contemplação e os seus milagres. Os seus restos foram primeiro enterrados na sepultura comum dos Frades de Valência; porém o superior, avisado por um milagre que os transportasse para um lugar mais digno, depositou-os com grande pompa numa capela do convento dedicada a S. Pedro Mártir.

A tradição nada nos transmitiu de notável sobre Miguel de Uzero e Pedro de Madrid.

João de Navarro nasceu em Saint-Jean-Pied-de-Port. Recebeu o hábito da ordem a 8 de agosto, dia da festa de Santo Agostinho. Foi o único dos primeiros companheiros de Domingos que serviu de testemunha no processo da sua canonização, e pelo seu próprio depoimento sabemos que muitas vezes o acompanhou e viajou com ele.

Finalmente a Inglaterra alia também uma gota do seu sangue ao sangue francês e espanhol desta primeira geração da dinastia dominicana, como se todos os povos marítimos da Europa devessem pagar-lhe o seu tributo. O inglês, companheiro de Domingos, chamava-se Lourenço.

Se foi grande o júbilo à chegada do pai de família, não foi menor o espanto quando se soube da resolução que trazia de os dispersar imediatamente a todos. Estavam todos persuadidos que ele os conservaria muito tempo na santa e estudiosa obscuridade do claustro. Não parecia haver a menor probabilidade de que ele quisesse quebrar a unidade de uma corporação ainda tão diminuta. E que se poderia esperar de uma mão cheia de homens dispersos pela Europa antes da fama da nova ordem os haver precedido? O arcebispo de Narbonne, o bispo de Toulouse, o conde de Montfort, todos os que se interessavam pela ordem recém-nascida, pediram encarecidamente a Domingos que não arriscasse o seu feliz êxito com uma prematura ambição do bem. Ele, porém, tranquilo e inabalável no seu propósito, respondeu-lhes:

“Meus senhores e pais,
não vos oponde a mim,
porque eu sei bem o que faço”.

Atas de Bolonha,
Depoimento de João de Navarro, n. 2

Pensava na visão da basílica de São Pedro, e soavam-lhe aos ouvidos. as palavras dos dois apóstolos :

“Ide pregar”.

Recebera ainda outro aviso sobre a próxima ruína do conde de Montfort. Vira em sonhos uma grande árvore que cobrindo a terra com os seus ramos dava abrigo às aves do ar, quando um golpe imprevisto, deitando-a de repente abaixo, dispersou todos os que se haviam acolhido à sua sombra. Quando é Deus que manda estes presságios misteriosos, junta-lhes uma certa luz que explica o seu sentido. Compreendeu Domingos que Montfort era a árvore cuja queda havia de derrubar as esperanças dos católicos, e que não era portanto prudente edificar sobre um túmulo. Uma superior sagacidade humana juntava-se a estas revelações e contribuía para o dissuadir do conselho dos seus amigos. A sua idéia era que o apóstolo se forma mais depressa na ação do que na contemplação, e que o meio mais seguro de atrair gente à sua ordem era estabelecê-la afoitamente no centro mesmo das agitações do espírito humano. Ele mesmo deu essa memorável razão aos seus discípulos sob uma figura tão engenhosa como apropriada:

“O grão”,

disse-lhes ele,

“frutifica quando o semeiam,
e estraga-se quando o guardam amontoado”.

Constantino de Orvieto, n. 21;
O B. Humberto, n. 26.

Três cidades governavam então a Europa: Roma, Paris e Bolonha. Roma pelo seu pontífice, Paris e Bolonha pelas suas universidades, que eram o ponto de reunião da mocidade de todas as nações. Foram estas três cidades que Domingos escolheu para serem as capitais da sua ordem. Não podia, porém, esquecer a sua pátria, embora esta não tivesse ainda entrado no movimento geral da Europa, nem abandonar o Languedoc, que tivera as primícias dos seus trabalhos. Vê-se, pois, qual era a tarefa que ele se propunha ao mesmo tempo e quais os elementos de que dispunha. Dezesseis homens pareciam-lhe suficientes para conservar Prouille e Toulouse, para tomar posse de Roma, Paris, Bolonha e Espanha. Nem ficavam ainda por aqui os seus projetos: aspirava, como vimos, a evangelizar os infiéis de além-mares, deixando desde logo crescer a barba à moda dos Orientais, para estar pronto ao primeiro vento favorável. Por efeito desta mesma previdência, desejava que os seus Religiosos elegessem canonicamente um deles, para tomar o seu lugar quando ele tivesse de partir. Estando deste modo tudo decidido na sua mente, e depois de gozar algum tempo da ventura de viver em comum com todos os seus, convocou-os a reunirem-se no mosteiro de Prouille, no .próximo dia da Assunção.

Nesse dia juntou-se uma imensa multidão de homens às portas da igreja de Prouille. A antiga devoção do sítio atraíra uma parte; outros fôra a curiosidade que ali os levara; a amizade e dedicação trouxe bispos, cavaleiros, e o conde de Montfort. Domingos celebrou o santo sacrifício nesse altar, tantas vezes testemunha das suas lágrimas secretas; recebeu os votos solenes dos seus Religiosos, que até aí apenas estavam ligados pela constância do seu coração, ou pelo menos apenas haviam feito votos simples, e no fim do discurso que lhes dirigiu, voltando-se para o povo, falou-lhe nos seguintes termos:

“Há muitos anos
que vos exorto inutilmente
com brandura, pregando,
suplicando e chorando;
mas, segundo o provérbio do meu país,
onde a benção nada pode,
pode alguma coisa o castigo.
Eis pois porque excitaremos contra vós
os príncipes e prelados,
que, ai de vós!
armarão contra este país
os reinos e as nações,
e um grande número perecerá pela espada;
as vossas terras serão devastadas,
as vossas muralhas derrubadas,
e vós todos, ó pesar!,
sereis reduzidos à servidão.
Deste modo prevalecerá o castigo
onde nada puderam a benção e a brandura”.

Estes adeuses de Domingos à terra ingrata que ele durante doze anos regara com os seus suores parecem um testamento formal contra aqueles que haviam um dia de profanar a sua memória. Para sempre determinou o caráter do seu apostolado, cuja força consistiria sempre na brandura, nas pregações, nas súplicas, e nas lágrimas. A profética ameaça neles contida lembra, pelo seu tom, essa célebre lamentação de Jesus Cristo sobre Jerusalém:

“Ai de ti,
se ao menos neste dia
que ainda te é dado,
tu conhecesses o que te pôde trazer a paz!
Mas agora essas coisas
estão ocultas aos teus olhos.
Virão dias em que teus inimigos
te rodearão de balas, e te cercarão,
e te perseguirão por todos os lados,
e te deitarão por terra,
a ti e às crianças que estão dentro de ti,
e não te deixarão pedra sobre pedra,
por isso que não conheceste
o tempo em que o Senhor te visitou”.

Lc. 19, 42-44.

Domingos não diz que há de ser ele que há de pessoalmente excitar contra eles os príncipes e os prelados; mas, não separando a sua pessoa da cristandade inteira, diz sob uma forma que implica uma solidariedade geral:

“Eis que nós excitaremos contra vós
os príncipes e prelados!”

Enquanto a ele, alheio a tudo que se faz na ordem da guerra e da justiça, gemendo sobre as desgraças futuras, retira-se puro de sangue, deixa a França, e com ela o teatro dos negócios e das batalhas; vai fundar conventos em Itália, França e Espanha e, de bordão de viajante em punho, com a sacola às costas, gastar nessas criações pacíficas os restos de uma vida já devorada pelo sacrifício.

Terminada a cerimônia pública, Domingos expõe aos seus Religiosos as suas intenções sobre cada um deles. Guilherme Claret e Noel de Prouille ficam no mosteiro de Notre-Dame-deProuille; Tomás e Pedro Celani em Saint-Romain de Toulouse. Destina à Espanha Domingos de Segóvia, Suéro Gomes, Miguel de Uzero e Pedro de Madrid. Paris teria três franceses, Mateus de França, Bertrand de Garrigua e Oderico da Normandia, três espanhóis, o bem-aventurado Manés, Miguel de Fabra e João. de Navarro e mais o inglês Lourenço. Reservara Domingos Estevão de Metz apenas para a fundação dos conventos em Roma e Bolonha. Antes de se separarem os Religiosos elegeram para abade Mateus de França, isto é, para superior geral da ordem sob a autoridade suprema de Domingos. Este título que inculcava uma certa magnificência, pela grandeza a que se haviam elevado os chefes das antigas ordens, concedeu-se só esta vez e extinguiu-se para sempre na pessoa de Mateus de França. Determinou-se que se daria o nome mais modesto de mestre àquele que fosse chamado ao governo geral dos Frades Pregadores.

Esta divisão do mundo entre alguns homens era já por si um espetáculo extraordinário; mas tornou-se muito mais ainda pelas suas circunstâncias. Os novos apóstolos partiram a pé, sem dinheiro, desprovidos de todos os recursos humanos, com a missão não só de pregar como também de fundar conventos. Apenas um deles, João de Navarra, recusou pôr-se a caminho nessas condições, e pediu dinheiro. Domingos, vendo um Frade Pregador que não confiava na Providência para os meios de viver, pôs-se a chorar, e lançou-se aos pés deste seu filho de tão pouca fé. Não podendo, contudo, vencer a sua falta de confiança em Deus, mandou que lhe dessem doze moedas de cobre. Resolvidas todas estas coisas, a 13 de Setembro, quatro anos dia por dia depois da batalha de Moret, o velho conde Raimundo tornou a entrar em Toulouse. A obra do abade de Cister estava aniquilada; a de Deus cumprira-se.