5.

Guerra dos Albigenses.

A guerra é o ato pelo qual um povo resiste à injustiça ainda que à custa do seu próprio sangue. Mas a guerra, assim como as mais santas coisas, pode-se desviar do seu fim e tornar-se um instrumento de opressão. Eis o motivo por que para se poder julgar do seu caráter num qualquer caso especial, precisamos conhecer o seu fim.

Até as cruzadas, a defesa do território e do governo legítimo de cada povo ocupara quase exclusivamente e avigorara a santidade das armas. O soldado morria nas fronteiras da pátria e este nome era o que mais exaltava o seu coração no momento do combate. Quando porém Gregório VII começou a despertar na mente dos seus contemporâneos a idéia de uma república cristã, alargou-se o horizonte da dedicação assim como o da fraternidade. Nasceu a cavalaria; a guerra tornou-se não somente um serviço cristão como também um serviço monástico. Tornou- se claro que toda alma batizada ficava sendo a serva do direito contra a força. Como o caçador armado e pronto presta o ouvido junto a uma ávore procurando saber de que lado está o vento, assim a Europa de então, de lança em riste e com o pé no estribo, aplicava toda a sua atenção em ver de que lado partia o som da injúia. Quer ele partisse do trono, quer da torre de um simples castelo, quer fosse preciso atravessar os mares para a alcançar, quer se achasse só à distancia que um cavalo percorre, ninguém se deixava prender nem pelo tempo nem pelo lugar, nem pelo perigo, nem pela dignidade.

Entre as causas fracas que a cavalaria cristã tomara sob a sua proteção uma havia, entre todas sagrada, e essa era a da Igreja. Não possuindo a Igreja nem soldados nem muralhas para se defender, estivera sempre à mercê dos seus opressores. Qualquer príncipe que lhe quisesse fazer mal, podia fazer-lho impunemente. Apenas, porém, se constituiu a cavalaria, logo tomou sob a sua protecção a cidade de Deus; porque em primeiro lugar a cidade de Deus era fraca, e depois porque a causa da sua liberdade era a causa própria do gênero humano. Estou persuadido de que hoje não existe pessoa alguma incapaz de apreciar esta ordem de sentimentos. A glória do nosso século, entre as suas muitas misérias, está no conhecimento de que existem interesses mais altos, mais universais do que os interesses da família e da nação. Qual o francês que não acompanharia com os seus votos, se não com a sua pessoa, um exército de cavaleiros atravessando a Europa em socorro da Polônia? Qual o francês, mesmo descrente, que não conta entre os crimes de que sofre esse ilustre país, a violência feita à sua religião, os seus bispos e padres exilados, a espoliação dos mosteiros, o roubo das igrejas e o martírio das consciências? Se a prisão arbitrária e o encarceramento do bispo da Polônia causaram uma tão viva comoção na Europa moderna, qual não seria a da Europa do século treze ao saber que um embaixador apostólico fora morto à traição com um golpe de lança?

Não era contudo este o primeiro acto de tirania de que a cristandade tinha de pedir contas ao Conde de Toulouse. Havia muito tempo que nos países dependentes do seu. domínio não existia segurança alguma para os católicos. Os seus mosteiros eram destruídos, as suas igrejas saqueadas e muitas transformadas por ele em fortalezas. Foram expulsos das suas sedes os bispos de Carpentras e de Vaison, e os católicos não conseguiam nunca que ele lhes fizesse justiça contra os hereges; todas as empresas do erro se colocavam sob a sua protecção, e ele ostentava pela religião esse insigne desprezo que, já por si, é num príncipe uma tirania. Um dia em que o bispo de Orange lhe veio suplicar que poupasse os Lugares Santos e que pelo menos se abstivesse nos domingos e dias santificados de praticar aqueles crimes com que se não cansava de oprimir a província de Arles ele, pegando na mão direita do prelado, disse-lhe:

“Juro por esta mão
que não respeitarei nem os domingos
nem os dias santificados,
e que não pouparei nem as pessoas
nem as coisas eclesiásticas.”

Cartas de Inocêncio III,
L.10, c.69

Por esse tempo infestavam a França tropas sem serviço regular, que reunindo-se em bandos numerosos, enchiam as estradas de roubos e assassinatos. Perseguidos por Felipe Augusto, encontravam nas terras do conde de Toulouse, seu vassalo, impunidade certa, devido ao ardor com que cooperavam nas suas empresas com as suas rapinagens e sacrílegas crueldades. Roubavam dos tabernáculos os vasos sagrados, profanavam o corpo de Jesus Cristo, arrancavam às imagens santas os seus ornamentos para com eles enfeitarem mulheres perdidas; arrasavam as igrejas, espancavam e feriam os padres, a muitos esfolaram vivos. Uma horrenda traição do príncipe deixava os seus súditos sem defesa contra uma tal perseguição de assassinos. Quando por último o conde de Toulouse, depois de tantos crimes de que fôra autor ou cúmplice, recebeu como amigo e cobriu de favores o assassino de Pedro de Castelnau, excedeu os limites e chegou o momento em que a tirania, devido aos seus próprios excessos, sucumbe por força.

Enganamo-nos muito todavia se supomos que era fácil à cristandade vencer o conde de Toulouse. A sua posição era formidável, como bem o provaram os factos. Raimundo VII morreu vitorioso sobre os seus inimigos depois de quatorze anos de guerras; legou o patrimônio de seus antepassados a seu filho, que o conservou até morrer, e este grande domínio só se veio a reunir à coroa de França pelo casamento de um irmão de S. Luiz com a filha única do conde Raimundo VII. A força desta casa provinha de muitas causas. Tomara grandes raízes no país pela sua antiguidade e uma bem merecida ilustração a recomendava ao afeto dos povos. A heresia, tornando-se quase geral, formara entre o príncipe e os seus súditos um novo laço que à medida que os apartava do resto da cristandade dava às suas relações comuns a força de uma liga religiosa. Os vassalos de todas as categorias participavam nos erros do seu suserano e a cobiça dos bens do clero fortalecia a sua comunidade de idéias pela comunidade de interesses. O resto dos católicos não eram nem bastante fervorosos nem em numero suficiente para enfraquecerem esse feixe tão unido de que o conde de Toulouse era o laço. Ele tinha além disso por fiéis aliados da sua causa os condes de Foix e de Comminges, o visconde de Béarn, o rei de Aragão Pedro II, cuja irmã desposara, e sentia-se ao abrigo do lado de Guienne de que estavam de posse os Ingleses. Felipe Augusto seu suserano, entretido com as suas disputas com a Inglaterra e com o Império, não podia ser o chefe da cruzada e, faltando-lhe este chefe, o único a temer, o exército dos cruzados composto de bandos desunidos não podia esperar senão vitórias passageiras e uma desorganização natural, ainda mais rápida do que as derrotas. Senhor de toda a linha dos Pirineus, tendo na retaguarda Aragão a defendê-lo, à direita e à esquerda dois mares inofensivos e, de roda, um grupo de cidades fortes todas defendidas por vassalos dedicados, o conde Raimundo tinha mil probabilidades de levar sempre vantagem aos seus inimigos. A guerra dos albigenses era pois uma guerra séria, em que as dificuldades morais excediam mesmo as dificuldades estratégicas. Pois, que se podia fazer desse país quando se estivesse senhor dele? Veremos o raro e magnânimo bom senso de Inocêncio III, continuamente avisado do abismo que ali existia, e um valente capitão, ao principio vitorioso, sucumbir ao peso das suas angústias, antes de encontrar a morte do soldado.

Assim que Inocêncio III teve conhecimento do assassinato de Pedro de Castelona, dirigiu urna carta aos nobres, aos condes, barões e cavaleiros das províncias de Narbonne, Arles, Embrun, Aix e Viena, em que depois de descrever eloqüentemente a morte do seu legado, declarava o conde de Toulouse excomungado, desligados os seus vassalos e súditos do juramento de obediência, a sua pessoa e os seus estados condenados pela cristandade. Previra todavia o caso em que o conde se arrependesse dos seus crimes e deixava-lhe uma porta aberta para, querendo, se reconciliar com a Igreja. Essa carta tem a data do dia 10 de março de 1208. O Soberano Pontífice escreveu em iguais termos aos arcebispos e bispos das mesmas províncias, ao arcebispo de Lião, ao de Tours, e ao rei de França. Associou ao abade de Cister, o seu único legado sobrevivente, Navarre bispo de Conserans, e Hugues, bispo de Riez, e encarregou particularmente o abade de Cister de com os seus religiosos pregar a cruzada. Tratara-se dos preparativos durante o resto do ano e da primavera do ano seguinte.

Entretanto, assustado com o que se estava passando, e sabendo que os bispos da província de Narbonne haviam delegado ao papa os seus colegas de Toulouse e de Conserans para o informarem detalhadamente dos sofrimentos das suas Igrejas, o conde Raimundo, por seu lado, enviou a Roma o arcebispo de Auch, e o antigo bispo de Toulouse, Rabenstens, encarregados de fazerem amargas queixas do abade de Cister e de dizer ao Soberano Pontífice que seu amo estava pronto a submeter-se e a dar satisfações se se lhe concedesse mais retos e justos legados. Anuiu Inocêncio III, mandando partir para França o notário apostólico Milon, homem de uma prudência consumada, com a missão especial de ouvir e julgar a causa do Conde. Milon convocou, em Valência, uma assembléia de bispos, onde Raimundo compareceu e aceitou as condições de paz que lhe foram propostas. Eram as seguintes: que havia de expulsar os hereges das suas terras, retirar aos judeus todos os empregos públicos, reparar os estragos que fizera nos mosteiros e nas Igrejas, restabelecer nas suas sedes os bispos de Carpentras e Vaison, velar pela segurança das estradas, nunca mais exigir impostos contrários aos antigos usos do país e purificar os seus estados dos bandos armados que os infestavam. Como penhor da sua sinceridade, Raimundo entregou nas mãos do legado o condado de Melgueil e mais sete cidades da Provença que lhe pertenciam, sob condição de perder a sua soberania sobre elas se faltasse à sua palavra. Combinou-se que a sua reconciliação solene com a Igreja teria lugar em Saint-Gilles, segundo as formas nesse tempo em uso. Estando o conde de Toulouse de boa fé, a penitência publica a que ele se sujeitava, longe de o rebaixar perante os seus contemporâneos e perante a posteridade, ganhar- lhe-ia ao contrário um título do respeito de todos os cristãos. Teodósio nada perdeu da sua gloria por Ambrósio ter obstado a sua entrada na catedral de Milão; só o crime nos desonra; a expiação voluntária, sobretudo num soberano, é uma homenagem que se tributa a Deus e à humanidade, exaltando aquele que se sente capaz de a fazer e tornando-o participante da invencível honra que está em Jesus Cristo crucificado. E' possível que o orgulho não compreenda o que acabo de dizer, mas isso que importa? Ha muito tempo que a cruz é senhora do mundo, sem que o orgulho tenha ainda podido descobrir a razão disso. Deixemos esse cego de nascença e repitamos a quem a pode compreender esta palavra dAquele que conquistou a terra e o céu com um suplício sofrido voluntariamente:

“Aquele que se exalta será humilhado,
aquele que se humilha será exaltado.”

Mt. 23, 12

Se, pois, o conde de Toulouse estivesse de boa fé, a penitência por ele aceita não teria senão atraído sobre ele a estima e interesse de todos. Os infelizes nunca chegam a conhecer o poder da arma que têm entre as mãos. O conde de Toulouse, porém, não estava de boa fé; fora unicamente a política que lhe arrancara promessas que se não sentia disposto a cumprir. Quando, portanto, à porta da abadia de Saint-Gilles, depois de jurar sobre as relíquias dos santos e sobre o próprio corpo do Senhor de cumprir tudo o que prometera, ele ofereceu os seus ombros nus ao castigo imposto pelo legado, não representou senão uma cena indigna de perjúrio e ignomínia. Aquilo, a que esse homem nunca, nem no último extremo, se devia ter sujeitado, sofreu-o sem desembainhar a espada. Uma circunstância memorável veio ainda agravar o seu castigo e comunicar-lhe um caráter de uma certa grandeza. Quando quis sair da Igreja, era tão compacta a multidão, que não pôde avançar um passo; indicaram-lhe então uma saída secreta pelos subterrâneos consagrados às sepulturas e assim passou nu e ferido por diante do túmulo de Pedro de Castelnau.

Poucos dias depois desta cena, que tivera lugar a 18 de junho de 1209, o legado Milon foi reunir-se em Lião ao exército dos Cruzados. Este tinha à sua frente o duque de Borgonha, os condes de Nevers, de Saint- Paul, de Bar, de Montfort, vários outros senhores de nota e alguns prelados. Inocêncio III ordenara que no caso do conde de Toulouse ser absolvido, se respeitasse o seu domínio direto, mas que marchassem contra os seus vassalos e aliados para os obrigar a submeterem-se. Avançou pois o exército para o Languedoc, e apenas chegara a Valence, quando o próprio conde Raimundo veio ao seu encontro, revestido com a cruz. Cercaram Beziers que, tomada de assalto e de improviso, foi vítima do furor dos soldados, sem distinção de idade, de sexo ou de religião. Os legados, nas suas cartas ao Soberano Pontífice, calcularam o numero de mortos em perto de vinte mil. Essa carnificina, que não fôra premeditada nem prevista, é um dos fatos que deu à guerra dos Albigenses um caráter que nenhum historiador é capaz de lhe tirar. A tomada de Carcassone seguiu-se logo à de Beziers. Os habitantes entregaram-se e tiveram a vida salva: a cidade foi posta a saque por prévia determinação. Difícil seria começar pior uma guerra mais justa no seu princípio.

Até aqui a alma e chefe da Cruzada fôra o abade de Cister. Depois dos sucessos de Beziers e de Carcassone, os Cruzados, muitos dos quais pensavam em retirar-se, julgaram oportuno eleger um chefe militar. Essa escolha foi confiada a um conselho, composto do abade de Cister, de dois bispos e de quatro cavaleiros, que a ninguém consideraram mais digno do comando do que a Simão de Montfort. Esse guerreiro, descendente da casa de Hainaut, nascera do casamento de Simão III, conde de Montfort e de Evreux, com uma filha de Roberto, conde de Leicester, e desposara Alice de Montmorency, mulher tão heróica como o seu nome. Não se poderia encontrar nem capitão mais arrojado nem cavaleiro mais religioso do que Simão de Montfort, e se às qualidades eminentes que brilhavam na sua pessoa ele tivesse juntado um maior fundo de desinteresse e doçura, não haveria cruzado nenhum do Oriente que o excedesse em glória. Apenas o nomearam para o comando geral quando se viu abandonado por todos. Os condes de Nevers e de Toulouse e o duque de Borgonha retiraram-se um atrás do outro, deixando a Montfort uns trinta cavaleiros e um número insignificante de soldados. Estas mudanças de fortuna eram vulgares neste gênero de expedições, onde cada um vinha e voltava à vontade.

E' claro que eu só quero descrever o projecto geral da guerra e das negociações; não é muito fácil distinguir qual o seu fim, porque dois planos forcejavam por dirigi-lo, o plano do abade de Cister e o do papa.

O plano do abade de Cister, de combinação com os principais bispos do Languedoc e dos paizes vizinhos, era acabar com a casa de Toulouse. Este plano era injusto e impolítico. Injusto, porque se Raimundo VI era merecedor da sua ruina, e se se tornava impossível no futuro fiarem- se nele, não acontecia o mesmo com seu filho, criança de doze anos, que nem era cúmplice dos crimes de seu pai, nem incapaz de uma educação católica sob uma tutela desinteressada. Era impolítico, porque era confundir a questão religiosa, sobre que a cristandade toda estava de acordo, com uma questão de família que podia vir causar a desunião; dando também uma aparencia de ambição a uma guerra empreendida com motivos mais puros. E' verdade que o abbade de Cister tivera a rara ventura de encontrar no conde de Montfort um homem talhado para o seu plano, e talvez não fosse senão depois de o ter visto à obra que ele concebesse a idéa de aniquilar a casa de Toulouse. Porém as qualidades guerreiras do conde de Montfort eram para os súditos e vassallos dessa casa apenas as qualidades de um inimigo, e o abade de Cister, querendo ir depressa com receio de não poder sempre dispor das forças de uma cruzada, devia saber que era preciso esse tempo, em que ele não confiava, para substituir no governo de um paiz uma família antiga por uma família nova; devia temer-se de transformar uma guerra católica numa guerra pessoal entre os Raimundo e os Montfort. Foi ao abuso que ele fez da sua autoridade, sustentando um plano vicioso, que são devidos os erros e as violências que tiraram à cruzada contra os Albigenses o caráter de santidade que, a outros respeitos, ela tinha.

Inocêncio III era um homem completamente diferente do abade de Cister. Estava, além disso, assente sobre essa cadeira previlegiada que, independentemente da eterna assistência do Espírito Santo, tem ainda a vantagem de se conservar estranha, pela sua própria elevação, às paixões que se insinuam mesmo às melhores causas. Ao passo que muitas vezes um zelo indiscreto procura incluir os homens na destruição dos erros, o papado esforçou-se sempre por salvar os homens ao mesmo tempo que destruía os erros. Inocêncio III não tinha o menor desejo de deitar abaixo a casa de Toulouse; não perdera mesmo a esperança de converter o velho Raimundo a sentimentos dignos dos seus antepassados. Nas cartas de excomunhão que lançara contra ele previra formalmente a hipótese do seu arrependimento, e imediatamente depois dos acontecimentos de Saint- Gilles apressara em recomendar que se não tocasse nos seus domínios. Porém o Papa não tinha ninguém em França que o secundasse nos seus generosos intentos, não pôde lutar contra a força dos acontecimentos e os seus esforços inúteis apenas serviram para honrar a sua memória. O próprio conde Raimundo, abandonando o sistema pacífico que ao princípio adotara, contribuiu para o triunfo dos inimigos da sua família e foi preciso que um braço supremo interviesse para de repente mudar a face das coisas.

Monfort, ainda que ficando com pouca gente, não deixou de avançar, de tomar cidades, de as perder e tornar a tomar, enquanto que o conde Toulouse, sossegado por se haver reconciliado com a Igreja, parecia não se inquietar com a queda de seus aliados e vassalos. Porém um concílio celebrado em Avignon pelos o metropolitanos de Viena, de Arles, de Embrun e de Aix, sob a presidência dos dois legados Hugues e Milon, veio tirá-lo do seu sossego. O concilio que abriu a 16 de setembro de 1208 dava-lhe um prazo de seis semanas para cumprir as promessas que fizera em Saint-Gilles, sob pena de ser excomungado. Raimundo, ao ser informado disso, partiu para Roma. Admitido à audiência do Santo Padre, que o recebeu com grandes testemunhos de afeição, queixou-se-lhe do rigor dos legados para com ele, apresentou atestados autênticos de varias igrejas que indenizara, declarando que estava disposto a executar o resto das suas promessas, pedindo para também se justificar do assassinato de Pedro de Castelnau e das inteligências que o acusavam de ter com os hereges. Animou-o o Papa nestes sentimentos, ordenando que se reunisse novo concilio de bispos em França, para ouvir a sua justificação, com esta cláusula expressa, que se o julgassem culpado ficasse a sua sentença reservada à Santa Sé. Raimundo, ao sair de Roma, visitou a corte do Imperador e a do rei de França, na esperança de encontrar neles apoio; não obteve porém o resultado desejado. Teve pois de se apresentar perante o concilio a que fôra entregue a sua causa e que se havia de reunir em Saint- Gilles nos meados de setembro do ano de 1210. Quis nele justificar-se das suas duas acusações, de inteligência com os hereges e de cumplicidade no assassinato de Pedro de Castelnau. O concílio recusou-se a ouvi-lo sobre esses dois pontos e apenas lhe pediu que cumprisse a sua palavra purificando os seus domínios dos hereges e da gente corrupta de que estavam infestados. Ou fosse porque não pudesse ou porque não quisesse satisfazer essa exigência, Raimundo voltou para Toulouse, persuadido que era inútil empregar astúcia e que dali por diante nada tinha a esperar senão da sorte das armas. O concílio, porém, absteve-se de o excomungar, porque o Soberano Pontífice havia reservado a sua sentença, e Inocêncio III contentou-se em escrever-lhe uma instante e afetuosa carta em que, sem ameaça de qualidade alguma, o exortava a cumprir o que prometera.

O Rei de Aragão interveio por seu lado para impedir um rompimento definitivo e a esse fim se realizaram duas conferências no inverno de 1211, uma em Narbone, outra em Montpellier. Na primeira, o conde de Toulouse rejeitou abertamente as condições que lhe haviam já sido propostas em Saint-Gilles; na segunda pareceu a princípio aceitá-las, mas depois de repente retirou-se sem prévio aviso. O Rei de Aragão, irritado com este procedimento, ajustou o casamento de seu filho de idade de três anos com uma filha da mesma idade do conde de Montfort e entregou a criança ao conde para ser educada sob a sua direcção. Porém, pouco depois, arrependeu-se, e deu sua irmã em casamento ao filho único de Raimundo, estreitando com esta aliança os laços que já tão intimamente o prendiam à causa da heresia.

Finalmente, o abade de Cister lança a excomunhão e envia um delegado ao Papa, para obter que ela fosse confirmada. Inocêncio III confirma-a. Raimundo prepara-se para a guerra, assegurando-se primeiro da fidelidade dos seus súditos e do auxílio de vários nobres, em especial dos condes de Foix e de Comminges. Repele Montfort que se apresentara em frente dos muros de Toulouse, e o próprio exercito Albigense vai acampar em frente de Castelnaudary. Uma batalha sangrenta força-o a levantar o cerco. Os Cruzados vencedores tomam cidades sobre cidades, invadem os estados de Foix e de Comminges; Raimundo parte para a Espanha a implorar auxílio do Rei de Aragão.

O que então se passou mostra quanto o Papa se sentia incerto e irresoluto. O rei de Aragão, antes de recorrer às armas para proteger seu cunhado, julgou oportuno tentar mais uma vez a via das negociações e enviou uma embaixada ao Soberano Pontífice, queixando-se do Conde de Montfort que se apoderara dos feudos dependentes da sua coroa, e ao mesmo tempo dos legados apostólicos que recusavam absolutamente a admitir o conde de Toulouse a cumprir a sua penitência. Inocêncio III, influenciado por estas queixas, dirigiu uma carta de censura ao seus legados e intimou-os a reunir um concílio composto dos bispos e nobres do país para deliberarem sobre os meios de estabelecer a paz. Ordenou ao conde de Montfort que restituísse ao Rei de Aragão e aos seus vassalos os feudos de que os despojara com receio, dizia,

“de que se pensasse que ele tinha combatido
mais pelos seus interesses do que pela causa da fé”.

Cartas de Inocêcio III,
L.15, C.211

Finalmente, resolveu suspender a Cruzada manifestando essa intenção numa carta particular dirigida ao abade de Cister, criado pouco tempo antes arcebispo de Narbonne.

Mas enquanto essas cartas datadas do principio do ano 1213 estavam em caminho, reunira-se um concílio em Lavaur, a pedido do rei de Aragão, que, num requerimento escrito, rogara aos legados e bispos que tornassem a entregar aos condes de Toulouse, de Comminges e de Foix, assim como ao visconde de Béarn, as terras de que os haviam despojado e que os reintegrassem na comunhão da Igreja dando eles todas as satisfações que se lhes exigissem. No caso de recusa de parte do velho Raimundo o rei solicitava, em favor de seu filho, a justiça do concílio. O concílio decidiu que nunca mais se admitisse justificação alguma da parte do conde de Toulouse, porque ele faltara constantemente à sua palavra, mas que se aceitasse a penitencia dos condes de Foix, de Comminges e do visconde de Béarn, logo que estes o desejassem. Julgando o rei de Aragão, por esta resposta, que existia um propósito fixo contra a casa de Toulouse, declarou abertamente que apelava para a clemência da Santa Sé contra o inexorável rigor dos legados e bispos e que tomava sob a sua real proteção o conde Raimundo e seu filho. Este príncipe não podia ser suspeito de heresia, pois submetera o seu reino à Igreja Romana, na qualidade de feudo apostólico e servira valentemente a cristandade contra os mouros de Espanha. O peso do seu nome e da sua espada punha por conseguinte tudo em grande perigo. O concílio de Lavaur expediu, sem perda de tempo, quatro delegados ao Soberano Pontífice com uma carta cujo fim era persuadi-lo que a causa católica estava perdida, se não privassem para sempre dos seus domínios ao conde de Toulouse e aos seus herdeiros. Os arcebispos de Arles, de Aix e de Bordéus; os bispos de Maguelonne, de Carpentras, de Orange, de Saint-Paul-Trois-Chateaux, de Cavaillon, de Vaison, de Bazas, de Béziers e de Périgneux escreveram no mesmo sentido ao Santo Padre. Inocêncio III queixou-se de haver sido enganado pelo rei de Aragão; ordenou-lhe que desistisse da sua empresa, que concluísse umas tréguas com o conde de Montfort, e que esperasse a chegada de um cardeal que ele lhe enviaria.

Mas a sorte já se havia pronunciado. O rei reunira um exército na Catalunha e em Aragão e, atravessando os Pireneus, veio juntar as suas tropas às dos condes de Toulouse, de Foix e de Comminges.

Estava Montfort em Fanjeaux, quando soube que o exército aliado composto de quarenta mil homens de infantaria e de dois mil de cavalaria avançava sobre Muret, praça importante situada sobre o Garonne, a três léguas acima de Toulouse. Foi esse o momento sublime da sua vida. Tinha apenas sob o seu comando oitocentos cavaleiros e um pequeno corpo de infantaria; mas partiu imediatamente para Muret. Era manhã quando se pôs a caminho acompanhado dos seus soldados e dos bispos de Toulouse, de Nîmes, de Uzès, de Lodève, de Beziers, de Agde, de Comminges e de três abades de Cister. Chegando nesse mesmo dia ao mosteiro de Bolbonne, pertencente à ordem de Cister, entrou na Igreja, orou por largo tempo e, colocando a sua espada sobre o altar, tornou a pegá-la, dizendo:

“Senhor que me escolhestes,
apesar da minha indignidade,
para combater em vosso nome,
pego hoje na espada
que aqui coloquei sobre este altar
a fim de receber de Vós
as minhas armas,
visto ser por Vós
que vou combater!”

Pedro de Vaulx-Cernay
História dos Albigenses, Cap.71

Em seguida marchou para Saverdun e aí passou a noite. No dia seguinte confessou-se, escreveu o seu testamento e mandou-o ao abade de Bolbonne, pedindo-lhe que o transmitisse ao Soberano Pontífice se acontecesse ele morrer. De tarde atravessou o Garonne, sobre uma ponte, sem ser molestado, e parou atrás das torres de Muret, guardadas por uns trinta cavaleiros. Era na manhã de quarta-feira 12 de setembro de 1213. Antes de entrar na cidade alcançaram-no os bispos, que o haviam largado um instante, para ir ao campo dos inimigos pedir a paz. O rei de Aragão porém respondera-lhes que não valia a pena um rei e uns bispos terem uma conferência, por causa de um. punhado de gladiadores. Apesar do mau resultado dessa tentativa, apenas raiou a aurora, os bispos encarregaram um religioso de prevenir o Rei que eles e todas as ordens eclesiásticas iriam descalços rogar-lhe que mudasse de resolução. Quanto se não havia então o conde de Toulouse de ter arrependido do seu perjúrio e das suas humilhações sem resultado. Como se havia de exprobrar por não ter desde o princípio recorrido a uma guerra leal e valorosa, em lugar de deixar esmagar os seus amigos e desonrar a sua causa! Ele, porém, iludia-se; a guerra, do mesmo modo que a astúcia, havia de lhe ser funesta. Deus lia no coração desse príncipe e não se comovia com a sua sorte.

Dispunham-se os bispos a sair de Muret, em traje de suplicantes, quando um corpo de cavaleiros inimigos se precipitou em direção às portas. Montfort deu ordem aos seus que se dispusessem em linha de batalha na parte baixa da cidade. Ele próprio vestiu a sua armadura depois de orar numa igreja, onde o bispo de Azas estava oferecendo o santo sacrifício. Voltou ali de novo depois de armado e, ao dobrar o joelho, rebentaram as ligaduras que prendiam a parte superior da sua armadura. Notou-se também que no momento em que ele punha o pé no estribo o seu cavalo, levantando a cabeça, feriu-o. Estes presságios não perturbaram o coração do cavaleiro, posto que em geral homens dessa têmpera se mostrem sensíveis a eles. Pôs-se a caminho em direção às suas tropas seguido de Foulques, bispo de Toulose, que levava o crucifixo na mão. Os cavaleiros desmontaram para adorar o seu Salvador e beijar a sua imagem. Mas o bispo de Comminges, vendo o tempo a passar, tomou o crucifixo das mãos de Foulques, e subindo a um ponto elevado, dirigiu uma curta alocução às tropas e abençoou-as. Depois do que todos os eclesiásticos presentes foram para a igreja fazer oração e Montfort saiu da cidade à testa de uma força de oitocentos cavaleiros, sem infantaria.

À frente do exército aliado estendia-se por uma planície ao ocidente da cidade. Montfort, que saíra por uma porta oposta, como se quisesse fugir, dividiu a sua gente em três esquadrões e foi direto ao centro do inimigo. A sua esperança, depois da que punha em Deus, era cortar pelo meio as linhas dos aliados, lançar no meio deles a desordem e o pânico pela audácia do seu ataque e aproveitar-se de todos os acasos da sorte que a penetração de um grande capitão sabe discernir no meio dos horrores de um combate. Foi o que sucedeu. O primeiro esquadrão desbaratou a vanguarda inimiga e o segundo rompeu até às últimas filas onde se achava o rei de Aragão rodeado da fina flor das suas tropas; Montfort, que seguia de perto com o terceiro, atacou pelo flanco os aragoneses já em desordem. A sorte pareceu hesitar aqui um pouco e o tempo urgia, porque os esquadrões, que haviam atravessado com tão feliz resultado, estavam mais depressa atordoados do que destroçados, e podiam esmagar Montfort pela retaguarda. Um golpe que atirou por terra morto o rei de Aragão decidiu a batalha. Os gritos e a fuga dos aragoneses arrastam o resto do exército na sua derrota. Os bispos que, cheios de angústia, oravam na igreja de Muret, uns rojando a fronte no chão, os outros com as mãos erguidas para o céu, são em breve atraídos às muralhas pelos gritos de vitória e vêem a planície coberta de fugitivos querendo escapar das terríveis mãos dos cruzados. Um corpo de tropas que tentava tomar a cidade de assalto depõe as armas e é desbaratado ao tentar fugir. Entretanto Montfort, voltando de perseguir os vencidos através do campo de batalha, deu com o corpo do rei de Aragão estendido no chão já despojado e nu. Desceu do cavalo e beijou, derramando copiosas lágrimas, os restos lacerados desse infeliz príncipe. Pedro II, rei de Aragão, fora um valente cavaleiro, querido dos seu súditos, um verdadeiro católico, digno de outra morte. Os laços que uniam as suas duas irmãs aos dois Raimundos levaram-no a defender uma causa que ele considerava não já a da heresia, mas sim a da justiça e do parentesco. Sucumbiu nela por um secreto juízo de Deus, quem sabe se por desprezar os rogos dos bispos, ou por no seu íntimo ter abusado de uma vitória que já reputava ganha. Montfort, depois de tratar da sua sepultura, entrou em Muret descalço, dirigiu-se para a igreja a fim de agradecer a Deus a sua proteção e deu aos pobres o cavalo e a armadura com que pelejara. Esta memorável batalha, fruto de uma consciência que se sentia certa de combater por Deus, há de ser sempre tida como um dos mais belos actos de fé praticados pelos homens sobre a terra.

Estava então Domingos em Muret com os sete bispos que nomeamos e os três abades de Cister. Dizem os historiadores modernos que ele marchara à frente dos combatentes, com a cruz na mão; em Toulouse mesmo mostrava-se na casa da inquisição um crucifixo crivado de setas que diziam ser o que ele assim levara, na batalha de Muret. Os historiadores contemporâneos, porém, nada dizem disso; afirmam, ao contrário, que Domingos ficara na cidade em oração com os bispos e os religiosos. Bernardo Guidonis, um dos autores da sua vida, que habitou a casa da inquisição de Toulouse desde 1308 até 1322, não faz a menor menção do crucifixo que mais tarde ali se mostrava.

A batalha de Muret foi o golpe mortal dado à causa do conde de Toulouse. Os seus aliados e os habitantes da sua capital submeteram-se ao Soberano Pontífice que encarregou o cardeal Pedro de Benevento de os reconciliar com a Igreja e de obrigar o conde de Montfort a reenviar para a Espanha o novo rei de Aragão, criança que ele guardava em reféns, desde que estava justo o seu casamento com a sua filha. Desempenhou o cardeal a sua dupla missão no inverno de 1214. Deu mesmo, caso notável, a absolvição ao conde de Toulouse; este acto de clemência, porém, de nada serviu ao vencido para os seus interesses temporais. Reuniu-se um concílio em Montpellier no mês de dezembro seguinte para decidir a quem devia pertencer a soberania do país conquistado. Foi unânime o concílio em favor do conde de Montfort, cuja brilhante e valente espada decidira a sorte da guerra; contudo o Soberano Pontífice, por uma carta de 17 de abril de 1215, declarou que Montfort apenas conservaria a posse da sua conquista até que o concílio ecumênico de Latrão, a quem havia sido entregue essa questão, pronunciasse sentença definitiva. Foi a última tentativa de Inocêncio III para salvar a casa de Toulouse. Abandonado por todos, o conde Raimundo retirou-se com seu filho para a corte do rei da Inglaterra.

No dia 11 de novembro de 1215 o sol ao despontar sobre os Apeninos deparou na solitária igreja de S. João de Latrão com a mais augusta assembléia do mundo. Viam se ali reunidos setenta e um primazes e metropolitanos, quatrocentos e doze bispos, mais de oitocentos abades e priores de mosteiros, uma infinidade de procuradores de abades e de bispos ausentes; os embaixadores do rei dos Romanos, do imperador de Constantinopla, dos reis de França, da Inglaterra, da Hungria, de Aragão, de Jerusalém e de Chipre; os delegados de uma inumerável multidão de príncipes, de cidades e de nobres e, acima de todos, a figura venerável de Inocêncio III. Notava-se entre os assistentes o abade de Cister, arcebispo de Narbonne; o conde Simão de Montfort estava representado pelo seu irmão Guy de Montfort; os dois Raimundos tinham vindo pessoalmente, assim como os condes de Foix e de Comminges. No dia marcado para se julgar esta grande causa da Cruzada Albigense entraram os dois Raimundos na assembléia com os condes de Foix e de Comminges e todos os quatro se prostraram aos pés do trono Apostólico. Em seguida, levantando-se, expuseram a forma como haviam sido despojados dos seus feudos, apesar da sua perfeita submissão à Igreja Romana e da absolvição que lhes dera o legado Pedro de Benevento. Em seu favor tomou um cardeal a palavra com grande força e eloqüência. No mesmo sentido falaram também o abade de Saint-Tibère e o chantre da Igreja de Lião, este último principalmente, parecendo convencer o Papa. Mas a maioria dos bispos, sobretudo dos bispos franceses, pronunciaram-se contra os suplicantes, protestando que restituir-lhes os seus bens seria acabar com a religião católica no Languedoc e que todo o sangue já vertido por esta causa seria um sangue inútil e uma dedicação perdida. Declarou então o concílio que o Conde Raimundo VI incorrera na perda dos seus fundos, os quais seriam definitivamente transferidos para o Conde de Montfort, e estabeleceu-lhe uma pensão de quatrocentos marcos de prata, com a condição de viver fora dos seus antigos domínios. À sua mulher Leonor seriam conservados os bens de que se compunha o seu dote, e destinou-se ao jovem Raimundo, seu filho, o marquesado de Provença que lhe seria entregue à sua maioridade, se se conservasse fiel à Igreja. Quanto aos Condes de Foix e de Comminges, a sua causa foi adiada até se proceder a mais maduro exame. E' digno de nota que o marquesado de Provença, destinado ao jovem Raimundo, compunha-se das cidades que seu pai cedera à Santa Sé, no caso de alguma vez faltar às convenções de Saint- Gilles; já por diferentes vezes se havia proposto ao Soberano Pontífice o reuní-las ao domínio Apostólico; ele, porem, não quis nunca anuir a isso, valendo-se apenas dos direitos que adquirira para as conservar à casa de Toulouse.

Depois de encerrado o Concílio o jovem Raimundo, que atraíra a estima de todos pelo seu nobre comportamento, foi despedir-se do Papa. Não lhe ocultou que se considerava injustamente despojado do patrimônio de seus antepassados, declarando-lhe ao mesmo tempo com uma ingênua e respeitosa firmeza que se aproveitaria de todas as ocasiões para recuperar o que perdera sem culpa sua. Inocêncio III, comovido pela desgraça, inocência e coragem desse mancebo de dezoito anos, lançou sobre ele esta benção profética :

“Meu Filho,
que o principio de todas as vossas ações
seja bom
e o fim ainda melhor!”

Montfort, revestido por Felipe Augusto dos títulos de Duque de Narbonne e Conde de Toulouse, não gozou muito tempo do poder que com tanto trabalho adquirira. Ainda o ano de 1266 não chegara ao seu termo o já o jovem Raimundo era senhor de uma parte da Provença. Por outro lado Toulouse, cansado do jugo do seu novo Conde, tornou a mandar chamar o velho Raimundo à corte da Inglaterra, onde ele se refugiara, e abriu-lhe as suas portas. À primeira noticia desta mudança de fortuna grande número de fidalgos se apressou em vir prestar juramento de fidelidade ao seu antigo suserano. Compreendeu então o vencedor de Muret que não basta, para adquirir o prestígio do governo dos povos, ganhar batalhas e tomar cidades de assalto: dera, por sua infelicidade, com essa força tão honrosa para a humanidade que faz com que seja impossível reinar sobre os homens quando não se reina sobre os seus corações. Expulso de Toulouse, que ele debalde tentara desarmar e amedrontar com toda a casta de suplícios, veio triste e acabrunhado pôr cerco a esses muros onde nunca mais havia de penetrar. A duração do cerco, a incerteza do futuro, as censuras que o Cardeal Bertrand, legado Apostólico, lhe dirigia sobre a sua inação, assim como esse desânimo que pro duzem os revezes quando chegam já no declinar da vida, lança ram o valente cavaleiro numa tal melancolia que lhe fazia pedir a Deus a morte. No dia 25 de Junho de 1218 vieram de madru gada anunciar-lhe que o inimigo estava de emboscada nos fossos do castelo. Pediu a sua armadura e, revestindo-se dela, foi ouvir missa. Tinha esta já começado quando o vieram avisar de que as maquinas de guerra haviam sido assaltadas e estavam em risco de serem destruídas:

“Deixai”,

disse ele,

“que eu veja primeiro
o Sacramento da nossa redenção!”

Seguiu-se outro mensageiro que lhe anunciou não poderem as suas tropas resistir por mais tempo:

“Não saio daqui”,

disse ele,

“enquanto não vir o meu Salvador”.

Pierre de Vault-Cernay
História dos Albigenses, C. 85

Finalmente, quando o padre levantou a hóstia, Montfort, ajoelhando-se e elevando as mãos ao céu, pronunciou as palavras “nunc dimittis” e saiu. A sua presença no campo da batalha fez recuar o inimigo até às trincheiras da praça; esta, porém, foi a sua última vitória. Uma pedra feriu-o na cabeça; batendo no peito e recomendando-se a Deus e à bem aventurada Virgem Maria, caiu morto.

A sorte continuou a favorecer os Raimundos. Dos dois filhos que deixara o Conde de Montfort, o mais novo foi morto junto aos muros de Castelnaudary e quatro anos de revezes convenceram o mais velho de que não era competente para poder com a herança de seu pai, de sorte que cedeu todos os seus direitos ao rei de França. O velho Raimundo, tranqüilo em Toulouse, sob a proteção das vitorias de seu filho, teve tempo de se voltar para Deus que o humilhara e tornara a exaltar. A 12 de julho de 1222, voltando ele de fazer oração à porta de uma igreja, pois continuava excomungado, sentiu-se doente e mandou a toda a pressa chamar o abade de Saint-Sernin, para o reconciliar com a Igreja. O abade já o encontrou sem fala. O velho Conde ao vê-lo levantou os olhos para o céu, e agarrando-o nas mãos conservou-as entre as suas, até exalar o ultimo suspiro. O seu cadáver foi transportado para a igreja dos cavaleiros de S. João de Jerusalém, que escolhera para lugar da sua sepultura; não se atreveram contudo a enterrá-lo, por causa da excomunhão. Deixaram o seu caixão aberto e, três séculos depois, ainda se podia vê-lo da mesma forma, sem que tivesse havido uma mão assaz ousada para pregar uma tábua sobre esse caixão consagrado pela morte e pelo tempo. A pedido de seu filho, tratou-se da questão da sua sepultura durante os pontificados de Gregório IX e Inocêncio IV. Inúmeras testemunhas atestaram que ele antes de morrer dera evidentes provas de verdadeiro arrependimento; contudo recearam perturbar essas cinzas dando-lhe honras tardias.

Raimundo VII sobreviveu vinte e seis anos a seu pai. Soube defender-se contra as armas da própria França; porém, demasiado fraco para poder sustentar essa luta, concluiu com S. Luiz, em 1228, o tratado que pôs termo a essa longa guerra. O casamento de sua filha única com o conde de Poitiers, um dos irmãos do Rei; a restituição, a título de dote, do condado de Toulouse; a cessão de vários territórios; a promessa de se conservar fiel à Igreja e de se servir da sua autoridade contra os hereges, tais foram as principais condições da paz. Confirmou-a a Igreja, tornando a receber no seu grêmio ao jovem conde que, por penitência, se obrigou a servir a causa da cristandade, na Palestina, durante cinco anos. Só vinte anos depois é que ele pensou seriamente em cumprir esse dever e partiu para a Terra Santa. Deus, porém, não lhe permitiu chegar ao termo da sua viagem. Adoeceu em Pris, perto de Rodes, de onde se fez transportar para Milhaud e aí morreu a 26 de setembro de 1248, rodeado dos bispos de Toulouse, de Agen, de Cahors e de Rodes, dos cônsules de Toulouse e de grande numero de fidalgos vindos todos receber os últimos adeuses de um príncipe que sempre lhes fôra caro e em quem na descendência masculina acabava o ramo mais velho de uma ilustre raça. Quando o Santo Viático chegou perto do conde ele ergueu-se do leito e ajoelhou-se no chão diante do corpo do seu Senhor, realizando assim na sua morte, como o fizera na sua vida, o desejo que por ele formara outrora Inocêncio III, quando na sua mocidade o abençoara:

“Meu filho,
que o principio de todas as vossas acções
seja bom,
e o fim ainda melhor!”