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Apostolado de S. Domingos desde o começo da guerra dos Albigenses até ao Quarto Concílio de Latrão. Instituição do Rosário. Reunião de S. Domingos e dos seus primeiros discípulos numa casa em Toulouse.Foi na ocasião em que rebentou a guerra dos Albigenses que se revelou toda a virtude, todo o gênio de Domingos. Encontrava-se então entre dois escolhos ambos igualmente temíveis: ou abandonar a sua missão num país repleto de sangue e de terrores, ou tomar a mesma parte na guerra que tomavam os religiosos de Cister. Em ambos os casos errava a sua vocação. Fugindo, desertava do apostolado; tomando parte na cruzada, tirava à sua vida e à sua palavra o caráter apostólico. Não fez nem uma nem outra coisa. Toulouse na Europa era a capital da heresia; era em Toulouse que ele se devia fixar de preferência, à imitação dos primeiros apóstolos que, longe de fugirem do erro, iam sempre procurar-lo no próprio centro do seu poder. S. Pedro assentou primeiro a sua sede em Antioquia, rainha do Oriente, e enviou seu discípulo S. Marcos para a Alexandria, uma das mais comerciantes e mais ricas cidades do mundo. S. Paulo viveu muito tempo em Corinto, célebre entre as cidades gregas pelo luxo da sua corrupção; ambos eles, sem prévia combinação, vieram a morrer em Roma. Não convém, dizia Jesus Cristo,
Era, pois, em Toulouse, foco e farol de todos os erros, que convinha que Domingos se estabelecesse, fosse qual fosse o aspecto das coisas. Os homens de pouca fé esperam, dizem eles, que venha a paz para começarem a trabalhar; o apóstolo, esse semeia no temporal para colher no bom tempo. Traz sempre na mente as palavras do seu Divino Mestre:
Domingos, porém, ao mesmo tempo que continuava com a sua missão, apesar dos terrores da guerra, compreendera que devia menos do que nunca alterar a sua atitude pacífica e dedicada. Por mais justo que seja desembainhar a espada contra aqueles que, com a violência, oprimem a verdade, sempre é difícil que a verdade não sofra com essa proteção, e que a não tornem cúmplice dos excessos inseparáveis de todo e qualquer conflito sangrento. A espada nunca pára no limite preciso do direito; é próprio da sua natureza o tornar a entrar com dificuldade na bainha logo que esteja quente da mão do homem. Seriam precisos anjos para pelejar pela justiça e ainda. assim o espírito humano sofre tais e tão rápidas alternativas que os opressores vencidos não perderiam a esperança de encontrar abrigo na parcialidade da compaixão. Era, pois, altamente importante que Domingos se conservasse fiel ao plano magnânimo de Azevedo, e que a par da cavalaria armada para defender a liberdade da Igreja, aparecesse o homem evangélico, confiando apenas na força da graça e da persuasão. Na Polônia, quando ao altar o padre lê o Evangelho o cavaleiro desembainha meia espada e nessa postura militar escuta a palavra suave do Cristo. Eis as verdadeiras relações entre a cidade da terra e a cidade de Deus. Esta, representada pelo padre, fala, suplica, abençoa e oferece em sacrifício; a cidade da terra, representada pelo cavaleiro, escuta, em silêncio, associando-se a todos os actos do padre, e conserva a sua espada sempre pronta não para impor a fé mas para lhe garantir a liberdade. O padre e o cavaleiro desempenham no mistério do cristianismo duas funções que nunca se devem confundir, devendo a primeira estar sempre mais em evidência do que a segunda. Enquanto que o padre entoa em voz alta o Evangelho na presença do povo e à luz dos círios, o cavaleiro conserva a sua espada meio desembainhada, porque atende a misericórdia ao mesmo tempo que a justiça, e porque o próprio Evangelho, em cuja defesa ele está sempre preparado para combater, lhe segreda ao ouvido:
Domingos e Montfort foram os dois heróis da guerra dos Albigenses, um como cavaleiro e o outro como padre. Vimos já a forma como Montfort desempenhou a sua missão; vejamos agora como Domingos cumpriu a dele. Por certo se há de ter notado que não o mencionam nos anais dessa guerra. Não aparece nos concílios, nas conferências, nas reconciliações, nos cercos e nas vitórias; não se faz menção dele em nenhuma carta dirigida para Roma ou mandada de lá. Este silêncio unânime da parte dos historiadores é tanto mais significativo pelo fato deles pertencerem a escolas diferentes, umas religiosas e as outras seculares; umas favoráveis aos cruzados, outras afeiçoadas a Raimundo. Não é possível crer que se Domingos tivesse desempenhado um qualquer papel nas negociações e nos fatos militares da cruzada, esses historiadores houvessem todos como que de comum acordo guardado silêncio a seu respeito. Narram-se dele atos de outra ordem; por que razão se ocultariam estes? Ora, eis os fragmentos que nos conservaram sobre a, sua vida nessa época:
diz o bem aventurado Humberto,
Com respeito a Carcassone que não distava também muito deste seu caro retiro, dá ele próprio uma outra razão para essa sua prefêrencia. Interrogado um dia sobre a sua repugnância em viver em Toulouse e na sua diocese, respondeu:
Efetivamente, os inimigos da fé insultavam de todos s os modos o servo de Deus; cuspiam-lhe na cara, atiravam-lhe com lama e espetavam por escárneo palhas na sua capa. Ele, porém, superior a tudo, como o Apostolo, estimava-se feliz por ser julgado digno de sofrer opróbrios pelo nome de Jesus. Os hereges chegaram mesmo a pensar em o matar. Uma ocasião em que eles disso o ameaçavam, ele respondeu-lhes:
Com essa convicção, tendo de passar por um sítio onde sabia que lhe haviam armado uma emboscada, arriscou-se a lá ir não só com a maior intrepidez como também cantando alegremente. Maravilhados ao ver a sua firmeza, os hereges, para o tentar, perguntaram-lhe, numa outra ocasião, o que ele faria se viesse a cair nas mãos deles.
respondeu,
Thierry d’Apolda narra o seguinte facto:
Havia nos arredores de Toulouse umas senhoras da nobreza a quem a
austeridade dos hereges fizera abandonar a fé. Domingos, no princípio de
uma quaresma, foi-lhes pedir hospitalidade com a intenção de as
reconduzir ao seio da Igreja. Não entrou em controvérsias com elas, mas
durante toda a quaresma ele e o seu companheiro não comeram e beberam
senão pão e água. Quando na primeira noite elas quiseram preparar camas,
eles só pediram duas tábuas para se deitarem e até à Páscoa não tiveram
outro modo de descanso, contentando-se todas as noites apenas de umas
horas de sono, que ainda interrompiam para rezar. Esta eloquência muda
foi de toda a eficácia sobre o espírito dessas. mulheres; reconheceram no
sacrifício o amor, e no amor a verdade.
diz Thierry d'Apolda,
Constantino de Orvieto e o bem-aventurado Humberto, contando o mesmo
caso, juntam-lhe uma circunstância que exige uma explicação. Dizem eles
que os hereges, de que se trata, haviam sido convictos por Domingos antes
de serem entregues à justiça secular. E' essa a única palavra do décimo
terceiro século de onde se crê poder inferir a participação do santo nos
processos. criminais. Os historiadores, porém, da guerra dos Albigenses
explicam-nos muito claramente o que era essa convicção dos hereges. Os
hereges no Languedoc não estavam constituídos em sociedade secreta;
estavam em armas e combatiam pelos seus erros à face do sol. Quando os
azares da guerra faziam cair algum nas mãos dos cruzados, estes
entregavam-nos aos eclesiásticos para lhes exporem os dogmas católicos e
lhes fazerem sentir a extravagância dos seus. Era a isso que se chamava
convencê-los, não de serem hereges, pois que eles não faziam disso o
menor segredo, mas de estarem num caminho errado, condenado pelas
Escrituras, pela tradição e pela razão. Suplicavam-lhes, com as mais vivas
instâncias, que renunciassem à sua heresia, prometendo-lhes, a esse preço,
o perdão. Os que cediam a essas instâncias tinham efetivamente a vida
salva; os que resistiam até ao final eram entregues à justiça secular. A
convicção dos hereges era portanto um serviço de dedicação em que o
poder do espírito e a eloquência da caridade se animavam com a
esperança de arrancar uns desgraçados à morte. Que S. Domingos
exercesse esse cargo pelo menos uma vez é fora de dúvida, pois que dois
historiadores contemporâneos o afirmam; mas tirar daí um argumento para
o acusar de rigores contra os hereges é confundir o padre que presta
auxilio ao criminoso com o juiz que o condena, ou com o algoz que lhe dá
a morte.
No outro diploma lê-se o seguinte:
Reporto aqueles que acharem esta sentença exagerada e extraordinária às penitencias canônicas da primitiva igreja, aos usos penitenciais dos conventos e às praticas que se impunham voluntaria e publicamente muitos cristãos da idade média para expiar as suas culpas. Todos sabem, citando apenas um exemplo, que Henrique II, rei da Inglaterra, fez-se açoitar por uns frades, sobre o túmulo de Tomas Becket, arcebispo de Cantuária, de cujo assassinato ele fôra o instigador. Hoje mesmo nas grandes basílicas de Roma, o padre, depois de absolver o penitente, dá-lhe com uma comprida vara uma pancada no ombro. S. Domingos naturalmente conformou-se com os usos do seu século, e para quem os conhecer, há nos documentos que acabamos de ler um extraordinário espírito de bondade. O seu desinteresse não era menor do que a sua caridade e doçura. Recusou os bispados de Beziers, de Conserans e de Comminges, que lhe foram oferecidos, dizendo numa ocasião que mais depressa pegaria no seu bordão e fugiria de noite do que aceitava o episcopado ou outra qualquer dignidade. Eis de resto a descrição que dele fez Guilherme de Pierre, abade de um mosteiro de S. Paulo em França, um dos que o conheceram intimamente durante os doze anos do seu apostolado no Languedoc, e que foi ouvido como testemunha em Toulouse, no processo da sua canonização.
Desenvolvera-se em Domingos o dom dos milagres a par com tão subidas virtudes. Um dia, atravessando um rio em um barco, o barqueiro, quando chegaram ao outro lado, pediu-lhe o preço da sua passagem:
respondeu Domingos,
O barqueiro, zangado, começou a puxá-lo pela capa, dizendo-lhe:
Domingos, levantando os olhos para o céu, recolheu-se um momento; em seguida, olhando para o chão, mostrou ao barqueiro urna moeda de prata, que a Providencia lhe enviara, dizendo-lhe:
No tempo em que os cruzados cercavam Toulouse, no ano de 1211, uns romeiros ingleses, que se dirigiam a S. Tiago de Compostela e queriam evitar entrar na cidade por causa da excomunhão lançada contra ela, tomaram um barco para atravessar o Garonne, mas o barco demasiado cheio virou-se ; eram cerca de quarenta os que iam dentro. Aos gritos dos peregrinos e das tropas, S. Domingos saíu de uma igreja ali perto e prostrando-se no chão, com os braços em cruz, implorou Deus em favor dos peregrinos que já haviam desaparecido debaixo da água. Acabada a sua prece levantou-se e voltando-se para o lado do rio, disse em voz alta:
Apareceram os náufragos imediatamente ao de cima da água, e agarrando- se a umas compridas lanças que os soldados lhe estenderam, alcançaram a margem. O primeiro prior do Convento de Saint Jacques de Paris, a quem os historiadores chamavam Mateus de França, tornou-se o cooperador de Domingos, por efeito de um outro milagre que presenciara. Sendo ele prior de uma colegiada de cônegos na cidade de Castres, Domingos vinha muitas vezes visitar essa Igreja, porque encerrava as relíquias do Mártir S. Vicente, e ficava geralmente em oração até a hora do meio dia. Um dia, deixando passar essa hora, que era a hora da refeição, o prior mandou um dos seus clérigos buscá-lo. O clérigo viu Domingos, levantado do chão em frente do altar, e correu a avisar o prior, que encontrou Domingos nesse estado de êxtase. Causou-lhe esse espetáculo uma tão viva impressão que pouco tempo depois foi ter com o servo de Deus, o qual, segundo o seu costume, em relação aos que admitia à participação no seu apostolado, lhe prometeu o pão da vida e o orvalho dos céus. Contam também, resumidamente, os historiadores como ele expulsou o demônio do corpo de um homem; como querendo fazer oração em uma igreja, cujas portas estavam fechadas, ele se achou de repente transportado dentro dela; como viajando com um religioso cuja língua não sabia, e que também não sabia a dele, conversaram um com o outro durante três dias, como se falassem o mesmo idioma; como tendo deixado cair no Ariége os livros que trazia consigo, um pescador os tirou para fora, algum tempo depois, sem que nada tivessem sofrido do contato com a água. Todos estes fatos se encontram na história dispersos e separados, porém nós juntamo-los como relíquias santas. Deus comunicara também ao seu servo o espírito de profecia. Durante a quaresma do ano de. 1213 que ele passou em Carcassone a pregar e exercendo as funções de vigário geral, que lhe confiara o bispo ausente, um religioso de Cister interrogou-o sobre o resultado da guerra:
disse-lhe esse religioso,
E como Domingos ficasse calado, tornou a insistir, sabendo que Deus lhe revelara muitas coisas. Domingos, finalmente, disse-lhe:
Os que ouviram esta predição recearam que ele quisesse aludir ao filho mais velho de Felipe Augusto, que fizera voto de se bater contra os Albigenses; Domingos, porém, sossegou-os dizendo-lhes:
Pouco depois, foi morto o rei de Aragão em Muret. A guerra, pela sua duração e pela sua fortuna diversa, parecia dever opor um obstáculo quase invencível ao constante projeto de Domingos, o qual era fundar uma ordem religiosa consagrada ao ministério de pregar. Por conseguinte, ele nunca cessava de pedir a Deus a restauração da paz, sendo com o fim de a obter e de apressar o triunfo da fé que ele instituiu, não sem uma secreta inspiração, essa forma de oração que mais tarde se espalhou pela Igreja universal, sob o nome do Rosário. Quando o arcanjo Gabriel foi enviado por Deus à bem-aventurada Virgem Maria para lhe anunciar o mistério da Encarnação do Filho de Deus no seu casto seio, saudou-o nos seguintes termos:
Estas palavras, as mais ditosas que jamais foi dado a criatura alguma ouvir, têm-nas repetido, de século em século, os lábios dos cristãos e, do fundo deste vale de lágrimas, elas nunca cessam de redizer à Mãe do seu Salvador: “Ave Maria”. As hierarquias do céu delegaram um dos seus chefes à humilde filha de Davi para lhe dirigir essa gloriosa saudação e, agora que ela está sentada acima dos anjos e de todos coros celestiais, o gênero humano, cuja filha e irmã foi, da terra lhe endereça a saudação angélica “Ave, Maria”. Quando ela a ouviu pela primeira vez da boca de Gabriel imediatamente concebeu no seu puríssimo seio o Verbo de Deus; e agora, cada vez que uma boca humana lhe repete essas palavras, que foram o sinal da sua maternidade, comovem-se as suas entranhas com a lembrança de um momento como nunca houve igual no céu e na terra, e a eternidade inteira enche-se da felicidade que ela sente. Mas, posto que os cristãos tivessem o costume de desta forma volverem os seus corações para Maria, contudo nada havia de regular e solene no uso imemorial desta saudação. Os fiéis nunca se reuniam para a dirigir à sua dileta protetora; cada um seguia para com ela o impulso particular do seu amor. Domingos, que não desconhecia o poder da associação na oração, julgou que seria útil aplicá-la à Saudação Angélica e que o clamor universal de todo um povo reunido subiria até ao céu e teria grande poder. A própria brevidade das palavras do anjo exigia que fossem repetidas um certo número de vezes como essas aclamações uniformes que a gratidão das nações solta na passagem dos soberanos. Porém a repetição podia dar lugar à distração do espírito. Domingos remediou isso distribuindo as saudações orais em diferentes séries, ligando a cada uma delas a memória de um dos mistérios da nossa redenção que foram alternadamente para a bem-aventurada Virgem motivo de gozo, de dor e de triunfo. Desse modo a meditação interior unia-se à prece pública, e o povo, ao mesmo tempo em que saudava a sua mãe e rainha, seguia-a no íntimo do seu coração em cada um dos fatos principais da sua vida. Domingos formou uma confraria para melhor firmar a solenidade dessa forma de súplica. O seu devoto pensamento foi coroado com o melhor dos êxitos, um êxito popular. O povo cristão tem-se afeiçoado a ele de século em século, com uma fidelidade extraordinária. As confrarias do Rosário têm-se multiplicado indefinidamente; há poucos cristãos no mundo que não possuam, sob o nome de terço, uma fração do Rosário. Quem é que não tem ouvido nas igrejas de aldeia a voz profunda dos aldeões recitando em dois coros a Saudação Angélica? Quem é que não têm encontrado procissões de peregrinos passando entre os dedos as contas do seu rosário, e iludindo o comprimento do caminho com a repetição alternada do nome de Maria? Sempre que uma qualquer coisa alcança tanto a universalidade como a perpetuidade, é porque ela reúne necessariamente uma misteriosa harmonia com as necessidades e destinos do homem. O racionalista sorri vendo passar filas de pessoas repetindo a mesma palavra; aquele que se sente iluminado por uma luz mais forte compreende que o amor tem só uma palavra e que dizê-la sempre nunca é repetí-la. A devoção do rosário, interrompida no século quatorze pela terrível peste que devastou a Europa, foi renovada no século seguinte por Alain de la Roche, dominicano bretão. Em 1573 o Soberano Pontífice Gregório XIII instituíu a festa que a Igreja a inteira celebra todos os anos no primeiro domingo de outubro, sob a denominação de festa do Rosário, em memória da famosa batalha de Lepanto ganha sobre os Turcos, sob um papa dominicano, no próprio dia em que as confrarias do Rosário fizeram procissões públicas em Roma e em todo o mundo cristão. Eram as seguintes as armas a que Domingos recorria contra a heresia e contra as calamidades da guerra: pregar através dos insultos, a controvérsia, a paciência, a pobreza voluntária; para si mesmo uma vida dura, para os outros uma caridade sem limites, o dom dos milagres, e finalmente, a promoção do culto da Virgem Santa pela instituição do Rosário. Passaram-se desse modo dez anos sobre a sua cabeça, desde a conferência de Montpellier até ao Concílio de Latrão, com uma tal uniformidade que os historiadores contemporâneos apenas distinguem um pequeno numero de fatos no meio desta humilde e heróica perseverança nas mesmas virtudes. O receio de serem monótonos suspendeu a sua pena; descrever dias de. Domingos é o mesmo que descrever anos da sua vida. Esta ausência de fatos na vida de um grande homem em uma época tão movimentada é a feição que caracteriza a figura de Domingos ao lado da de Montfort. Ligados por urna sincera amizade e tendo em vista o mesmo fim, diferiam tanto de caráter como a armadura de um cavaleiro difere do hábito de um religioso. O sol da história brilha sobre a couraça de Montfort iluminando belas ações manchadas de sombras; e lança apenas um dos seus raios sobre a capa de Domingos, esse, porém, tão puro e tão santo, que a sua própria falta de brilho serve de relevante testemunho. Falta-lhe o resplendor porque o homem de Deus retrai-se da agitação e do sangue; porque, fiel à sua missão, só abre a boca para abençoar, o coração para orar, as mãos para serviços de amor e porque a virtude, completamente só, encontra o seu sol unicamente em Deus. Domingos tinha quarenta e seis anos quando começou a gozar do fruto dos seus longos méritos. Os cruzados vitoriosos abriram-lhe, em 1215, as portas de Toulouse, e a Providência, que reúne em um dado momento os elementos os mais diversos, enviou-lhe os dois homens de que ele carecia para assentar as primeiras bases da Ordem dos Pregadores. Eram ambos naturais de Toulouse, de famílias distintas e de um notável mérito pessoal. Um deles, chamado Pedro Cellani, dava brilho a uma grande fortuna pela sua grande virtude; o outro, que só conhecemos pelo nome de Tomás, era eloqüente e de maneiras singularmente afáveis. Impelidos por uma igual inspiração do Espirito Santo, entregaram-se ambos a Domingos, e Pedro Cellani fez-lhe presente da sua própria casa que era magnífica e contígua ao castelo dos Condes de Toulouse a que chamavam o castelo de Narbonne. Domingos reuniu nessa casa todos os que o haviam seguido. Eram em número de seis: Pedro Cellani, Tomás e outros quatro. Bem pequeno era o rebanho e contudo custara dez anos de apostolado e quarenta e cinco de uma vida completamente sacrificada a Deus. Quão pouco conhecem as condições. das coisas duráveis aqueles tão apressados nos seus modos de proceder, e quão pouco os conhecem também os que uma época adversa assusta. Desde que Domingos, na primeira vez em que veio a Toulouse, entrevira, em uma vigília consagrada à conversão de um herege, a idéia da sua ordem, quão inexorável não se mostrara para com ele o tempo. A prematura morte do seu amigo e mestre Azevedo deixara-o órfão nessa terra estranha. Uma guerra sangrenta cercara-o de todos os lados; o ódio dos hereges, contido ao princípio pela certeza do seu predomínio, exaltara-se; a atenção dos católicos e a sua dedicação, tendo tomado um caminho diverso do apostolado, Domingos vira-se reduzido a uma solidão desesperadarada. Deus, porém, dissipou todas essas nuvens; o Conde de Toulouse, que pensava morrer no seu país vitorioso e tranquilo, fica um tempo aniquilado por uma batalha tão decisiva como imprevista; Deus concede ao seu servo alguns meses de paz e entre duas tempestades estabelece-se a ordem dos Pregadores na capital da heresia. Domingos revestiu os seus companheiros de um hábito igual ao que ele próprio trazia, isto é, urna túnica de lã branca, uma sobrepeliz de linho, uma capa e um capuz de lã preta. Era este o hábito dos cônegos regrantes, que sempre usara desde a sua entrada para o cabido de Osma. Ele e os seus usaram-no até se dar um fato memorável, de que oportunamente falaremos, e que produziu uma alteração nesse vestuário. Começaram também a seguir uma vida uniforme sob uma certa regra. Fundara-se esse estabelecimento com a cooperação e pela autoridade do Bispo de Toulouse que ainda era Foulques, esse magnânimo monge de Cister, que desde o princípio vimos inclinar-se aos projectos de Azevedo e Domingos. Não se contentou em favorecer espiritualmente a sua realização; conservamos da sua liberalidade para com eles um monumento insigne que a gratidão dos Frades Pregadores deve, tanto quanto neles couber, eternizar.
Este ato de munificência não foi o único que veio auxiliar a ordem principiante dos Frades Pregadores.
dizem os historiadores,
Montfort fez doação a seu amigo do castelo e terra de Cassenel, na diocese
de Agen. Já ele anteriormente confirmara várias doações em favor do
mosteiro de Prouille, cujos bens ele próprio aumentara. Não se limitou a
sua estima e afeição por Domingos a provas desse gênero; pedira-lhe para
batizar a sua filha, cujo casamento esteve por algum tempo justo com o
herdeiro do reino de Aragão, e para celebrar o casamento de seu filho
mais velho, o conde Amaury, com Beatriz filha do Delfim de Viena.
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