4.

Apostolado de S. Domingos desde a entrevista em Montpellier até o começo da guerra dos Albigenses. Fundação do convento de Notre Dame de Prouille.

Cumpriu-se sem demora o plano combinado entre os legados apostólicos e o bispo de Osma.

O abade de Cister partiu para a Borgonha onde tinha que presidir ao capítulo geral da sua ordem, prometendo que traria de volta consigo um certo número de trabalhadores evangélicos. Os dois outros legados, D. Diogo, Domingos, e alguns padres espanhóis andaram a pé, pela estrada de Narbonne e de Toulouse. No caminho, paravam nas cidades e povoações, conforme se sentiam inspirados pelo espirito de Deus, ou segundo as circunstâncias exteriores lhes faziam julgar serem proveitosas às suas práticas. Assim que resolviam evangelizar em algum ponto, demoravam-se ali o tempo proporcionado à importância do lugar e à impressão que produziam. Aos católicos pregavam nas igrejas e com os hereges tinham conferências nas casas particulares. O uso dessas conferências data de uma época muito remota. S. Paulo tinha-as freqüentemente com os judeus e Santo Agostinho com os Donatistas e os Maniqueus de África. Efetivamente se uma vontade obstinada é uma das causas do erro, talvez a ignorância seja a sua causa mais geral. A maior parte dos homens recusa a verdade unicamente porque a não conhece, porque a reproduz sob uns aspectos que nada têm de verdadeiro. É pois uma das funções do apostolado expor com clareza a verdadeira fé, separando-a das opiniões particulares que a obscurecem, deixando à mente do homem toda a liberdade que a palavra de Deus e a Igreja, sua intérprete, lhe deram. Porém esta exposição só se torna possível contanto que seja capaz de atrair aqueles que dela necessitam, e só pode ser completa contanto que se lhes conceda o direito de a discutir, assim como nós nos reservamos o direito de discutir a sua doutrina. É esse o fim que se quer atingir nas conferências, campo da honra onde alguns homens de boa fé desafiam outros homens de boa fé, onde a palavra é para todos uma arma igual e a consciência o único juiz.

Se, porém, o costume das confêrencias é antigo, houve todavia o que quer que fosse de novo e arrojado nas que se realizaram então com os Albigenses. Os católicos não se temiam de a miudo escolher como árbitro das discussões os seus próprios adversários e de se sujeitarem à sua opinião. Convidavam para presidir à assembléia alguns dos mais notáveis hereges, declarando de antemão que aceitavam a sua decisão sobre o valor dos argumentos dos dois partidos. Esta confiança heróica deu-lhes bom resultado. Por diversas vezes tiveram a consolação de ver que não haviam contado demasiado sobre o coração humano, obtendo uma extraordinária prova dos recursos para o bem que nele se ocultam.

Uma das primeiras povoações onde pararam foi em Caraman, próximo de Toulouse. Aí anunciaram a verdade durante oito dias com tão bom resultado, que os seus habitantes quiseram de lá expulsar os hereges, acompanhando até uma grande distancia os missionários, quando eles se retiraram.

Sofreu aí o seu pequeno exercito uma redução pela partida do legado, Pedro de Castelnau, instado pelos seus amigos a retirar-se por causa do ódio especial que lhe tinham os hereges. A terceira estação teve lugar em Carcassone; outra em Verfeil nas imediações de Toulouse; outra em Fangeaux, pequena cidade situada sobre um monte entre Carcassone e Pamiers.

Tornou-se esta última celebre por um caso milagroso que ali se deu e que o bem-aventurado Jordão de Saxe narra do seguinte modo:

“Aconteceu realizar-se em Fanjeaux
uma grande conferência,
na presença de grande numero de fiéis e infiéis
que haviam sido convocados para assistir a ela.
Os católicos tinham preparado
vários relatórios contendo argumentos
e citando autoridades a favor da sua fé;
depois, porém, de os compararem
uns com os outros, preferiram
o que Domingos,
o bem-aventurado homem de Deus,
escrevera e resolveram contrapô-lo
ao relatório que os hereges por seu lado apresentaram.
De comum acordo escolheram três árbitros
para decidirem qual o partido
cujos argumentos seriam melhores e,
por conseguinte, cuja fé era mais sólida.
Depois de grandes discursos,
não podendo os árbitros chegar a um acordo,
lembraram-se de deitar no lume
os dois relatórios para que,
no caso de um deles ser respeitado pelas chamas,
se convencessem de que esse era
o que continha a verdadeira fé.
Acenderam pois um grande lume
e deitaram dentro os dois volumes.
O dos hereges ardeu imediatamente e o outro,
escrito pelo bem-aventurado homem de Deus,
Domingos, não só se conservou intacto
como também foi projectado pelas chamas para longe,
na presença de toda a assembléia.
Tornaram a deitá-lo uma segunda e terceira vez,
repetindo-se o facto tantas vezes
quantas foram precisas
para ficar claramente manifesto
em qual deles estava a verdadeira fé,
e qual o grau de santidade
daquele por quem o livro havia sido escrito”.

Vida S. Domingos I-20

A memória desse prodígio, conservada pelos historiadores, havia-a também perpetuado a tradição em Fangeaux, e em 1325 os habitantes dessa povoação pediram e obtiveram do rei Carlos o Formoso licença de comprar a casa onde se dera esse facto e ali levantar uma capela que os Soberanos Pontífices enriqueceram com varias mercês. Mais tarde em Montreal deu-se um milagre igual, mas esse passou-se secretamente entre alguns hereges que se reuniram uma noite para examinar outro relatório do servo de Deus; tinham combinado ocultar esse prodígio, porém um deles que depois se converteu, tornou-o publico.

Domingos, entretanto, observara que uma das causas do progresso da heresia era a habilidade com que os hereges tomavam conta da educação das jovens de nascimento ilustre, cujas famílias não tinham meios suficientes para lhes dar uma educação condigna com a sua posição. Pôs-se a pensar diante de Deus sobre os efeitos de remediar essa forma de sedução, e julgou que o conseguiria fundando um mosteiro destinado a receber jovens católicas que por seu nascimento e pobreza estivessem expostas aos laços armados pelo erro.

Havia em Prouille, aldeia situada na base dos Pirineus em uma planície entre Fanjeaux e Montreal, uma igreja dedicada à Virgem Santa, e célebre há muito tempo, pela veneração do povo por ela. Domingos tinha uma predilecção especial por Notre Dame de Prouille. Durante as suas excursões apostólicas parara ali muitas vezes para orar. Quer subisse, quer descesse os primeiros montes dos Pirineus, o Santuário de Prouille à entrada do Languedoc aparecia-lhe sempre como um retiro de esperança e consolação. Foi pois ali mesmo ao lado da igreja que ele fundou o seu mosteiro, com o consentimento e auxílio do bispo Foulques que fora muito recentemente elevado à sede de Toulouse. Foulques era um monge da ordem de Cister, conhecido pela pureza da sua vida e pelo ardor da sua fé; os católicos de Toulouse haviam-no eleito bispo, depois do seu predecessor Raymundo de Rabenstens ter sido destituído do episcopado, por um decreto do Soberano Pontífice. A sua elevação a uma sede tão importante causara uma alegria geral em toda a Igreja e quando o legado, Pedro de Castelnau, que estava grave gravemente doente, teve conhecimento do caso, levantou-se na cama e, de mãos postas, deu graças a Deus. Não tardou que Foulques se afeiçoasse a Domingos e a D. Diogo. Favoreceu, tanto quanto pôde, a construção do mosteiro de Prouille, ao qual concedeu o gozo e, mais tarde, a propriedade da igreja de Santa. Maria, ao lado da qual S. Domingos o fizera edificar. Bérenger, arcebispo de Narbonne, havia-se-lhe antecipado nessa generosa proteção, concedendo às religiosas, quatro meses depois da sua clausura, a igreja de S. Martinho de Limoux, com todos os rendimentos anexos. Mais tarde, o Conde Simão de Monfort e outros católicos de distinção fizeram grandes doações a Prouille, que se tornou uma casa florescente e celebre.

Parecia que, uma graça especial a protegia sempre. A guerra civil e religiosa, que pouco depois rebentou, não se aproximou dos seus muros senão para os respeitar e, ao mesmo tempo em que roubavam igrejas, arrasavam mosteiros e a heresia armada ficava muitas vezes vencedora, algumas pobres jovens sem defesa oravam tranquilamente em Prouille, à sombra ainda tão recente do seu claustro. É que as primeiras obras dos santos possuem uma virgindade que comove o coração de Deus, e aquele que protege a frágil haste contra a tempestade vela sobre o berço das grandes coisas. Quais o hábito e as regras das Irmãs de Prouille, nesses primeiros tempos, não se sabe ao certo. Tinham à sua testa uma prioresa, sob a autoridade, porém, de Domingos, que conservou sempre a administração espiritual e temporal do mosteiro, para nunca separar as suas queridas filhas da ordem futura que já projetava, e para que fossem elas o seu primeiro ramo. Todavia, como os seus trabalhos apostólicos lhe não permitiam viver em Prouille, encarregou da administração temporal um habitante de Pamiers, que lhe era dedicado e se chamava Guilherme Claret. Encarregou igualmente da administração espiritual um ou dois. eclesiásticos, franceses ou espanhóis, cujos nomes se ignoram.

S. Domingos e os seus coadjutores habitavam numa parte do mosteiro fora da clausura, para que essa habitação, distinta sob o mesmo tecto, fosse uma garantia da unidade que havia de um dia existir entre as Irmãs e os Irmãos Pregadores, dois rebentos do mesmo tronco.

Concluídos todos os preparativos, a 27 de dezembro de 1206, dia de S. João Evangelista, Domingos teve a ventura de abrir as portas de Notre Dame de Prouille a várias senhoras e jovens que desejavam consagrar-se a Deus pelo seu intermédio.

Tais foram as primícias das instituições dominicanas. Começaram por um asilo a favor da tríplice fragilidade do sexo, do nascimento e da pobreza, assim como a redenção do mundo começou no seio de uma Virgem pobre e filha de Davi.

Notre Dame de Prouille, solitária e modesta, esperou ainda durante muito tempo junto à montanha pelos Irmãos e Irmã que viria a ter sem conta, e que levariam o seu nome até aos confins fins do mundo. Filha mais velha de um pai que avançava vagarosamente, sob a paciente direção de Deus, ela crescia em silencio, honrando-se com a amizade de vários homens eminentes e como que embalada por eles. Domingos, que depois da conferencia de Montpellier largara o titulo de sub-prior de Osma para tomar o de frei Domingos, acrescentara então a essa humilde e suave qualificação a de Prior de Prouille, de modo que o chamavam frei Domingos, prior de Prouille.

Algum tempo depois desta fundação, estando Domingos a pregar em Fanjeaux e ficando, segundo o seu costume, em oração na Igreja, nove, senhoras da nobreza vieram-se-lhe lançar aos pés, dizendo:

“Servo de Deus socorrei-nos.
Se o que pregaste hoje é verdadeiro,
então há muito que o erro
nos obscureceu a imaginação;
porque aqueles a quem vós chamais hereges
nós chamamos homens bons,
neles temos acreditado até agora,
a eles nos temos afeiçoado com todo o coração.
Não sabemos agora o que havemos de pensar.
Servo de Deus, tende pois compaixão de nós
e rogai ao Senhor vosso Deus
nos faça conhecer a fé
na qual devemos viver, morrer e ser salvas”.

Domingos, continuando a orar baixo, depois de um certo tempo, disse-lhes:

“Tende paciência,
esperai e nada receeis.
Creio que Deus,
que não deseja a perda de ninguém,
vos quer mostrar o amo
que tendes até agora servido”.

Efectivamente viram de repente aparecer o espirito do erro e do ódio, sob a figura de um animal imundo, dizendo-lhes Domingos para as tranquilizar:

“Podeis julgar, por esta figura
que Deus vos fez ver,
a quem seguis, seguindo os hereges”.

B. Humberto,
Vida S. Domingos, 44

Essas mulheres dando, graças a Deus, converteram-se logo irrevogavelmente à fé católica; muitas delas mesmo se consagraram a Deus no mosteiro de Prouille.

Na primavera do ano de 1207 teve lugar, em Montreal, uma confêrencia entre os Albigenses e os Católicos. Estes escolheram, entre os seus adversários, quatro árbitros aos quais uns e outros entregaram relatórios sobre os assuntos em controvérsia. A discussão pública durou quinze dias depois do que os árbitros retiraram-se sem se quererem pronunciar. A consciência fazia lhes sentir a superioridade dos católicos, não lhes inspirando, porém, a coragem necessária para se declararem contra o seu partido.

Contudo, cento e cinqüenta homens, abjurando a heresia, voltaram ao seio da Igreja. O legado Pedro de Castelnau assistira a essa confêrencia. Pouco depois chegavam igualmente a Montreal o abade de Cister, outros doze abades da mesma ordem, e cerca de vinte religiosos, todos homens de coragem, versados nas coisas divinas e de uma santidade de vida digna da missão que vinham desempenhar. Tinham partido de Cister depois da reunião do capitulo geral e tinham-se posto a caminho sem trazerem consigo nada mais do que o estrito necessário, conforme a recomendação do bispo de Osma. Este reforço reanimou a coragem dos católicos. Depois de dois anos de trabalho chegavam finalmente a ver o fruto dos seus esforços e sentiam que não haviam contado debalde com o auxílio prometido a todos os que trabalham ao serviço de Deus com uma dedicação sincera. A província de Narbonne fora evangelizada de um extremo ao outro, muitas conversões haviam-se conseguido, o orgulho dos hereges fora humilhado por virtudes que excediam as suas forças, e os povos atentos a este movimento compreendiam, enfim, que a Igreja católica não estava para morrer. O episcopado reabilitara-se na pessoa de Foulques; Navarre, bispo de Conserans, imitava-o e aqueles dentre os seus colegas que tinham apenas sido fracos acordavam do seu antigo torpor. A construção do mosteiro de Prouille incutiu animo na nobreza pobre e católica. Porem o maior resultado ainda era o haverem se juntado tantos homens eminentes pelas suas virtudes, ciência e caráter num comum pensamento, o do apostolado, e de terem dado a esse apostolado recente uma consistência inesperada. Contudo, faltava ainda a verdadeira unidade a esses elementos regidos por quatro diferentes autoridades: a dos legados, a dos bispos, a dos abades de Cister, e a dos espanhóis. Por conseguinte, pois, a miudo se tratava da necessidade de fundar uma ordem religiosa cujo encargo especial fosse pregar, havendo a chegada dos Cistercienses a Montreal, confirmando tudo o que estava feito, suscitado neles um desejo ainda mais forte de continuar para diante. Quem no fundo era o chefe dessa empresa era o bispo de Osma ainda que, na sua qualidade de simples bispo, ele fosse inferior aos legados e, como bispo estrangeiro, dependesse no tocante à sua ação espiritual dos prelados franceses. Fora ele, porém, que pelos seus conselhos dera o impulso no momento em que estavam perdidas todas as esperanças; fora ele o primeiro a pôr mãos à obra, sem nunca olhar para trás; tinha chegado mesmo a conseguir a afeição dos hereges que diziam dele

“que era impossível que um homem como ele
não houvesse sido predestinado para a vida
e que lhes fora por certo enviado
para lhes ensinar a verdadeira doutrina”.

B. Jordão Saxe,
Vida S. Domingos I, 1

Numa palavra, essa força secreta, que distingue os homens, elevara-o acima de todos. Resolveu então voltar para a Espanha, por em ordem os negócios da sua diocese e angariar socorros a favor do convento de Prouille, que estava muito necessitado, trazer consigo para França novos trabalhadores e tirar todo o proveito da situação a que as coisas tinham chegado. Tomada essa resolução, tomou a pé o caminho de Espanha.

Ao entrar em Pamiers, D. Diogo encontrou o bispo de Toulouse, o de Conserans e um grande número de abades de diferentes mosteiros que, tendo tido conhecimento da sua partida, vinham saudá-lo. A sua presença deu lugar a uma célebre questão com os Valdenses que reinavam em Pamiers, sob a protecção do conde de Foix. O conde convidara os hereges e os católicos por turnos a jantar e oferecera-lhes o seu palácio para aí celebrarem a conferência. Os católicos escolheram por árbitro um dos seus adversários mais declarados, que também pertencia à primeira nobreza da cidade.

O resultado foi muito além do que se esperava. Arnaldo de Campranham, o árbitro designado, deu a sua decisão a favor dos católicos e abjurou a heresia; um outro herege de distinção, Durand de Huesca, não contente em converter-se à verdadeira fé, abraçou a vida religiosa na Catalunha, para onde se retirara, vindo a ser o fundador de uma nova congregação, sob o nome de católicos pobres.

Estas duas abjurações, que não foram as únicas, agitaram profundamente a cidade de Pamiers, e foram ocasião para os católicos de grandes provas de regozijo e estima da parte do povo. Depois deste triunfo que coroava dignamente o seu apostolado, D. Diogo despediu-se de todos os que se haviam ali reunido para lhe prestarem homenagem à sua saída de França. Não se sabe se Domingos o acompanhara até ali; talvez houvesse sido em Prouille a sua separação e seria sob esse teto tão querido que os seus olhos se contemplaram pela última vez, porque Deus, nos seus desígnios impenetráveis, decidira que os seus olhares nunca mais se haviam de cruzar sobre a terra.

D. Diogo atravessou os Pirineus e Aragão, sempre a pé. Chegou a Osma, tomou novamente posse da sua cadeira, vaga por ele há três anos, e quando se dispunha a sair novamente da sua pátria, Deus chamou-o para a cidade permanente dos anjos e dos homens. O seu corpo foi sepultado em uma igreja da sua sede episcopal com esta breve inscrição:

“Aqui jaz Diogo de Azevedo,
bispo de Osma,
falecido no ano de 1245”.

A data se explica pelo fato de que a era dos espanhóis havia começado trinta e oito anos antes da era cristã. Esta morte, anunciada à posteridade com tão pouca pompa, teve todavia conseqüências, provando claramente que acabara de desaparecer um grande homem. Apenas chegou a noticia além dos Pirineus, desfêz-se imediatamente o trabalho heróico cujos elementos ele reunira. Os abades e religiosos de Cister voltaram para os seus mosteiros; a maior parte dos espanhóis, que D. Diogo deixara sob a direção de Domingos, regressaram a à Espanha; dos três legados, Raul acabava de falecer, Arnaldo apenas se evidenciara um momento e Pedro de Castelnau estava na Provença, em vésperas de morrer às mãos de um assassino. Restava então apenas um só homem alimentando a antiga idéia de Toulouse e Montpellier, homem novo ainda, estrangeiro, sem autoridade, que sempre havia figurado no segundo plano, não podendo de repente suprir a falta de um homem como Azevedo, em quem o episcopado, a antiguidade e a fama confirmavam o talento e virtude. Tudo quanto Domingos pôde fazer foi não sucumbir ao peso horrível dessa perda e permanecer firme sob o golpe que o privava de um tal amigo.

Foram-lhe necessários oito anos de trabalhos para preencher esse vácuo, nunca havendo homem nenhum que tivesse de gravitar mais penosamente para chegar ao seu fim e que depois o atingisse com mais assombrosa rapidez.

O túmulo de Azevedo foi glorificado por vários milagres. Mais tarde, na mesma igreja em que repousam os seus restos, levantou-se uma capela a S. Domingos e a piedade religiosa reuniu-os transportando o corpo de um sob a imagem do outro. Mas como se Domingos não pudesse suportar o ver a seus pés aquele que fora o seu mediador sobre a terra, uma mão reverente retirou dali a cabeça veneranda onde haviam residido as idéias do seu amigo e deu-a ao convento dos Frades Pregadores de Málaga. Apesar destas homenagens, a memória de Azevedo nunca igualou os seus méritos.

A França apenas o viu de passagem, a Espanha possuiu-o demasiado pouco, e ele morreu sem ter levado a cabo coisa alguma.

Deus destinara-o apenas a ser o precursor de um homem ainda mais santo e mais extraordinário do que ele. Missão difícil, que supõe um coração completamente desinteressado. Azevedo desempenhara essa missão com a mesma simplicidade com que atravessava a pé os Pirineus: nunca pensava em si, porém a posteridade de S. Domingos conserva dele uma recordação tão grande como a sua humildade, e eu separo-me aqui dele com o respeito de um filho que acaba de cerrar os olhos a seu pai.

Com a morte do bispo de Osma, todos se dispersaram. Domingos viu-se, pois, quase só. Os dois ou três cooperadores que o não haviam desamparado apenas se lhe conservavam fiéis pela sua boa vontade, e podiam de um momento para o outro abandoná-lo. Pouco depois novo infortúnio maior do que a solidão concorreu para agravar a sua situação; uma guerra terrível veio aumentar-lhe a sua amargura e dificuldades.

O legado Pedro de Castelnau muitas vezes dissera que a religião nunca mais tornaria a florescer no Languedoc enquanto esse país não fosse regado com o sangue de algum mártir, e pedia ardentemente a Deus que lhe concedesse a graça de ser ele essa vitima. Realizaram-se os seus desejos. Dirigira-se para Saint-Gilles a convite expresso do conde de Toulouse que ele outrora havia excomungado e que queria, dizia ele, reconciliar-se sinceramente com a Igreja. O abade de Cister acompanhava o seu colega a essa entrevista, à qual ambos iam com um extremo desejo de paz. O conde, porém, zombou deles, parecendo que o seu intento era obter, pelo terror, que a excomunhão lhe fosse levantada, porque ameaçou os legados de morte se ousassem sair de Saint-Gilles sem o absolverem.

Desprezaram os legados a sua cólera e retiraram-se acompanhados de uma escolta que lhes concederam os magistrados da cidade. Passaram essa noite nas margens do Ródano e, no dia seguinte, despedindo-se das pessoas que os acompanhavam, dispunham-se a atravessar o rio. Foi então que dois homens se aproximaram e um deles enterrou uma lança no corpo de Pedro de Castelnau. O legado, ferido de morte, disse ao seu assassino:

“Que Deus vos -perdoe;
quanto a mim perdoo-vos!”

Pedro de Vaulx-Cernay,
Histoire des Albigeois, VIII

Repetiu umas poucas vezes estas palavras, teve ainda tempo de exortar os seus companheiros a servir a Igreja sem temor nem descanso; e exalou o ultimo suspiro. O seu corpo foi transportado para a abadia de Saint-Gilles. Fora assassinado a 15 de Janeiro de 1208.

Este assassinato foi o sinal de uma guerra, em que Domingos não tomou parte alguma, e que para ele não foi senão a origem de muitas tribulações no exercício do seu apostolado. Contudo, como os factos dessa guerra estão ligados aos da sua vida, torna-se necessário que eu aqui descreva rapidamente a sua história.