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À primeira vista a exposição apresentada poderá parecer óbvia para uns e
ingênua para outros. No entanto, escondida sob a sua aparente simplicidade, já nestes
primeiros conceitos encontra-se uma concepção da natureza e do real radicalmente diversa
da que deriva das ciências experimentais ou, se quisermos ser mais precisos, da que deriva
do pressuposto de que só seria real aquilo que pode ser identificado pelos métodos das
ciências experimentais.
Para compreender melhor o alcance desta afirmação, consideremos em
primeiro lugar a matéria primeira. Segundo Aristóteles, a matéria primeira não só não pode
ser identificada pelos sentidos humanos ou por instrumentos de laboratório, como inclusive
até pela inteligência ela só pode ser conhecida indiretamente, através de analogias.
Que a matéria primeira não possa ser identificada pelos sentidos humanos ou
por instrumentos de laboratório deveria ser algo já claro. Se não fosse assim, para ser
identificada por estes recursos a matéria primeira teria que possuir alguma determinação. No
entanto, segundo nossa linha de raciocínio, a matéria primeira é algo inteiramente
indeterminado. Não poderia, portanto, ser identificada nem pelos sentidos, nem por
instrumentos.
No entanto, mais ainda do que isso, o fato de que ser algo inteiramente
indeterminado faz com que a matéria primeira também não possa ser conhecida, enquanto tal,
nem sequer por uma abstração da inteligência. Por sua total indeterminação, a matéria
primeira somente pode ser conhecida, ainda que por uma concepção puramente intelectual,
por meio de analogias. De fato, se fosse possível existir na inteligência uma representação
da matéria primeira enquanto tal, isto já seria para ela uma determinação e, portanto, o que
teria sido concebido no intelecto não poderia ser, por isso mesmo, a matéria primeira.
Consideremos em seguida a forma substancial. Segundo Aristóteles, assim
como a matéria primeira, tampouco a forma substancial pode ser identificada pelos cinco
sentidos ou por instrumentos de laboratório. Por mais perfeitos que possam vir a ser,
instrumentos de laboratório são, em sua essência, apenas extensões dos cinco sentidos do
homem. Os olhos, por exemplo, são instrumentos que detectam ondas eletromagnéticas na
faixa de freqüência a que chamamos de luz visível; os aparelhos de raios X, as antenas de
rádio, as antenas de televisão e as de microondas, os filmes fotográficos sensíveis às
freqüências do infra vermelho e do ultra violeta, todos estes são instrumentos que captam
ondas eletromagnéticas em faixas de freqüências mais amplas do que as já captadas pelos
olhos; são, portanto, em sua essência, uma extensão do sentido da visão. Neste mesmo
sentido o termômetro é uma extensão do sentido do tato e o peagâmetro, o instrumento usado
para medir com precisão a acidez das soluções aquosas, é uma extensão do sentido do gosto.
Segundo Aristóteles nem os sentidos humanos nem nenhum destes instrumentos são capazes
de captar a forma substancial. Ao contrário da matéria primeira, porém, a forma substancial
pode ser conhecida pelo trabalho da inteligência. Mesmo não podendo ser identificada por
intrumentos, ela existe e é algo real. O que os sentidos e os instrumentos captam são as
demais formas que se acrescentam ao composto de matéria primeira e forma substancial, as
quais são as formas ditas acidentais, como a cor, a temperatura, o tamanho, o lugar e outros.
Ora, é uma afronta aos que cultivam as ciências experimentais afirmar que a
estrutura básica que dá a realidade aos entes sejam entidades puramente inteligíveis e que,
por isso mesmo, jamais poderão cair sob o domínio destas ciências. Os que trabalham com
as ciências experimentais tendem a negar ou, pelo menos, a não reconhecer a realidade do
que não pode ser identificado pelo método experimental. No entanto, segundo a cosmologia
grega, não apenas existem entidades deste tipo como inclusive são as entidades mais
fundamentais da natureza e da realidade. Nada mais poderia existir se elas não existissem.
Aqueles que se acostumaram a pensar sobre a estrutura da realidade com
base apenas nas categorias das ciências experimentais certamente terão dificuldade em
compreender como entidades que não poderão jamais ser vistas nem detectadas por nenhuma
experiência de laboratório possam não apenas ser reais, como também ser o próprio
fundamento de toda a realidade. Para os que se defrontam com esta dificuldade, embora todo
o raciocínio anteriormente feito seja suficiente para demonstrar tais afirmações, poderá ser
útil oferecer uma evidência adicional.
Já vimos que a forma substancial, cuja existência é um desafio à pretensão
de que o método das ciências experimentais seja capaz de abarcar a totalidade da realidade,
confere à matéria primeira essência e existência, isto é, uma primeira determinação e o ser
em ato. Ambas estas coisas, essência e existência, são reais e são puramente inteligíveis,
impossíveis de serem detectadas pelos sentidos e por instrumentos de laboratório. Deixemos
a questão da essência para mais tarde e vamos deter-nos a considerar a do ser em ato, ou
existência.
A existência dos entes, conferida pela forma substancial, é algo de que
ninguém duvida. Trata-se de uma realidade manifesta. Temos assim novamente uma
realidade da qual ninguém duvida e que, no entanto, não pode ser detectada nem pelos
sentidos, nem por nenhum instrumento de laboratório, mas que não por isso deixa de ser real.
Para sermos mais claros, consideremos de que modo apreendemos a
existência dos entes.
Examinando o funcionamento do sentido da vista, será fácil perceber que ele
não apreende a existência dos entes, mas apenas acidentes, como as suas cores e os seus
formatos. O sentido da vista não garante que a pessoa que estamos vendo seja um ser
efetivamente existente. Poderá trata-se de um sonho, de um holograma ou de uma alucinação.
O que os olhos vêem é apenas a côr desta pessoa, não a sua existência. O mesmo pode ser
dito do ouvido; por este sentido pode-se ouvir o som que algo produz, mas não a existência
deste algo. Não há nenhum sentido que possa garantir que as coisas às quais atribuímos o que
vemos e ouvimos não sejam um sonho destituído de existência real.
No entanto, nós sabemos que os entes que nos cercam existem e que esta
existência é uma realidade. Não o sabemos, porém, por causa dos sentidos, nem dos
instrumentos de laboratório, que não ultrapassam os limites essenciais dos sentidos. A
consciência do real é a conseqüência de um longo trabalho de abstração da inteligência. Nós
temos consciência de que as coisas existem porque em algum momento do nosso
desenvolvimento a experiência sensorial tornou-se suficientemente rica e a inteligência
tornou-se suficientemente madura para que esta última, por abstração, se tivesse tornado
capaz de apreender o que é ser real e, por oposição, a diferença entre isto e o que é não ser
real. A partir do momento em que a inteligência se tornou capaz de apreender abstratamente
o que é ser em ato, torna-se também possível que no homem surja a consciência de que
alguma coisa seja real. Esta consciência ocorre quando as informações que chegam ao
homem pelos sentidos são confrontadas com outras anteriores e a rica coerência destes
dados obriga a inteligência a explicá-los atribuindo às coisas vistas e ouvidas a realidade do
ser em ato que ela já se havia tornado capaz de apreender. Por este motivo, a experiência da
consciência da realidade não é uma experiência sensorial, mas uma experiência
essencialmente intelectiva, abstraída e sobreposta aos dados dos sentidos. Somente um ser
dotado de inteligência pode possuí-la. Nunca uma máquina irá possuí-la, nem um instrumento
de laboratório, nem um computador. Por mais elaborados que sejam, o grau de consciência
da realidade de todos estes instrumentos é e será sempre exatamente nulo. Os sentidos e os
instrumentos de laboratório nunca passam das formas acidentais.
Este raciocínio mostra que há algo, como é o caso da existência dos entes
que nos circundam, cuja realidade é tão óbvia, e que, não obstante isso, não pode e não
poderá nunca ser apreendido nem pelos sentidos nem por instrumentos. Trata-se de uma
realidade fundamental, sem a qual as formas acidentais não poderiam existir, mas que, no
entanto, está além das possibilidades das ciências experimentais, além dos sentidos e dos
instrumentos, e possui uma natureza puramente intelegível. Este exemplo permite um
vislumbre do quanto o conceito de realidade subjacente à Física de Aristóteles é bastante
diverso do conceito de realidade pressuposto como subjacente às ciências experimentais.
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