XXII

Santo Agostinho




1.

Introdução.

Foi Santo Agostinho quem deu à tradição ocidental a sua expressão madura e final acerca da Trindade. Durante toda a sua vida como cristão meditou sobre a Santíssima Trindade, explicando a doutrina da Igreja aos interessados e defendendo-a contra os ataques dos opositores. Não obstante ser Santo Agostinho mais conhecido através de obras como "As Confissões" ou "A Cidade de Deus", provavelmente sua obra prima é o tratado conhecido por "De Trinitate", que ele demorou dezesseis anos para redigir. Conforme suas palavras:

"Sobre a Trindade,
que é o Deus Sumo e Verdadeiro,
principiei alguns livros quando jovem,
editei-os quando velho".

Santo Agostinho aceita sem discussão a verdade que existe um só Deus que é Trindade, e que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são simultaneamente distintos e co-essenciais, numericamente um quanto à substância; e seus escritos estão repletos de declarações detalhadas quanto a isto.

Caracteristicamente, em nenhum lugar Agostinho tenta demonstrar estas afirmações. Trata-se de um dado da Revelação que, segundo ele, a Escritura proclama em quase toda a página e que a "fé católica" transmite aos que crêem. Seu imenso esforço teológico é uma tentativa de compreensão, o exemplo supremo de seu princípio de que a fé deve preceder o entendimento.

Referências:
Santo Agostinho :Epistola 174; 120,17;
Idem : De Fide et Symb. 16;
Idem : De Doctrina Christ. 1,5;
Idem : De Trinitate 1,7; 15,2;
Idem : Sermo 7,4; 118,1;
Idem : Iohan. Tract. 74,1.

2.

A Santíssima Trindade segundo Santo Agostinho.

A exposição da doutrina trinitária em Santo Agostinho é inteiramente baseada nas Sagradas Escrituras.

Porém, em contraste com a tradição que fêz da Pessoa do Pai o seu ponto de partida, Santo Agostinho principia com a natureza divina em si mesmo. É esta simples e imutável natureza ou essência que é Trindade. A unidade da Trindade é assim colocada em primeiro plano, excluindo-se rigorosamente todo tipo de subordinacionismo. Tudo o que é afirmado de Deus é afirmado igualmente de cada uma das três Pessoas.

Diversas conseqüências se seguem desta ênfase na unidade da natureza divina.

Primeiro, tudo o que pertence à natureza divina como tal deve, numa linguagem exata, ser expresso no singular, já que esta natureza é única. Conforme mais tarde o Credo que já foi atribuído a Santo Atanásio dirá, Credo este que é totalmente agostiniano, embora cada uma das três Pessoas seja incriada, infinita, onipotente, eterna, etc., não há três incriados, infinitos, onipotentes e eternos, mas apenas um.

Segundo, a Trindade possui uma única e indivisível ação e uma única vontade. Sua operação é "inseparável". Em relação à ordem contingente as três Pessoas atuam como "um único princípio" e, como as Pessoas são inseparáveis,

"assim também
operam inseparavelmente".

Como exemplo disto, Agostinho argumenta que as teofanias, manifestações de Deus registradas no Velho Testamento, não devem ser consideradas, como a tradição patrística primitiva tendia a considerar, como manifestações exclusivamente do Verbo. Algumas vezes as teofanias podem ser atribuídas ao Verbo, ou ao Espírito Santo, algumas vezes ao Pai, outras vezes a todos os Três; outras vezes ainda é impossível decidir a qual das três Pessoas atribuí-las.

A dificuldade óbvia que esta teoria sugere é que ela parece ignorar os diversos papéis das três Pessoas. A isto Agostinho responde que, embora seja verdade que o Filho, embora distinto do Pai, nasceu, sofreu e ressuscitou, é igualmente verdade que o Pai cooperou com o Filho na realização da Encarnação, paixão e ressurreição. Era conveniente para o Filho, entretanto, em virtude de sua relação com o Pai, manifestar-se e fazer-se visível.

Em outras palavras, já que cada uma das Pessoas possui a natureza divina de uma maneira particular, é apropriado atribuir a cada uma dElas, na operação externa da Divindade, o papel que Lhe é apropriado em virtude de Sua origem.

Referências:
Santo Agostinho : De Civitate Dei 11,10;
Idem :Epistola 120,17; 11,2-4;
Idem : De Trinitate 5,9; 5,10; 8,1; 2,9; 5, 15; 1,7; 2,3; 2,12-34; 3,4-27; 2,9; 2,18;
Idem : C. Ser. Ar. 4;
Idem : Enchirid. 38;
Idem : Sermo 52.

3.

A distinção das Pessoas.

Segundo Agostinho, a distinção das Pessoas se fundamenta nas suas relações mútuas com a Divindade.

Embora consideradas enquanto substância divina, as Pessoas sejam idênticas, o Pai se distingue enquanto Pai por gerar o Filho, e o Filho se distingue enquanto Filho por ser gerado. O Espírito Santo, semelhantemente, distingue-se do Pai e do Filho enquanto "dom comum" de ambos.

Surge então a questão de o que são os Três.

Agostinho reconhece que tradicionalmente eles são designados como Pessoas, mas ele fica descontente com o termo. Provavelmente a expressão lhe trazia a conotação de indivíduos separados. No fim, ele consente em usar a expressão, mas por causa da necessidade de afirmar a distinção dos Três contra o Monarquianismo, e com um profundo sentido da inadequação da linguagem humana.

Sua teoria positiva, original e muito importante para a história subseqüente da doutrina da Trindade no Ocidente, foi a de que os Três são relações reais ou subsistentes.

O motivo que levou Santo Agostinho a esta colocação foi o dilema colocado pelos arianos. Estes, baseando-se no esquema aristotélico das categorias, afirmaram que as distinções na Divindade, se elas existissem, teriam que ser classificadas ou na categoria de substância ou na de acidente. Na categoria dos acidentes não poderia sê-lo, porque em Deus não há acidentes; se o fossem, porém, na categoria da substância, então a conclusão seria que existem três deuses.

Agostinho nega ambas as alternativas, explicando que a categoria da relação é uma alternativa possível. Os Três, prossegue ele, são relações, tão reais e eternas como o gerar, o ser gerado e o proceder, que fundamentam as relações, são reais dentro da Divindade. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são assim relações, no sentido de que o que quer que cada um dEles seja, o é em relação a um ou a ambos dos demais.

Referências:
Santo Agostinho : Epistola 170,7; 170; 238; 239; 240; 241;
Idem : De Trinitate 5,6; 5,8; 5,15; 5,12; 5,15-17; 8,1; 5,10; 7,7-9; 5,4; Livros 5-7.
Idem : Iohan. Tract. 74,1-4; 39;
Idem : De Civitate Dei 11,10;
Idem : C. Serm. Ar. 32; 118,1;
Idem : Enarrat. in Psalm. 68, 1, 5.

4.

A processão do Espírito Santo.

Santo Agostinho também procurou explicar o que é a processão do Espírito Santo, ou em que ela difere da geração do Filho.

Ele considerou como certo que o Espírito Santo é o amor mútuo do Pai e do Filho:

"A caridade comum pela qual
o Pai e o Filho se amam mutuamente".

Assim, Agostinho coloca que

"O Espírito Santo não é
Espírito de um dEles,
mas de ambos".

Desta maneira, em relação ao Espírito Santo o Pai e o Filho formam um único princípio, o que é inevitável, pois a relação de ambos para com o Espírito Santo é idêntica e onde não há diferença de relação sua operação é inseparável. Santo Agostinho, pois, mais inequivocamente do que qualquer dos Padres Ocidentais antes dele, ensinou a doutrina da dupla processão do Espírito Santo do Pai e do Filho, doutrina que, alguns séculos mais tarde, por questões circunstanciais, passaria a ser conhecida como o "Filioque", palavra latina que significa `e do Filho'. Segundo Agostinho,

"O Pai é autor da processão do Espírito Santo
porque Ele gerou um tal Filho,
e ao gerá-lo tornou-o também
fonte a partir do qual o Espírito procede".

"Já que tudo o que o Filho tem,
o tem do Pai,
do Pai tem também
que dEle proceda o Espírito Santo".

Daqui porém não se deve conclui, ele nos adverte, que o Espírito Santo tenha duas fontes ou princípios. Ao contrário, a ação do Pai e do Filho na processão do Espírito é comum, assim como é a ação de todas as três Pessoas na Criação.

Além disso, não obstante a dupla processão, o Pai permanece a fonte primordial, na medida em que é dEle que deriva a capacidade do Espírito Santo de proceder do Filho. Ainda segundo Agostinho,

"Do Pai de modo principal, ... ,
o Espírito Santo procede
de ambos em comum".

Referências:
Santo Agostinho : De Trinitate 9,17; 15,45; 15,27; 5,12; 1,7; 5,15; 15,29; 15,45; 15,47;
Idem : Iohan. Tract. 99,6; 99,9;
Idem : Epistola 170,4;
Idem : Contra Maxim. 2,14,1; 2,14,7-9.

5.

A contribuição mais própria de Agostinho à Teologia Trinitária.

Chegamos àquela que é provavelmente a contribuição mais original de Santo Agostinho à teologia trinitária, o uso de analogias tiradas da estrutura da alma humana. A função destas analogias, deve-se notar, não é demonstrar que Deus é Trindade, mas aprofundar nosso entendimento do mistério da absoluta unidade e também da distinção real dos Três.

No sentido estrito, de acordo com Santo Agostinho, há vestígios da Trindade em todo o lugar, porque as criaturas, na medida em que existem, existem por participação nas idéias de Deus; portanto, tudo deve refletir, embora timidamente, a Trindade que as criou. Para buscar a Sua verdadeira imagem, entretanto, o homem deve olhar primeiramente dentro de si,porque a Escritura representa Deus dizendo "Façamos", - isto é, os Três -,

"o homem à Nossa imagem
e à Nossa semelhança".

Mesmo o homem exterior, isto é, o homem considerado em sua natureza sensível, fornece

"uma certa figura da Trindade".

O processo de percepção, por exemplo, fornece três elementos distintos que são ao mesmo tempo intimamente unidos, do qual o primeiro, em um certo sentido, gera o segundo, enquanto que o terceiro une aos outros dois. Por exemplo, o objeto externo (a coisa que vemos), a representação sensível da mente (a visão), e a intenção ou ato de focalizar a mente (a intenção da vontade).

Quando o objeto externo é removido, temos uma segunda trindade, que lhe é superior, pois é localizada inteiramente dentro da mente. Neste sentido, Agostinho fala da impressão da memória (a memória), a imagem interna da memória (visão interna), e a intenção da vontade.

Para a imagem real, entretanto, da Divindade Triuna, devemos olhar no homem interior, ou alma. Freqüentemente tem sido dito que a principal analogia trinitária do De Trinitate é a do amante, do objeto amado e do amor que os une. Porém a discussão de Santo Agostinho desta trindade é bastante curta, e é apenas uma transição para aquela que ele considera sua verdadeiramente importante analogia, a da atividade da mente enquanto dirigida para si mesma ou, melhor ainda, para Deus.

Esta última analogia fascinou Santo Agostinho por toda a sua vida, as trindades resultantes sendo:

  1. A mente, seu conhecimento de si mesma e seu amor de si mesma;

  2. A memória, ou, mais propriamente, o conhecimento latente da mente de si mesma; o entendimento, isto é, sua apreensão de si mesma à luz das razões eternas; e a vontade, ou amor de si mesma, pela qual este processo do ato de conhecimento é posto em movimento;

  3. A mente, enquanto lembrando, conhecendo e amando ao próprio Deus.

Santo Agostinho considera que somente quando a mente focalizou a si mesma com todas as suas potências de lembrança, entendimento e amor em seu Criador é que a imagem de Deus que ela traz em si, corrompida como está pelo pecado, pode ser plenamente restaurada.

Embora demorando-se nestas analogias, Santo Agostinho não tem ilusões quanto às suas imensas limitações. Em primeiro lugar, a imagem de Deus na mente humana é em qualquer caso uma imagem remota e imperfeita. Em segundo lugar, embora a natureza racional do homem exiba as trindades acima mencionadas, elas representam faculdades ou atributos que o ser humano possui, enquanto que a natureza divina é perfeitamente simples. Em terceiro lugar, a memória, entendimento e vontade operam no homem separadamente, enquanto que as três Pessoas divinas co- inerem mutuamente e Sua ação é perfeitamente una e indivisível. Finalmente, na Divindade os três membros da Trindade são Pessoas, mas o mesmo não ocorre na mente humana. Segundo as palavras do próprio Agostinho,

"A imagem da Trindade é uma pessoa,
mas a suprema Trindade é Ela própria três Pessoas:
o que é um paradoxo,
quando alguém reflete que,
não obstante isso,
os Três são mais inseparavelmente um
do que a trindade da mente".

Referências:
Santo Agostinho : De Vera Relig. 13;
Idem :Sermo 52, 17-19;
Idem : De Trinitate 11, 1; 11, 2-5; 11,6; 8,12 a 9,2; 15,5; 15,10; 13,11; 9,2-8; 10,17-19; 14,11 até o fim; 10,18; 9,17; 15,7 e ss.; 15,11-13; 15, 43;
Idem : Enarrat. In Psalm. 42, 6;
Idem : Sermo de Symb. 1, 2.